Desta vez, para ficar
 
Comeram e lambuzaram-se feito ursos na colmeia saturada de mel. Todo dia, sem prevenção. Quase um mês, de todos os jeitos, em vários lugares. Fogo implacável. Não era amor nem paixão. Pura busca de acalmar os sentidos. Quanto mais buscavam mais queriam. Insaciáveis.
 
Regras atrasadas.
 
- Fiz o teste de farmácia. Estou grávida.
 
- Deve ser engano.
 
- Acho que não.
 
- Consiga um remédio daqueles de fazer descer as coisas difíceis. Qualquer farmácia vende.
 
Tomou injeção na nádega. O farmacêutico garantiu tiro e queda. Três dias no máximo.
 
- Não veio. Vou ao médico.
 
Marcou consulta no médico do centro da cidade. Ginecologista, obstetra e aborteiro. Talvez na ordem inversa.
 
- Gravidez confirmada. Marquei para amanhã à noite.
 
Foi sozinha. Com medo. Entretanto o temor de ser mãe solteira era infinitamente maior. Nenhum risco, garantiu o médico de meia idade.
 
- Relaxe. Vai dar tudo certo. O doutor faz isso todo dia. Às vezes várias. Há muitos anos - encorajou a enfermeira enquanto a preparava na mesa.
 
- Um grãozinho de arroz, nada mais. Pronto, desta você está livre - falou o doutor ao terminar.
 
No dia seguinte ela contou tudo a ele, o pai. Nenhum questionamento. Manteve-se impassível. Nada de apoio moral ou financeiro. Frio.
 
Continuaram com os encontros de luxúria. Ela arrumou namorado. Depois, noivo. Abrandaram a relação e finalmente pararam.
 
Ele namorou e casou. Nunca mais a viu ou soube dela. Apenas o aborto não esqueceu. Vez ou outra, lembrava-se de que poderia ter sido pai (não fora?). Tão novinho!
 
Ao recordar o fato, sentia uma ponta de remorso. Poderia pelo menos ter sido mais atencioso com ela, presente. Assumido a despesa. Ou evitado o crime.
 
Anos de casado. A esposa engravidara apenas uma vez. Testes para os dois. Com ele tudo certo. Com ela o suficiente para conceber, mas não.
 
Em outro plano, um espírito pronto para reencarnar. Enjeitado anos atrás, sua incipiente matéria de então tinha ido parar no lixo de um consultório médico. Negaram-lhe a vida material, presente do Pai. Pacientemente ele esperava outra oportunidade, para continuar sua jornada de provas e progresso.
 
- Tu vais nascer de outro genitor e outra mãe. No entanto, teu pai será aquele que te recusou um dia, não o que irá gerar a tua matéria - decidiu a Hierarquia Superior.
 
O casal de um único filho rendeu-se à resignação trazida pelos anos. Já não almejavam outros rebentos. Três lustros e pouco assim. Só os dois, curtindo o filho que ia se distanciando da infância, e os sobrinhos.
 
- Uma mulher quer doar um bebê. Não pode criar. Também não quer entregar ao abrigo. Prefere dar a alguém diretamente. Não quer pegar?
 
- Menino ou menina? - ela perguntou à amiga.
 
- Uma menininha. Segundo me disseram, saudável. Três meses e pouco. Bela criança. Se quiser, a pessoa que me ofereceu dá o endereço onde você poderá apanhá-la.
 
Contou ao marido, entusiasmada. Ele, não. Renegava pela segunda vez. Ela chorou. Brigaram.
 
Ele viajou alguns dias a trabalho. Na viagem de retorno, no avião, uma criança de colo, acomodada com os pais alguns bancos à frente, não tirava os olhos dele, espiando entre as poltronas. Inevitável lembrar a esposa chorando o sonho de ser mãe novamente, ainda que por adoção, soterrado pela sua intransigência. Sentiu a ponta aguda do remorso espetando o coração.
 
Ao chegar, encontrou a casa iluminada fora do costume. Pensou que seria uma despedida. Acabava de voltar e teria de partir outra vez. Quiçá para sempre.
 
Ela abriu a porta da casa, sorrindo. Ele então pensou que tudo estava resolvido. A mágoa se dissipara e não falariam mais em bebê.
 
- Suba. Tem uma surpresa no quarto.
 
Ressabiado, preparava-se para vencer os dois lances de escada, mas foi surpreendido pelo filho rapaz descendo serenamente com um bebê nos braços.
 
A criança estava acordada. Uma linda menina. Quando o viu, ela sorriu graciosamente, como se o conhecesse de longa data. Ele, então refeito do susto, também sorriu.
 
Subiram todos juntos. O quarto suavemente iluminado pelos abajures de cabeceira. Ao lado da cama do casal, um berço branco.
 
O marido sentou-se no leito cuidadosamente arrumado e pediu à mulher para lhe alcançar a menininha, pois, desajeitado e emocionado, não ousaria correr o risco de apanhá-la ele mesmo. A mulher, atendendo ao pedido, com cuidado e carinho tomou o bebê do filho e depositou-o nos braços dele.
 
Com a criança aninhada no colo, e antes de beijá-la na testa, o homem frio e duro de outrora, ao mesmo tempo em que deixava escapar um par de teimosas lágrimas, balbuciou com ternura:
 
- Como você demorou a voltar, minha filha!
 
Permaneceram os dois a contemplarem-se mutuamente durante esticados e bons minutos. O pai com os olhos plenos de alegria e emoção. Os olhinhos ternos e curiosos da pequena risonha, ao mostrarem muito mais que o encanto da vida, diziam que ela voltava através de indireto e longo caminho, para fazê-lo entender que trazia de longe a maravilha e o conforto do perdão.


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N. do A. - Na ilustração, Amor, Sublime Amor de Neiva Passuello, artista gaúcha de Erechim radicada em Curitiba - PR (neiva.passuello.com.br).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/04/2013
Reeditado em 27/08/2021
Código do texto: T4266508
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