O Recanto dos Malditos

O Recanto dos Malditos

No julgamento de uma alma condenada, da minha, os três juízes supremos do universo decidiam o destino desse réu, pelas atrocidades cometidas em todas as suas vidas passadas.

- O tártaro é o lugar mais indicado para uma alma tão vil!

- Não! Ainda é pouco! Ao mundo de sonhos, na ala dos pesadelos, sendo atormentado constantemente pela loucura!

- Tenho uma solução melhor - diz o último juiz que detém o poder, definindo a sentença. - Será condenado a nascer no Brasil, em uma família pobre, com um pai drogado e uma mãe doente, numa favela no extremo subúrbio de uma periferia esquecida... Em Francisco Morato.

Essa é a única explicação aceitável pra justificar o meu sofrimento. Provavelmente sofro por ter sido muito cruel em outras vidas. Um assassino em série, talvez? Um ditador? Só assim posso entender e aceitar o que vejo agora.

Meu padrasto caído sobre o madeirite usado como porta, em sua camisa manchas de sangue e vômito, o barro no joelho e os arranhões na cara indicam que hoje, além de beber, apanhou, caiu e desmaiou. Minha mãe esbravejando, mas compadecida, pede minha ajuda para levá-lo à cama. Entre os xingos e ofensas, pede misericórdia à Deus. Finjo que não é comigo e continuo lendo o gibi em minhas mãos.

O ódio se volta pra mim, ela me ofende por não ajudá-la. Ignoro-a, é melhor isso a dizer o que penso. Fecho o gibi e levanto da cama. Meu sobrinho chora no berço, não sei se é de dor ou de fome. Minha irmã saiu inexplicavelmente ontem à noite e até agora não voltou, deixou o filho aqui pra cuidarmos, isso também é normal. Imagino que esteja fumando crack pra variar. Gosto do meu sobrinho, mas por gostar não tenho que assumi-lo, todo mundo em casa tem problema, o mais normal sou eu e, por isso, eu sou a bengala de todo mundo? Não quero isso pra mim. Não fui eu que fiz o filho, não mandei ninguém beber e não casei com um bebum, então... “Tô saindo fora”.

O vento gelado corta meu rosto, Vedita sai da casinha de papelão improvisada e olha pra mim com um olhar meigo, cabisbaixo e abana o rabo, parece ser o único que me entende. Passo a mão sobre sua cabeça e ele me lambe. Se eu fosse ele, sairia fora, sumiria. Procuraria donos normais.

Já está escurecendo e as luzes dos postes se acendem dando um aspecto ainda mais triste na quebrada. Aqui, em cima, venta mais que o normal. A minha casa é destacada de todas as outras. A mais próxima fica há uns 15 metros, é o barraco de dona Domingas e seu filho louco Jeremias.

Desço a trilha até a rua pensando na última pregação do pastor, como é contraditória e irônica essa vida. Você é obrigado a suportar a dor, ainda que ela te mate por dentro, mas se você se matar, irá para o inferno. Tenho minhas críticas a Deus, mas é melhor deixar quieto, se com ele está embaçado, imagina sem ele. Mas às vezes da vontade de me jogar dessa vida.

Minha mãe contraiu AIDS do meu pai, que faleceu na cadeia quando eu tinha três anos, transmitiu ao meu padrasto por falta de informação, ele justifica a bebedeira e sempre a acusa de destruir sua vida. Já a agrediu algumas vezes, mas depois que cresci, ele parou, tem medo, pois o ameacei com uma faca. Não somos chamados em festa pelos vizinhos e ninguém nos visita há anos. Além do preconceito pela doença, minha mãe tem a fama de ser barraqueira, e todo mundo pensa que também tenho AIDS .

Não sinto falta de visitas, não tem espaço pra sentar na casa, quer dizer moradia: um amontoado de papelão, caixas, latas, outdoors e coisas inimagináveis que se pode encontrar no lixo.

