CARNES INCERTAS

CARNES INCERTAS

Não sei bem como tudo aconteceu. Quando estamos apaixonados, a vida passa a ser uma sucessão de fatos. Perdemos o controle e muitas vezes não se consegue coordenar as vivências, responder às indagações que marcarão para sempre a carne.

Estava no cinema do bairro, quando o vi pela primeira vez. O filme já era conhecido, a abordagem dos rapazes também - estavam sempre afobados tentando um sarro ou um beijo de língua.

Não era das mais experientes, mas confesso que não era santa. Muitas vezes deixei minhas coxas à mostra, molhei os lábios com a ponta da língua e abusei dos olhares tímidos e penetrantes para atiçar os rapazes. Provocava, mas com medo não me entregava. Homens adoram a ambigüidade.

Mas naquela tarde, havia um homem diferente, discretamente vestido e aparentando ter uns vinte anos. Fui agraciada, ele se sentou ao meu lado, ofereceu-me pipoca e assistiu ao filme. Realmente ele era especial. Tipo do homem para casar...

Conversamos um pouco no final da sessão. Ele se apresentou e disse ser o filho da Dona Maria. Tudo estava a meu favor, Dona Maria fora minha professora no primário, o que favorecia encontros futuros.

Passamos a nos encontrar todas as tardes antes de ele ir para o curso técnico de contabilidade. Nossos encontros eram os típicos de famílias tradicionais de subúrbio. Almoços de domingo, encontros com horário marcado sempre acompanhado...

Tanta vigilância não foi suficiente para represar minha gravidez. Quando dois querem arranjam lugar... Eu tinha acabado de fazer dezoito anos. Considerava-me uma mulher preparada e estava certa de ter encontrado um moço bom e respeitador para casar.

Casamos antes de sua formatura. Tudo foi de repente e desordenado - encontro, casamento, formatura, filho, procura de emprego... Tudo ao mesmo tempo. Se não fosse Dona Isaura, senhora de setenta e um anos, amiga de Dona Maria, nós não conseguiríamos ter sobrevivido a tudo

Ela nos emprestou a meia-água que tinha nos fundos de sua casa. Pequena, nossa primeira morada tinha três cômodos - quarto, cozinha e banheiro. Nosso doce lar!

Dona Isaura me ajudava muito com o bebê. Apesar de nunca ter tido filhos, era muito jeitosa. Todo dia, quando o relógio badalava cinco horas entrava em sua casa para se assear, colocava uma roupa limpa e uma lavanda barata. Não a via mais até o próximo amanhecer.

Meu marido quando chegava do trabalho tomava um cafezinho em sua casa, conversava algumas amenidades e vinha para casa cansado. Muitas vezes já jantado.

Dizia que a comida da Dona Isaura era especial. Eu nunca experimentei.

Com o tempo, ele ganhou a estabilidade em seu emprego e nós alugamos uma casinha no bairro, com dois quartos, cozinha e banheiro.

Precisávamos ter mais privacidade. Nosso filho já estava com um ano e, no quintal de Dona Isaura, nossas trocas de carícias tinham de ser no silêncio.

Minha vida sexual começou com meu marido. A penetração trazia outros sentidos mais profundos, a exposição do corpo e dos receios eram maiores. Antes minhas experiências eram apenas provocações e alguns arrepios, mas a intensidade daqueles arrepios havia ficado nas cadeiras do cinema... No casamento, mesmo com toda entrega, não conseguia sentir o prazer pleno tão falado nas novelas.

O receio do bebê na barriga, o choro da criança, a discrição em respeito a Dona Isaura, e depois a falta de tempo e conhecimento, fez com que nossos contatos sexuais fossem adequados a todas as circunstâncias, tendo que ser breves e comedidos.

- Trabalhei muito, estou cansado...

- Hoje não, estou com dor de cabeça

- Rápido porque ele vai acordar para mamar daqui a pouco...

