Meia Noite
Sim, essa era a maior vontade de meus cabelos presos á fivelas alheias: uma longa tempestade para molha-los e deixa-los cair sobre os olhos cabisbaixos e quase vermelhos por ter sofrido tantas noites de insônia. Mas o bem feitor não passaria mesmo assim a mão sobre eles nem iria elogia-los por seu devido brilho e maciez. Depois da meia noite o pássaro de Poe, sim o corvo repousa sobre meus ombros. Talvez o morcego de Augusto dos Anjos, ou quem dera uma borboleta, como a mesma que entra na sala de Eusébia no conto de Brás Cubas. Mais ainda fosse a barata vista no quarto da empregada em G.H de Clarice Lispector. Mas em mim á noite há apenas um animal, apenas um nome. Eu esqueço a democracia lá fora, corto meus cabelos e que se danem o estereótipo. Pois o único ser que irá perturbar mais minha vida que a de outrora não são esses. O único animal a sobreviver nesta noite sou eu.
E pássaro que fui voarei, e animal que sou, estarei suspeito á declarações futuras. As que servirão para mais uma noite de insônia. E talvez madrugadas frias com alguma bebida de lado. Eu careca, não será mais comum apalparem minha cabeça. Que tipo de maciez encontra-se agora em meu corpo? Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Eu roubo o perdão. E roubo o ladrão. E não me perdoam. E quanto tempo de vida tem mesmo? Por favor, me poupe de falsas verdades. Mais tarde serei mais uma. Só uma. Não sendo estarei escondida entre entrelinhas. E sendo farei o mesmo. E estando sentirei que presenciar algo é humano, é racional. O animal que fui ontem não estava em qualquer livro. Criaram perfeições de conceitos. Mas á meia noite não bastaria o conhecimento. O que basta é ser, e sendo, já não vale nem as lembranças nem insônia póstuma.