A visagem da ponte do Rio Malacacheta*
Alta noite, uma densa neblina paira no ar, o silêncio é um barulho que só os ouvidos do medo escutam, o homem caminha com os olhos esbugalhados, não sente seus pés, naquele breu absoluto, todos os seus instintos estão aflorados, não há mais razão, só a emoção que o absorve, lhe invadindo o corpo que nem se autopercebe mais. A tensão é intolerável, sente-se desfalecer, mas continua passo a passo na direção onde tem a sensação que o mal o espreita.
A ponte está ali a poucos metros, quantas vezes nos serões noturnos na varanda de Dona Zefa ria sem parar daquele "causo" da mulher vestida de branco que esperava os andantes do caminho na travessia da ponte do rio. Nunca se imaginava passando por aquela situação.
O ramal reduzia-se a um simples caminho, limpo no meio, aumentando o mato para as margens até transformar-se numa bela capoeira. Não era possível olhar para os lados, a escuridão se superava, negra, sem nenhuma nuance de claridade. Até os batráquios, muito comuns na região pararam seu coaxar.
Ouviu sobre seus pés o ranger das primeiras tábuas da ponte, foi como o retumbar de um trovão, aquele estalo era o prenúncio da chegada, parou para olhar ao redor, nada, quis se auto-sugestionar para outras imagens, rezava vorazmente, não tinha, porém consciência disso, tudo saia de sua boca como um vômito, ouviu o segundo estalo, novamente o estrondo ensurdecedor, deu até dor o arrepio que lhe correu a espinha. Um frio repentino lhe invadiu o corpo, não se controlou mais, disparou numa correria desesperada, um raio era pouco para comparar tal velocidade, voava na verdade, os olhos arregalaram-se ao máximo, pareciam sair das órbitas, a ponte fez um terrível barulho, tábuas quebradas, sapatos se soltando, pregos levados nos dedos, camisa se abrindo, os peitos melados de suor à mostra, um vulto na verdade, apenas uma mancha cortando a escuridão.
Quase atropela a primeira casa da vila, a tapera de Dona Zefa. Essa era a noite que ela reunia as crianças da comunidade para falar das suas experiências de vida. Estavam todos sentados quando o homem se aproximou, acocorou-se no girau de madeira, ainda respirando descompassadamente. Aquele ambiente lhe trazia harmonia íntima, o que foi lhe tranqüilizando até voltar à serenidade. Todos olhavam a velha de cabelos brancos, vestido de chita em flores, que lhes transmitia com olhar meigo um carinho inigualável sentada em uma cadeira de madeira rústica.
Iniciou seu “causo” preferido: - Certa noite há muitos e muitos anos atrás uma bela jovem marcou encontro com seu amado na ponte do Rio Malacacheta, seu coração transbordava de amor, nunca teria mais ninguém para amar, aquele era seu amor definitivo. Seus sonhos confundiam-se com a realidade, era a expressão da felicidade. Não estava preparada quando recebeu aquele bilhete desconcertante das mãos de um moleque, onde sem maiores explicações foi trocada por outra mulher. Ficou ali, olhando o vazio sem ver, falando sem voz, sem gestos, totalmente sem vida. Sua alma descolou-se do corpo permanecendo perdida na ponte para sempre.
Na varanda da casa os olhos de Dona Zefa molhavam-se tristemente, lembrava-se, ainda cheia de esperanças, do grande amor da sua vida, nunca o esquecera, não conseguiu encontrar mais ninguém para amar e tornara-se desde então aquela alma melancólica que vivia reunindo as crianças para repetir criativamente sua história de amor. Vagava sim pela ponte, nas noites escuras e assustava os transeuntes. Por amor permanecia ali horas a fio, lembrando aquele passado tão inesquecível.
O homem a olhou com ternura, totalmente absorto e envolvido pela história, não sentiu nenhuma vontade de rir, aliviou seu medo e procurou naquela velha mulher vestígios da bela Josefina de outrora, ele, um solitário, gostaria muito de ser amado assim com aquele amor quase imortal.
Ficou observando e ouvindo boa parte da noite a conversa e depois continuou sua caminhada pela Vila Malacacheta, olhou ao longe a ponte e percebeu o vulto bem delineado de uma mulher de branco, serena e tranqüila. Já não sentia medo, o sentimento agora era de solidariedade. Vivia dentro de si mesmo o drama que assombrava principalmente o próprio ser que o criou.
*Rio Malacacheta é um rio que atravessa o município de Capanema, cidade do nordeste Paraense.