- Dona Isaura está no quintal...

Quando fomos morar na nossa casinha, já estávamos acostumados com nossas circunstâncias. Tínhamos relações duas vezes na semana e em silêncio. Sentia prazer em nossa vida. Acho que me acostumei...

Ele passou a fazer serão todas as noites. Chegava sempre depois das dez da noite e já jantado. Disse-me que a firma mandava marmitas para quem fizesse horas extras.

Acreditei. Afinal, não tinha motivo para desacreditar. No fim de semana, almoçávamos sempre aos sábados na casa da Dona Isaura e aos domingos, íamos almoçar na minha mãe e lanchar na Dona Maria.

Experimentei enfim o tempero da velha amiga. Dona Isaura era uma exímia cozinheira.

Nosso pequeno crescia neste ambiente familiar de apoio e afeto.

- Amanhã não dormirei em casa. Irei viajar a trabalho...

- Volto na quarta...

- Não, vou direto trabalhar... Só volto à noite...

Viagens de trabalho começaram a compor nossa rotina. Toda terça meu marido dormia fora e voltava na quarta depois das dez da noite... Sempre muito cansado. Reclamava também de dor de cabeça e nas costas...

Nossas relações passaram a ser semanais. Transávamos sempre aos domingos. Quase sempre...

Nas fotonovelas que lia, imaginava mulheres desejosas, ardentes encontros, orgasmos profundos... Pensei em romances e paixões, com o tempo percebi que eram bobagens...

No ato sexual, o que sentia era a penetração, muitas vezes a apertar o colo do útero, outras a arder minhas entranhas. Sentia prazer com o gozo do meu companheiro e uma satisfação em ser mulher e estar preenchida em minhas cavidades. Mas só... Achava que o tal do orgasmo fosse invenção da televisão.

A vida continuava atropelando minhas vivências. A falta de tempo do meu marido, o excesso do bebê, o falatório das vizinhas...

Bem que minha mãe me avisou: Cabeça vazia, oficina do demônio...

Comecei a sentir o cheiro da roupa do marido, não encontrei aroma diferente... Tentei ter relações mais vezes...

- Me deixa dormir... Trabalhei muito...

- Tem remédio para dor de cabeça?

- Domingo...

As vizinhas continuavam a me alertar. A falta de interesse de um homem é sempre motivada. Certamente haveria um rabo-de-saia atiçando meu marido.

Tentei ser mais atraente. Colocava o filho para dormir, tomava banho e colocava perfume. Comprei até uma camisola azul-turquesa... Mas tudo em vão, o cansaço e as dores eram mais insistentes.

Fui procurar Dona Isaura para me aconselhar. Tinha vergonha de falar intimidades com minha mãe, assim procurei a velha amiga da família para desabafar minhas dúvidas e inexperiências.

Ela foi muito acolhedora, disse para que não me preocupasse, pois era uma agraciada - tinha um lar, um esposo bom e trabalhador e um filho saudável. Deveria ser mais compreensiva, entender a luta do homem e do seu direito de ter um lar hospitaleiro...

- Vá criança. Cuide de sua casa e não de ouvidos a essas mulheres desocupadas...

Passei um tempo sem ir ao portão no final da tarde. Queria me acostumar a guardar minhas inquietações no íntimo, não compartilhar meus problemas conjugais...

Mas foi meu filho de quatro anos quem realmente plantou a semente da desconfiança. Ele estava brincando de bola na rua da minha mãe com um coleguinha mais velho quando soube que o pai estava no bairro na última terça.

- Pirralho, vi teu pai na terça lá na minha rua.

- Que rua?

- Aquela ali. Duas pra baixo.

Em casa, quando já estava se preparando para dormir, ele me falou o que o Tonho tinha dito.

Coisas de criança, pensei. O pai nunca está na cidade às terças. O coleguinha não deve nem conhecer meu marido. Deve ter sido alguma provocação.

