O DIA EM QUE A MELANCIA FALOU
O DIA EM QUE A MELANCIA FALOU
Aquela pequena aldeia ficava lá no fundo do vale. Era cercada por lindas montanhas. As mais próximas eram de um verde muito intenso, salpicadas aqui e ali por rochas, ora amareladas, ora róseas, outras esverdeadas de belos ou estranhos formatos. Aninhavam-se em meio a grupos de pinheiros que as escalavam, diminuindo seus tamanhos pelo efeito da distância, até ficarem bem diminutos no horizonte muito alto. As mais distantes eram todas azuladas, cobertas de nuvens brancas, que lá bem no alto deixavam ver o céu muito límpido de um azul brilhante como seda.
Das janelas das casas todas de madeira, umas pintadas de branco, algumas de azul ou verde, outras de rosa bem claro, dava para se ver as linhas sinuosas das estradinhas, que a partir da aldeia serpenteavam pelas montanhas até suas alturas.
Ao longo dessas estradas, tinham muitas fazendas com diversos tipos de plantações; gados, ovelhas, cavalos e também muitos lagos e riachos cercados de bosques de árvores coloridas, sempre cheios de pássaros em revoadas.
Nesta aldeia viviam pessoas muito educadas, inteligentes e felizes. Ali também morava o senhor Estevão Ferraro com a esposa Catarina e os filhos: Rafaela, Gabriela e Miguel o mais novo dos filhos que contava oito anos de idade.
O senhor Estevão Ferraro tinha por hábito sair de sua casa toda manhã para um passeio. Gostava de caminhar bem cedo, por uma daquelas estradinhas até o alto das colinas, que vistas de longe, pareciam azuladas. Para estes passeios nem precisava ter o trabalho de acordar Miguel, que já estava de pé logo que amanhecia acompanhado de seu inseparável cachorrinho, da raça basset, que se chamava Guri. Baixinho, perninhas curtas, comprido como salsicha, todo pretinho, e de grandes orelhas caídas. Cãozinho esperto esse tal de Guri! Não precisava ser chamado, era ele que vinha acordar Miguel lambendo o rosto, o nariz do menino. Às vezes Guri tentava acordar também as duas meninas, principalmente Gabriela, a do meio, que resmungava, logo dizendo: - Passa Guri, vá lamber a Rafaela, vai! Como ele era esperto demais, sabia que Rafaela – a mais velha – não lhe dava moleza logo lhe dando uns tapas pelas orelhas.
Logo o trio matinal, já estava andando por uma daquelas estradas, que escolhiam de acordo com o lado que Guri desandava a correr acompanhado de Miguel.
Enquanto caminhavam, o senhor Ferraro proseava com Miguel, contando uma coisa e outra, explicando sobre uma planta, falando sobre uma vaca e seu bezerro, sobre os carneiros que eram tosquiados para se retirar a lã, sobre a plantação e colheita das uvas, mostrando a Miguel os parreirais por entre a neblina do frio da manhã.
Miguel a tudo escutava, caladinho, prestando muita atenção. Ferraro admirava a inteligência do garoto, que tendo só oito anos, compreendia tudo. Prova disso que a cada final de caminhada, de regresso, contava de forma clara para a mãe e as irmãs, tudo aquilo que o pai lhe ensinava ou o que passava pela sua mente e diante de seus olhos.
O percurso que faziam era longo. Miguel caminhava, ora muito depressa, ora até correndo atrás do Guri. Isto o cansava e de vez em quando encarapitava na corcunda do pai, que se divertia, imitando que “era um cavalinho alazão”, aos pulos de Guri, enciumado, nas pernas de Ferraro. Isto tinha duas vantagens, não expunha o menino a muito cansaço como também tornava a caminhada mais alegre.
Já tinham percorrido para mais de um quilômetro, quando chegaram em uma curva da estrada, de onde se descortinava a paisagem ondulada de veludo verde das colinas lá embaixo, se estendendo ao longe. Um silêncio macio, um sussurrar de vento leve e frio, quebrado de quando em quando pelo mugir de um gado bem longe, um ladrar muito distante de um cão, ou um belo canto de passarinho. Nisto Ferraro pensava: - É meu presente por estar vivo, o Criador nos dá a felicidade de graça e quanto mais simples melhor!
Cercas de arame farpado cercavam a estrada pelos dois lados. Um dos lados da estrada tinha um alto barranco e a cerca passava lá em cima. As fileiras de mourões caiados, em perspectiva, se alinhavam uns após os outros, até sumirem no horizonte azul.
Nesse momento de observação e pensamentos, Estevão Ferraro, olhando pra o lado direito da estrada - oposto ao barranco - viu alguma coisa que lhe prendera a atenção. Chamou Miguel, que logo veio com sua sombra, o cachorrinho comprido. Levantou o filho, colocou-o sobre uma pedra do outro lado da margem da estrada e seguiu em direção ao objeto que havia lhe prendido a atenção e o atraia tanto. Curioso, foi passo a passo para aquele lado, conferir se o que viu de longe era mesmo o que tinha pensado. De perto, constatou que não havia se enganado, ficou muito satisfeito, deu uma olhada sorridente por cima dos ombros em direção a Miguel. O menino ficou pensando o que teria seu pai visto que lhe causou alegria e sorrisos.
Bem de perto da cerca, Ferraro viu que ali estavam à sua espera as mais belas melancias que tinha visto nos últimos anos, crescidas naturalmente, com a força da boa terra da região.
Ferraro e Miguel, pela longa caminhada, ar puro da manhã, tinham aguçado a fome e a sede e... aquela melancia ali...! Uma delas bem perto da cerca...
“Seu” Ferraro não se continha. Olhou para a direita, para a esquerda, depois para a frente até onde podia ver, e para a retaguarda onde estava Miguel, ninguém mas além dele, Miguel e Guri. Sentiu-se completamente à vontade. Aproximou-se da cerca, levantou um fio de arame, abaixando-se passou para o outro lado onde estavam aquelas frutas maravilhosas, rajadas de verde claro e escuro, redondas como bolas gigantes, da melhor qualidade. Tudo sob o olhar espantado de Miguel.
Cá entre nós, o apetite e a euforia do bom e honesto Estevão Ferraro o estavam levando a cometer um erro!
Quando levou a mão acariciando a primeira melancia – o menino Miguel que a tudo observara – antes que o pai levantasse a fruta do chão disse assim: - Papai, você olhou para a direita, depois para a esquerda, para frente e para trás, mas acho que se esqueceu de olhar para o lado mais importante...!
Ferraro já quase adivinhando seu enorme erro, meio acanhado e gaguejante, pergunta a Miguel: - Para qual lado papai deixou de olhar, filho !?
E Miguel, impressionando ao pai com a agudeza da observação responde: - Você deixou de olhar para cima, papai !!
Nem será preciso dizer que Estevão Ferraro voltou rápido para a estrada, ficando como um pimentão vermelho de tão envergonhado.
Até “dona” Catarina e as meninas perceberam que naquele dia, ao contrário Miguel estava calado, e Ferraro passou o dia todo, em sua marcenaria, muito pensativo...