O JOGO
O JOGO
J.B. Xavier
Houve um tempo em que fui motoqueiro. Isso mesmo! Tempos loucos, aqueles. Em nossa turma de motodoidos, havia muitas máquinas de tirar o fôlego. Cada um de nós queria superar o outro em detalhes de excentricidade. Então, equipávamos nossas motos com as coisas mais estranhas possíveis. Máscaras, tatuagens, correntes, capacetes em forma de caveira eram as coisas mais comuns que usávamos.
De todos os componentes de nosso grupo – que deveria ter umas vinte pessoas, uma mais doida que a outra – havia um sujeito que se destacava, além de mim, pelas loucuras que fazia sobre sua moto.
Como eu poderia descrevê-lo? Apenas doido? Não! Isso não lhe faria justiça! Ele era também o “D. Juan” da turma. “El Matador” era um dos seus apelidos. “Vaselina” era o outro. Sei o que estão pensando. Devem ter concluído que os apelidos eram por motivos óbvios. Em parte sim, em parte não. Explico: Não havia nenhuma das garotas do grupo– algumas tão loucas quanto nós – que não o assediasse: Também, não era para menos! Ele era o único do grupo que tinha uma Harley-Davidson. Mas sua moto não era uma Harley qualquer! Era incrementada até nos documentos, pois havia pertencido a um cônsul, que ao deixar o país, vendeu-a por um preço bem camarada. Eu perdi essa oportunidade, mas ele não. Isso explica o primeiro apelido.
O segundo veio da verdadeira adoração que ele tinha por aquela moto. A tal ponto que uma de suas esquisitices era levar sempre consigo uma latinha de vaselina. Ora! – poderia você perguntar – o que há de esquisito em se andar com uma lata de vaselina no bolso quando se tem tantas garotas em volta? Nada! – eu responderia – se a vaselina não fosse usada na moto! Mas, mal ameaçava chuva e lá estava ele besuntando cuidadosamente todos os metais polidos da Harley, para evitar que se molhassem e enferrujassem. A moto era sua obsessão.
Já eu tinha uma Kawasaki, também muito linda, mas que não chegava aos pés do “frisson” que a Harley dele causava. Agora, havia uma coisa na qual éramos iguais: As loucuras que fazíamos sobre essas máquinas maravilhosas
Ele e eu éramos as estrelas do grupo “Anjos do Asfalto”. Vivíamos competindo para ver quem fazia as maiores loucuras. Ele fazia coisas impossíveis sobre sua moto, e era tão grande a simbiose entre eles, que parecia que ambos conversavam entre si e combinavam as eletrizantes manobras que causavam arrepios mesmo nos caras mais traquejados, como eu.
Por minha vez, eu alcançava, com minha “japonesa” – como eu carinhosamente chamava minha Kawasaki – limites muito além daqueles para os quais ela havia sido projetada. Então escolhíamos uma rodovia deserta, no interior do estado, e lá fazíamos as mais irreverentes loucuras que a irresponsabilidade e audácia da juventude permitem.
Depois, nos reuníamos num bar para contar o que aprontávamos. As palmas dos ouvintes da roda, definiam o mais ousado, e este era declarado vencedor, podendo então ficar sem pagar sua parte da conta.
Mas um dia “Vaselina” engraçou-se por uma garota nova na turma. Ela era muito jovem e bonita. Tinha também uma moto de fazer inveja. Não era própria para manobras radicais, é verdade, mas, em compensação, rivalizava em beleza com a Harley de “El Matador”. Mais tarde ficamos sabendo que ela era filha de um motoqueiro americano famoso, que pertencera ao “Hell’s Angels” – um grupo de motociclistas arruaceiros com adeptos em praticamente todo os Estados dos Estados Unidos, e que deu muito trabalho ao FBI nos anos sessenta. Ela nos contara que para não ser preso, seu pai fugira para o Brasil, trazendo com ele a moto, e aqui vivia sossegado, trabalhando como vendedor.
Com uma biografia dessas, é lógico que ela virou a mascote do grupo, e o fato de termos entre nós uma moto que já rodara pela “Route 66” nos enchia de orgulho e era motivo de muita inveja dos outros grupos de motoqueiros.
Vai daí que, por “afinidade mecânica”, eu diria, Vaselina começou a levar mais a sério o namoro com a sobrinha do “Tio Sam.” Ele me disse que o que mais o atraía nela, é que seus pais ainda mantinham um pouco do sangue do “Hell’s” nas veias, e que se mantinham bastante irreverentes.
Certo dia, ele me convidou para visitar a casa de sua garota. Queria que eu conhecesse os “velhos”. Disse-me que eu iria gostar muito de conversar com eles. “Aqueles velhos são meio pirados” – preveniu-me ele – Volta e meia fazem uns jogos meio idiotas...Coisa prá inglês ver – concluiu sorrindo.
Eu só aceitei porque Vaselina me garantiu que sua garota tinha uma irmã maravilhosa, que ansiava em subir numa moto, mas seu pai ainda não permitira, porque era muito jovem. Então fui!
Cheguei à casa dos ianques pouco antes do almoço. Eles moravam próximo a uma rodovia de acesso, a uns dez quilômetros do centro, numa bonita casa onde havia um pequeno jardim e uma varanda que lembrava as residências sem cercas do Kentucky.