A semana passou e eu com aquela afirmação infantil a me alfinetar. Como na terça? Numa rua do bairro?

Na terça resolvi ir me aconselhar com Dona Isaura. Não tinha de preparar jantar e já havia cuidado das coisas da casa. Deixei meu filho na casa da vizinha e fui...

Quando cheguei, logo no portão, não pude acreditar no que via através da janela descortinada. Meu marido e Dona Isaura estavam sentados na sala conversando. Fiquei parada em frente da casa tempo suficiente para vê-los jantando e apagarem as luzes.

Depois não vi mais nada. Não sabia o que pensar... Fui para casa e tomei vários banhos, sentia-me suja...

No dia seguinte, para que anoitecesse rápido, fui num pequeno salão de beleza do bairro, pedi para que me transformassem. O cabeleireiro adorou. Era uma homossexual assumidíssimo que havia acabado de se casar com um "bofe" e adotou o filho dele.

- Já sou mãe.

- Coloquei um pouco de silicone semana passada, mas acho que não era de boa qualidade, ficou um pouco arroxeado no local...

- O bofe largou a mulher por minha causa. Veio de mala, cuia e filho.

Passei a tarde tentando me transformar, queria que o tempo passasse e que me trouxesse de volta a ignorância.

- Por que ele mentiria? Por que disse que estava viajando se estava na casa de Dona Isaura.

Confidenciei-me com a vizinha. Qual seria a melhor forma para abordar o assunto? Será que ele nunca viajou?

A vizinha me explicou que com os homens ou fingimos que não entendemos ou somos objetivas. Preferi ser objetiva...

Quando ele chegou, cansado e jantado, foi direto para cama. Não percebeu meu cabelo novo: anelado e ruivo.

Sentei-me ao seu lado e falei num rompante, quase que atropelando as letras.

- Já sei tudo!

- Tudo o quê?

- As terças?

- Como soube?

- Eu vi?

- É mais forte do que eu?

- Por que mentiu?

- Eu a amo!

- Quem?

- Ué, já não sabe tudo?

- Sei que mentiu e dormiu na casa da Dona Isaura. Não me diga que aquela velha está hospedando alguma vagabundinha?

- Durmo com Isaura

- Como?

- Eu a amo!

- É mais velha que sua mãe!

- É a mulher que amo!

- Desde quando?

- Desde menino. Foi minha primeira mulher...

- É uma velha!

- Uma mulher!

Nosso filho acordou e estava na porta do quarto com os olhos arregalados. Minha maternidade estava esquecida, aliás, minha vida estava esquecida. Eu estava enlouquecida com a traição. Não podia ser pior, com uma velha que ainda se fazia de amiga da família.

- O menino...

- Dane-se o menino...

- Ele está ouvindo!

- Uma velha depravada! O que sente quando passa a mão por aquelas pelancas desgrudadas dos ossos, seu cafajeste?

- Eu a amo!

Os diálogos tornaram-se repetitivos. A velha era uma mulher. A amante tinha setenta e três anos e a esposa vinte e dois. Nunca poderia falar isso para as vizinhas, seria muita humilhação. Como dizer que meu marido era amante da Dona Isaura, a senhora de setenta e três anos, amiga da família e madrinha do meu filho?

Enfurecida, fui tirar satisfações com minha sogra. Ela não se espantou, afirmou apenas que com o casamento pensou que o filho fosse deixar os romances da adolescência. Ele era homem e eu devia entender...

Como entender tanta degeneração? Um homem de vinte e quatro anos, casado e pai de família, amante de uma velha depravada?

O assunto continuou, os diálogos tornaram-se repetitivos. Eu tinha vinte e dois anos, um filho de quatro e um marido amante de uma mulher de setenta e três.

Tentei esquecer. Superar os problemas, afinal ele começou a ser amante da velha antes de me conhecer, mas quando ele chegava em casa tarde com aquele cheiro conhecido de lavanda barata, eu ia para cima dele. Batia com o que tivesse na mão. Ele assumia a culpa resignado, apanhava sem reagir e dormia.