Alta noite, uma densa neblina paira no ar, o silêncio é um barulho que só os ouvidos do medo escutam, o homem caminha com os olhos esbugalhados, não sente seus pés, naquele breu absoluto, todos os seus instintos estão aflorados, não há mais razão, só a emoção que o absorve, lhe invadindo o corpo que nem se autopercebe mais. A tensão é intolerável, sente-se desfalecer, mas continua passo a passo na direção onde tem a sensação que o mal o espreita.
A ponte está ali a poucos metros, quantas vezes nos serões noturnos na varanda de Dona Zefa ria sem parar daquele "causo" da mulher vestida de branco que esperava os andantes do caminho na travessia da ponte do rio. Nunca se imaginava passando por aquela situação.
O ramal reduzia-se a um simples caminho, limpo no meio, aumentando o mato para as margens até transformar-se numa bela capoeira. Não era possível olhar para os lados, a escuridão se superava, negra, sem nenhuma nuance de claridade. Até os batráquios, muito comuns na região pararam seu coaxar.
Ouviu sobre seus pés o ranger das primeiras tábuas da ponte, foi como o retumbar de um trovão, aquele estalo era o prenúncio da chegada, parou para olhar ao redor, nada, quis se auto-sugestionar para outras imagens, rezava vorazmente, não tinha, porém consciência disso, tudo saia de sua boca como um vômito, ouviu o segundo estalo, novamente o estrondo ensurdecedor, deu até dor o arrepio que lhe correu a espinha. Um frio repentino lhe invadiu o corpo, não se controlou mais, disparou numa correria desesperada, um raio era pouco para comparar tal velocidade, voava na verdade, os olhos arregalaram-se ao máximo, pareciam sair das órbitas, a ponte fez um terrível barulho, tábuas quebradas, sapatos se soltando, pregos levados nos dedos, camisa se abrindo, os peitos melados de suor à mostra, um vulto na verdade, apenas uma mancha cortando a escuridão.
Quase atropela a primeira casa da vila, a tapera de Dona Zefa. Essa era a noite que ela reunia as crianças da comunidade para falar das suas experiências de vida. Estavam todos sentados quando o homem se aproximou, acocorou-se no girau de madeira, ainda respirando descompassadamente. Aquele ambiente lhe trazia harmonia íntima, o que foi lhe tranqüilizando até voltar à serenidade. Todos olhavam a velha de cabelos brancos, vestido de chita em flores, que lhes transmitia com olhar meigo um carinho inigualável sentada em uma cadeira de madeira rústica.
Iniciou seu “causo” preferido: - Certa noite há muitos e muitos anos atrás uma bela jovem marcou encontro com seu amado na ponte do Rio Malacacheta, seu coração transbordava de amor, nunca teria mais ninguém para amar, aquele era seu amor definitivo. Seus sonhos confundiam-se com a realidade, era a expressão da felicidade. Não estava preparada quando recebeu aquele bilhete desconcertante das mãos de um moleque, onde sem maiores explicações foi trocada por outra mulher. Ficou ali, olhando o vazio sem ver, falando sem voz, sem gestos, totalmente sem vida. Sua alma descolou-se do corpo permanecendo perdida na ponte para sempre.
Na varanda da casa os olhos de Dona Zefa molhavam-se tristemente, lembrava-se, ainda cheia de esperanças, do grande amor da sua vida, nunca o esquecera, não conseguiu encontrar mais ninguém para amar e tornara-se desde então aquela alma melancólica que vivia reunindo as crianças para repetir criativamente sua história de amor. Vagava sim pela ponte, nas noites escuras e assustava os transeuntes. Por amor permanecia ali horas a fio, lembrando aquele passado tão inesquecível.
O homem a olhou com ternura, totalmente absorto e envolvido pela história, não sentiu nenhuma vontade de rir, aliviou seu medo e procurou naquela velha mulher vestígios da bela Josefina de outrora, ele, um solitário, gostaria muito de ser amado assim com aquele amor quase imortal.
Ficou observando e ouvindo boa parte da noite a conversa e depois continuou sua caminhada pela Vila Malacacheta, olhou ao longe a ponte e percebeu o vulto bem delineado de uma mulher de branco, serena e tranqüila. Já não sentia medo, o sentimento agora era de solidariedade. Vivia dentro de si mesmo o drama que assombrava principalmente o próprio ser que o criou.
*Rio Malacacheta é um rio que atravessa o município de Capanema, cidade do nordeste Paraense.