As motos de Vaselina e sua garota estavam estacionadas em frente da varanda, sob um sol morno de fim-de-tarde de um dia que havia sido muito quente. Estacionei a minha, próximo às deles, enquanto observava uma tempestade se formando por sobre os morros distantes. Um negrume avançava pelo horizonte anunciando que haveria uma tormenta.
- Vai chover - disse “El Matador” - que me esperava na varanda.
- É. Prepare sua latinha – disse eu, enquanto tirava minha jaqueta, reluzente pelos metais cromados. Desafivelei o cinto onde, num pequeno coldre, estavam um nunchaku e um pequeno pedaço de corrente, e fui abraçar meu amigo.
- Venha conhecer esses velhos malucos, e não estranhe se eles inventarem alguma brincadeira imbecil para passar o tempo. Eles sempre fazem isso! E veja que delícia de cunhadinha eu tenho – completou piscando maliciosamente.
Nem vou fazer vocês perderem tempo em ouvir o quanto fiquei encantado com os americanos. Eles narraram muitas aventuras, fugas cinematográficas, viagens de um canto ao outro do país, acampamentos, e finalmente, fiquei hipnotizado ao ouvi-los descreverem os dias loucos que passaram no Festival de Woodstock.
Mais tarde, quando foi anunciado que a janta já estava à mesa, o velho “Hell’s” levantou-se e falou bem alto, com sua voz grossa e seu sotaque carregado:
- Atention, aí, please, everibody! As empregadas vão embora agorrua. Therefore, não vai ter ninguém para lavar a louça. So, vamos fazer um brincadeirrua: O primeirrow que falar ou que sair do table depois que tiver terminado de almouçar, lava tiudo sozinho, Ok?
Dei risada daquilo, pois queria ver como essa brincadeira terminaria. Vaselina me olhou com cara de “eu não disse?”
Mas o almoço transcorreu no maior bate papo e foi um grande barato ter curtido as histórias que os gringos tinham para contar. O problema começou a surgir quando fomos, cada um por sua vez, terminando de almoçar. Cada um que terminava calava-se completamente, pois ninguém queria lavar a louça. Assim, a conversa aos poucos foi mixando, até que só restasse o velho “Hell’s” comendo e falando. Espertamente, ele esperava poder, com sua conversa, levar algum de nós, que já havíamos terminado o almoço, a fazer algum comentário que nos fizesse perder o jogo e lavar toda a grande pilha de louça.
Mas nenhum de nós caiu no engodo, até que finalmente a conversa morreu de vez, pois por mais que “esticasse” sua refeição, o velho teve que, enfim, dá-la por encerrada.
Os minutos iam passando, e em pouco, uma hora havia transcorrido, dentro do mais absoluto silêncio. Meu amigo tinha razão: Era um jogo idiota, mas eu não estava disposto a perdê-lo. Então fiquei quieto, por mais constrangedora que fosse a situação. Outra hora se passou. O céu começou a escurecer, avisando que a chuva começaria logo. Meu amigo começou a agitar-se, e pensei que ele iria mandar às favas a brincadeira e quebrar o silêncio. Mas ele tinha outras idéias.
Tentando fazer com que alguém dissesse alguma coisa, ele começou a abraçar sua garota, e a boliná-la ali mesmo, diante dos pais. Olhei apavorado para o ianque, mas ele segurou firme aquela barra. Os bigodes tremiam de raiva, mas ele não falava nada. Quando a garota parecia estar disposta a fazer sexo ali mesmo, ele mudou de tática, e foi até a irmã menor, onde passou a fazer a mesma coisa.
”É um louco!” – Pensei – “Isso não vai acabar bem!”
Somente a teimosia absurdamente obstinada de um Hell’s Angels, acostumado a vencer desafios, podia explicar o auto controle do velho guerreiro.
O americano suspirou fundo e apertou com força o cabo de uma faca. Prendi a respiração! Por pouco eu não falo “Pare com isso!”. Mas, olhando para a pilha de louça, continuei em silêncio.
Quando a garota estava totalmente fora de si, suspirando e mordendo o pescoço de meu amigo, ele a deixou e mudou novamente de tática. Agora ele dirigiu-se à esposa do americano, uma senhora com idade para ser sua mãe, mas ainda muito conservada e bonita.
O americano travou os dentes quando viu a esposa suspirar com os beijos nos ombros que Vaselina lhe dava. Eu era meio louco, admito, e sabia que ele também era, mas nunca imaginei que fosse doido a esse ponto. A senhora foi aos poucos relaxando e amolecendo aos seus abraços. Depois, fechou os olhos e agarrou a toalha, em êxtase.
Então uma trovoada rolou no céu, e os primeiros grossos pingos de chuva começaram a cair. Ao ouvir a chuva caindo, “El Matador” parou imediatamente de acariciar a mulher e pegou rapidamente do bolso sua latinha de vaselina.
“Pronto!” – pensei – “Perdeu a aposta!”
Mas aquilo era demais até mesmo para um Hell’s Angell. Ao ver a latinha de vaselina nas mãos do meu amigo, o americano saltou de seu lugar e gritou, num português perfeito:
- Ok! Você venceu! Eu lavo a louça!
* * *