Dei o ultimado: Ou ela ou eu...

Passou uma semana. Todos os dias ia ao cabeleireiro à tarde. Fazia hidratação e escova no cabelo, alinhava as sobrancelhas, mão e pé... Enfim tentava não pensar no assunto. O cabeleireiro também estava muito desiludido, o bofe o havia traído com uma menina de quinze anos e ainda deixou o filho.

- Não se pode confiar em homem. Deixou o filho e fugiu com aquela mulherzinha...

Um dia, quando voltei, encontrei o armário vazio e um bilhete: “É mais forte do que eu. Espero que um dia entenda.”

Eles se mudaram do bairro. Alguns domingos freqüentavam a casa da Dona Maria. Pelo menos as vizinhas não ficaram sabendo e no salão anunciei que meu marido havia fugido com uma menina linda de treze anos.

O cabeleireiro foi muito solidário com a minha dor.

- Essas meninas são as verdadeiras tentações do coisa ruim.

Ele ainda teve sorte de ser traído por uma tentação. Eu me assombrava com o motivo do meu infortúnio. Mas o cabeleireiro não poderia imaginar as mãos listradas de marcas do tempo, a pele flácida, enrugada e desgarrada do corpo, a voz fraca, a pelanca no pescoço, os cabelos ralos cinzas amarelados, o cheiro de lavanda barata... Tudo tão absurdo!

Será que ela tinha orgasmo?

Passei a me entregar a vários homens... Uma vez transei com três ao mesmo tempo... Conheci o orgasmo com o desejo... Não posso sentir um homem perto que exibo minhas formas, molho os lábios com a ponta da língua e já sinto aquela vontade louca de ser penetrada, de morder e lamber seu corpo, de fazer tudo o que ele quer...

- Doutora, não se assuste! Não me tornei uma depravada...

- Sim, doutora. Meu filho está morando comigo. Passa o dia na escola e a noite quando vou sair o deixo na casa da minha mãe.

- Não, doutora. Da minha vida ele não sabe nada, mas sabe tudo o que aconteceu com o pai. Nunca mais quis vê-lo...

- Na verdade, te procurei para ter certeza que tudo não é ficção. Gostaria que minha desgraça não ficasse enterrada no silêncio. Quero um processo espalhafatoso. Quero tudo o que ele tem, pensão, casa... Tudo! O juiz tem de saber que não é um adultério comum, trata-se de uma mulher experiente com setenta e três anos de conhecimento.

- Se não bastasse a traição, ele ainda foi morar com ela. A Dona Maria tenta disfarçar, mas quando o filho vai visitá-la, leva a velha... São discretos, mas estão juntos...

- Não consigo nem imaginar... Os dois juntos, trepando e se lambendo... As peles flácidas e engelhadas sendo perfuradas por aquele membro túrgido... Os seios caídos... A face enrugada rindo de satisfação e prazer... O pervertido, deitado nu ao seu lado, dormindo o sono dos amantes...

- Olhe, doutora, a minha bunda, não tem uma celulite, tenho peitos de menina. Olhe como são róseos e arrebitados. Durinhos... Nem parece que tive filho...

- Doutora, a senhora me acha bonita? Sentiria vontade de transar comigo...?

- Não, doutora! Não se assuste! Eu não gosto de mulher. Não quero, verdade... Só quero saber o porquê...

- Nem dinheiro a mulher tem. Só aquele corpo ossudo, peles desgarradas, rugas e cheiro de lavanda barata... E agora, tem um homem em tempo integral, não tem vergonha de roubar o marido das outras. Mulher sem moral, depravada...

- O que aquela velha safada tem que eu não tenho, doutora? Por que ele preferiu ficar com ela?

...

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 13/02/2005
Código do texto: T4302