Nos sustentamos catando papel. Estou seguindo os passos do meu padrasto, o carrinho dele ficou pra mim, é personalizado e cheio de parafernálias. Quando o construiu, alguém sempre fazia uma piada, elogiava a criatividade, ele era muito bom com as mãos, mas não consegue mais puxá-lo e agora eu que gerencio a empresa. O que tenho é aquilo que acho na rua (grande riqueza).

Acho muito louco “mangá”, coleciono alguns. Não sigo as séries, mas já achei bastante no lixo. Curto desenho japonês. Queria poder comprá-los, mas está fora de cogitação. Já encontrei muita coisa boa no lixo: uma estante, relógio, televisão e até uma enciclopédia antiga que deixo pra enfeitar a casa. Minha mãe reclama, pois não temos espaço, mas é “pras minas pensar” que sou intelectual (como se alguma mina viesse aqui).

Geralmente meus amigos são pessoas em piores condições que a minha e acredite, tem bastante por aqui, mas dois em específico é com quem passo a maior parte do tempo.

Jeremias ou Jereba que já tem 33 anos, ele tem alguma doença mental, diz que sou seu melhor amigo. Às vezes tenho dó dele (como se pudesse ter dó de alguém). Ele não evolui, é da geração do meu padrasto e todo mundo hoje tem família. Jeremias ou Jereba ainda brinca e briga com os moleques na rua por pipa. Eu tenho16 anos e já acho que ele é infantil demais pra andar comigo. Às vezes, tenho que armar estratégias pra sair de casa e ele não me seguir. Não é por mal, mas já não sou bonito, sou pobre, ainda ser arrastado pelo louquinho da vila, num dá. Se ele me ver descendo pra rua, em alguns instantes, desce a trilha também.

No caminho já vem trazendo alguns troncos e pedaços de madeira de uma construção inacabada, uma fogueira, a ideia é boa e não temos nada melhor pra fazer mesmo. O auxílio com a carga, colocando no canto da rua onde bate pouco vento, em silêncio, como dois homens das cavernas em um ritual, montamos a fogueira. Ateamos fogo e abanamos para que ele se espalhe, em instantes o fogo já passa de meio metro de altura.

Ainda em silêncio, assistimos a fogueira como uma tela de cinema. São fascinantes suas labaredas dançando e o calor consumindo tudo que toca, inclusive, a madeira frágil de compensado esfumaçando e escurecendo lentamente, até uma grande chama surgir com tons meio azulados. Faz-nos lembrar de magias de vídeo game, cosmos de um Cavaleiro do Zodíaco ou golpes do Dragon Ball, bem louco.

Quando o silêncio passa a ser rompido apenas pelos estalos da madeira queimando, olho pro Jereba, e começo a imaginar o que ele estaria pensando, com seu olhar fixo no fogo, sentado sobre os calcanhares com as mãos entre as pernas e a cabeça, inclinada de lado. Às vezes, ele é tão inocente de uma felicidade que me irrita, cumprimenta todo mundo mesmo sem que as pessoas correspondam, passa a tarde brincando no mato sozinho ou com as crianças, não pensa em mulher, nem em rolê, não tem vaidade, acho que ele realmente é feliz.

Queria ser retardado também, talvez assim fosse feliz. Só estou aqui porque não tenho opção.

De repente, alguém grita palavrões do alto do barranco, o Costela. Com uma sacola plástica, “trouxe a janta moleque!”, diz ele sorrindo. Dentro da sacola mais ou menos uns dois quilos de batata doce pra assar no fogo, "salvou a noite”. Levantamos a brasa com um graveto e colocamos a batata por baixo.

Gosto de andar com o Costela, ele sim é um moleque desenvolvido, vários malandros o admiram, por causa do seu irmão que foi preso antes dele nascer, uma lenda por aqui. Além do mais, ele faz o tipo: neguinho forte, cara de maloqueiro, as meninas sempre olham. Ele também é bem mais comunicativo, sabe chegar. Quando disse que só os piores andam comigo, não menti, seu pai matou sua mãe e depois se matou. Costela foi criado pela avó que tem Alzheimer e, às vezes, se esquece quem ele é.

