COMO A MÚSICA DO TOM

                          Arnaldo baixou o jornal para poder observar a  mulher dedilhando  o teclado  do computador, com os óculos de grau postados no limite do nariz. Pelos olhos dele escapava, de forma  indisfarçável, a  ternura  que provavelmente estava instalada em cada célula do corpo.
                             Realmente, ele amava aquela mulher. Os fones  do  MP4  nos ouvidos traziam uma música de Tom Jobim dizendo "...porque tu foste prá mim, meu amor, como um dia de sol...".
                            Conhecera Janete no Supermercado Zaffari, da Ipiranga. Compras de fim de mês. O descuido derrubara o pote de manteiga, constrangedor, até vê-la, aguardando para  apanhar  o mesmo produto. Recuperou o pote desastrado e pediu desculpas. Ela sorriu e o dia, que tinha sido nublado, foi presenteado por um sol de primavera e, em plena manhã, ele pode perceber o perfume de "dama da noite" se espalhando pelos corredores da loja. Relembranças de um tempo de amar. Choque do inusitado. O sangue disparava tresloucado pelo corpo, calor a nível de febre, difícil sustentação das pernas fragilizadas num átimo de ausência mental. Recuperado, devolveu o sorriso, renovou as desculpas e acelerou o carrinho como se estivesse em jogo a pole position no grande prêmio de Mônaco. A imagem dela ficou martelando a  memória, até  se  materializar no reencontro da fila dos  frios. Conversaram  banalidades sobre preferências de embutidos e, por fim, trocaram telefones.
                                  Daí, até casarem, foram três meses.
                            Agora, sete anos depois, muitas viagens, nenhum filho, sucesso profissional de ambos, ela pesquisava, na internet, um apartamento para alugar. Estava indo embora. Fora decisão dela, inesperada e comunicada numa manhã de primavera, radiante de sol. No  momento  do comunicado, passaram pela mente de Arnaldo todos  os  momentos  bons  que haviam compartilhado. Muitos dias de sol, alegrias, intimidades, apegos e desapegos. Mas acima de tudo, na lembrança de Arnaldo, estavam os dias de sol.
                                   Janete  desligou  o computador e comunicou que havia encontrado o apartamento que procurava. Naquela tarde iria até a imobiliária para fechar o contrato de locação.
                    Arnaldo levantou o jornal e fingiu que continuava lendo um artigo qualquer. A última esperança tinha acabado naquele momento. Com os olhos fixos no jornal, sentiu a tristeza ir se apossando lentamente do corpo antes angustiado. Relaxou, então. Tudo estava feito. Nada mais dependia dele. Depois de instantes, dobrou o jornal  e  guardou-o  no  baú onde guardava os jornais antigos, com notícias ultrapassadas e irrecuperáveis.
                                     No  dia  da mudança, Arnaldo permaneceu no escritório e, ao voltar para casa, tudo havia se re- solvido.
                                     Observou as ausências, serviu-se de uma dose de whisky e colocou para tocar a música "É preciso dizer adeus", do Tom.
                                 “É preciso dizer adeus”
                                       (Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
        
                            “É inútil fingir, não te quero enganar,
                             é preciso dizer adeus.
                             É melhor esquecer, sei que devo partir,
                             é preciso dizer adeus.
                             Ah! Eu te peço perdão,
                             mas te quero lembrar
                             como foi lindo o que morreu.
                             E essa beleza do amor que foi tão nossa
                             e me deixa tão só, eu não quer perder,
                             não quero enganar, não devo trair,
                             porque tu foste prá mim, meu amor,
                             como um dia de sol.”