Nova história de um ovo apunhalado
"Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo.
Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando."
O ovo e a galinha-Clarice Lispector
Dentro de uma casca - ele repetia, já fazia cinco dias. Quando abria a boca, agora tão seca, murcha, era pra dizer, dentro de uma casca.
Ele antes era muito expansivo, não sei bem se é a palavra certa, mas é a que achei, e com ela quero dizer que ele buscava, nunca estava parado, até na hora de dormir, praticava o sonho consciente, lúcido. E agora estava encolhido, seus olhos que tomavam mais a cada dia um tom de âmbar, refletiam uma rocha e um grito de guerra armada.
Olha, não vou dizer que eu não me assustava quando tinha coragem de encará-lo e sim, eu corria cada vez que aqueles olhos duros me encurralavam, me esmagavam, corria feito uma criança pra debaixo do cobertor. Não queria compreendê-lo, desejava que ele escondesse aquilo de tudo que se derramava cada vez mais fundo nele.
Foi ontem que já não ouvi mais o seu fio de voz saindo embargado, que parecia um rouco a querer gritar. Senti um alívio imenso, não minto, e demorei um tanto para abrir a porta de seu quarto, não queria perturbá-lo, talvez tivesse chocado. Mas quando o silêncio passou a sussurar, caminhei lentamente abri a porta e o vi ali envolto de cacos, tão bonito, limpo, os olhos de vidro, parados e quebradiços, havia tocado a casca.
Enfim eu poderia voltar a comer ovos.