Assim formamos "o trio renegados", a má referência do bairro, cotados a morrer cedo, detestados pelo comércio local. Costela tem andado cada vez menos comigo. Já não quer mais trabalhar com reciclagem, tem vergonha e diz que está entrando pra outra empresa. Conhecendo bem as oportunidades de emprego por aqui, já até imagino.

Não tenho nada contra, não. Viver essa vida de merda sendo um eterno submisso e ainda ter que agradecer pela miséria de cada dia, boa sorte pra ele. Vou sentir falta. “Tô ligado”, ele não vai querer andar comigo, nem combina ele de tênis “da hora” e óculos de 600 contos com um maluco de chinelo e calça de moletom rasgada, “nem vira”.

Sabendo dos riscos, estar numa fogueira de quebrada assim, com a polícia matando adoidado, não é uma boa ideia. Mas na real, se a morte vier, talvez seja até melhor mesmo. Por isso, nem ligo, do jeito que tenho sorte posso tomar mesmo um tiro na espinha, fico aleijado e sem pau. Mas não morro.

As batatas já estão em brasa e as tiramos do fogo. Esperamos esfriar, completamente queimadas por fora e cruas por dentro, com um sabor maravilhoso. Tenho a impressão de que somos sobreviventes numa selva e vivendo exclusivamente por nossa conta, como desbravadores (que de certo modo somos). Tenho fogão, poderia fazer isso em casa, mas o fato de ser aqui com os camaradas tem um gosto especial.

Já passam das dez e meia, acho que vou pra casa, amanhã o mercadinho joga fora as caixas de papelão, tenho que chegar cedo pra pegar, se não “já era”. Pela movimentação, os moleques também já vão sair fora, “firmeza gordão, seu pai vai te bater se você chegar tarde” e cai na gargalhada. Costela sabe que odeio meu padrasto, por isso me provoca, respondo: “melhor você ir embora viado, se não sua avó louca chama a polícia pra você... entrando em casa essa hora”.

Todo mundo ri da desgraça um do outro, o tipo de brincadeira de condenado pra condenado. De outra pessoa isso seria intolerável, mas como aqui é a fogueira dos malditos, passa batido, “bora subir Jereba, já tá na hora do seu gardenal”. “Vai sifudeô!”, ele responde sem argumento.

Costela sai rindo alto em direção a sua casa. Continuamos subindo a trilha, “firmeza Jereba” , “falou gordinho”.

Distanciamo-nos e voltamos cada um pra sua masmorra individual, num recanto de dor e sofrimento, solitário. Tento me apegar a um pensamento positivo pra ser otimista, mas é difícil. Uma alma condenada dificilmente é agraciada pelo acaso e coincidência.

Dou um pedaço de batata pro Vedita, nem sei se cachorro come batata, mas com a fome que ele está, ele vai comer. Adentro a casa, mas não acendo a luz, todo mundo já dorme, não quero acordar meu sobrinho, se não, sou eu quem não dormirá. Deito na cama, pensando em mil coisas: sair dessa vida, ajudar minha mãe, arrumar uma casa nova, um emprego novo e um carro, uma namorada, poder comprar uns gibis, uma TV e, por fim, lembro que preciso dormir. Se Deus ajudar, amanhã estouro com aquelas caixas e faço uns trinta contos no dia.

Sou inteligente, não bastante para triunfar graças a minha genialidade, mas o suficiente pra entender o mundo que me rodeia. Sei que a conseqüência disso tudo não é culpa minha, mas isto não me conforta.

Uma lágrima escorre em direção à orelha, já estou deitado, o silêncio e a escuridão são os únicos companheiros, será que é assim na morte? Queria esta paz pra sempre, queria dormir e não acordar mais.