Vida de Herói
O herói aterrissara no beco a procura da voz que clamava por ajuda. Deparou-se somente com um garoto meio que entre sujo e maltrapilho, que o observava com dois pequenos olhos sagazes. Quando indagado sobre qual o perigo iminente capaz de levá-lo a solicitar os préstimos do herói, limitou-se a responder que, por meio daquele pequeno ardil, o atraíra para relatar algo que era de seu interesse.
Um pouco contrariado com aquela situação inusitada, mas já que estava ali, pensou que mal não haveria em ouvir o que o jovem teria a dizer. Afinal, os seus atos heróicos acrescentavam diariamente milhares de fãs ao redor do mundo que o consideravam um modelo na luta pelo bem e pela justiça. Até aquele momento salvara milhares de pessoas e até o planeta algumas vezes. Era preciso fazer o social de vez em quando. Pegava bem para a sua imagem profissional.
Após um audível e longo suspiro, daqueles que costumam preceder declarações incômodas, o garoto falou. Primeiro pediu de maneira educada para que não fosse interrompido e que o herói apenas ouvisse atentamente. Prometeu ser breve, pois não desejava atrapalhar demasiadamente as atividades do herói naquele dia de sol.
Começou com uma frase inédita para os ouvidos do herói: disse que sentia muita pena da vida que o herói levava e que sabia exatamente o motivo de sua depressão. Com um leve ar de espanto o herói ouviu o garoto explicar que considerava não somente muito solitário alguém ser o último espécime vivo de sua raça, mas também que intrometer-se sem ser chamado na vida das pessoas de outro planeta era um sinal claro de solidão. Os solitários buscam desesperadamente a atenção para si, mesmo inconscientemente, justificou. E o pior era que, segundo o garoto, a pretensa ajuda do herói provava constantemente a incompetência humana em resolver suas próprias dificuldades. A humanidade seria como uma criança travessa superprotegida pelos pais, que conseqüentemente nunca aprenderia sobre a responsabilidade. Caso somente os com super poderes fossem capazes de resolver os problemas então a humanidade como um todo estaria fadada ao fracasso. Pela lógica de Darwin, sobrariam somente os heróis.
Explicou ainda que os inocentes (crianças e loucos) que acreditassem no herói e começassem a pular de prédios, a dispararem as armas uns contra os outros e a tentarem ser mais velozes que trens e ônibus, assim como o herói fazia sem esforço algum, acabariam machucados ou até mortos. Se as crianças descobrissem, pela teoria ou pela experiência, que aqueles atos seriam eternamente impossíveis para elas, perderiam a sua confiança ingênua no sonhar. Sentir-se-iam enganadas. Depois de vários anos e de muitas sessões de terapia talvez fossem recuperadas.
A parte que mais pareceu afetar o ouvinte foi quando o menino disse que o herói era injusto com os bandidos. Enquanto o herói fora adotado por uma família que lhe dera amor, carinho, segurança e educação, a maioria dos criminosos não teve a mesma chance. Foram criados em lares com pais alcoólatras, com mães que apanhavam todos os dias, e abusados sexualmente em casa, na escola e na igreja, eram forçados a aceitarem as injustiças calados e cresceram em lugares onde quem mandava ou era bandido ou era corrupto, quando não era ambos. Nesta hora seria extremamente fácil o guardião da moral e dos bons costumes chegar batendo, prendendo, sem julgamento justo nem visão social alguma. Os verdadeiros heróis eram aqueles que viviam em meio aos tiroteios, seqüestros, governantes corruptos e gananciosos, isso sem apelarem para o crime ou terem super poder algum além daquele conhecido como Esperança. Mesmo apanhando, mesmo sofrendo, eram corajosos heróis sobreviventes de uma guerra diária. Muitos morriam nesta guerra, mas morriam como heróis.
Desejando encerrar a sua argumentação, o garoto concluiu dizendo que o herói fora criado somente para representar a ideologia imperial de uma nação dominante. Tanto é que as cores da bandeira do país que ele defendia, representadas vividamente em seu uniforme, não eram tão benquistas no resto do mundo, onde aquela nação heróica matava, destruía e desrespeitava a vontade dos outros povos (semelhante ao que o herói intrometido fazia) e impunha uma justiça politicamente parcial. O herói era uma ferramenta de propaganda, submissão e consumo para os fracos continuarem servis aos fortes. A seleção que o herói fazia de quem salvar era outro fator explícito de injustiça, já que as pessoas no mundo todo continuavam a morrer, a sofrer acidentes, violências e injustiças. Muitos se perguntavam qual o critério utilizado para justificar alguns serem socorridos pelo herói e outros não. Os que eram pessoas melhores tinham a preferência? A quem caberia o direito de classificar os mais merecedores? O menino finalizou deixando uma pergunta no ar: quem o herói achava que precisaria mais de um médico, os saudáveis ou os doentes?
O herói meditou cabisbaixo durante alguns segundos sobre todas aquelas palavras duras e quando levantou a cabeça, não viu mais o menino. Procurou-o rapidamente nas redondezas, mas nada encontrou. Ficou em dúvida se o menino realmente existira ou se fora fruto de sua imaginação. Todas aquelas palavras martelavam profundamente em sua cabeça e algo ardia em seu peito. Dizem que fora a primeira vez em que o herói tinha uma expressão dolorida em sua face e a última em que fora visto voando pelos céus da metrópole. Mas correm boatos de que, até hoje, se você pedir a ajuda do herói com muita fé, ele poderá vir lhe auxiliar uma vez ou outra, mas sem que ninguém o veja.