RAIO XIS
Eu tinha fumado mais de trinta anos e, de repente, estava ali, sentado na sala de espera, em uma cadeira de rodas, para fazer um exame de raio xis de tórax. Minha condição não era nada agradável. O avental que usava era daqueles abertos atrás, amarrados na cintura e que colocava minha masculinidade no chinelo. A bunda exposta; o pau, ainda que solto, contrariando toda lógica masculina, não se expunha, ficava absolutamente inalcançável e totalmente vedado. Sentado na cadeira de rodas a dignidade se mantinha, mas imaginei quando levantasse para fazer o exame: teria que segurar as pontas do avental para não desfilar com a bunda à mostra.
Em meio a estas conjecturas, vejo entrar na sala uma senhora, com passados oitenta anos, em idênticas condições. Sentada, o avental cobria tudo. Senti-me ridículo em imaginar o que veria quando ela levantasse da cadeira, se é que levantaria, face à idade. Tratamentos desiguais pensei, pois meus 55 anos mereciam melhor consideração.
Ali, sentado na espera do exame, dei-me conta de algo que não pensara nos meus tempos de médico: o cara baixa no hospital e deixa sua identidade fora. O nome passa a ser “prontuário do paciente”, onde anotam inúmeras coisas, menos aquelas que te identificam como ser humano: foi vacinado para TBC (tuberculose), ao invés de gosta de bossa nova; alimentação com restrição de sal, ao invés daquela picanha gorda dos domingos com a família; a pulseira de borracha tem cor própria, dependendo da patologia; a qualquer momento vem uma pessoa que tu nunca viste e põe as mãos no teu corpo, introduz objetos estranhos em teus orifícios, crava agulhas em tuas veias, te põe goela abaixo comprimidos desconhecidos e tu, ali, pelado, sem identidade e sem possibilidade de decidir qualquer coisa.
Pois deram preferência à idosa que chegara depois de mim na sala de espera e fizeram o exame dela antes.
Enquanto apreciava a dignidade dela retirando-se da sala, ouvi chamarem meu nome. Completo: nome, segundo nome e sobrenome. Levantei com cuidado, ajeitei o avental e me dirigi à sala de exame, mãos segurando as borda do avental nas costas e dignidade plena no caminhar, altivo e sereno. Por dentro, borrado total. Há muitos anos não fazia um raio xis de tórax e o medo de câncer era uma coisa constante, pelos tempos de fumante.
Diante do aparelho, tive de largar o avental e relaxei. Posições dos braços me exigiram que dispensasse o cuidado com a bunda. Foda-se, vociferei veladamente, como vingança. Pensei na bunda como rebeldia, lembrando os caras colocando a bunda de fora em ônibus, como protesto e, até mesmo a música do Gonzaguinha.
Feito o exame, me disseram para esperar na sala, até que o raio xis fosse revelado e interpretado.
Resignado, sentei na cadeira com o cuidado de ajeitar o avental a ponto de preservar a genitália, coisa que fizera questão de exibir na adolescência a qualquer pretexto. Como a fantasia de internado não previa relógio, desconheço o tempo que fiquei ali, esperando comandos de desconhecidos, submetido a qualquer tortura que meu medo pudesse me impor.
Quando a porta da sala de interpretação de exames se abriu e uma moça apontou a cabeça e examinou o ambiente, percebi que estava sozinho.
Ela me olhou e fechou a porta novamente. Um tempo enorme se passou até que abrissem a porta e me avisassem que seria necessária uma nova tomada de imagens. Foi então que o pavor tomou conta. Uma segunda pessoa ainda me espiou pela porta. Morto, pensei. No máximo três meses. Câncer de pulmão. E eu ali, com a bunda de fora.
Claro que não resisti. Cumpri os procedimentos, sentei na cadeira de rodas e fui levado de volta ao quarto do hospital.
Até a visita do médico, na manhã seguinte, imaginei inúmeras hipóteses de meu velório, que omitirei para que não me julguem pretensioso.
Ao contrário de minhas fantasias, no entanto, nenhum câncer havia sido detectado. Os sinais das lesões pelo uso prolongado do cigarro estavam presentes, mas não prenunciavam uma morte iminente. Morrerei, por certo de uma morte não anunciada.
Dois stents integravam a estrutura de minhas coronárias para o resto da vida, ao ter alta do hospital.
Escapara, mas, para não dar chance ao azar, parei de fumar.
Em meio a estas conjecturas, vejo entrar na sala uma senhora, com passados oitenta anos, em idênticas condições. Sentada, o avental cobria tudo. Senti-me ridículo em imaginar o que veria quando ela levantasse da cadeira, se é que levantaria, face à idade. Tratamentos desiguais pensei, pois meus 55 anos mereciam melhor consideração.
Ali, sentado na espera do exame, dei-me conta de algo que não pensara nos meus tempos de médico: o cara baixa no hospital e deixa sua identidade fora. O nome passa a ser “prontuário do paciente”, onde anotam inúmeras coisas, menos aquelas que te identificam como ser humano: foi vacinado para TBC (tuberculose), ao invés de gosta de bossa nova; alimentação com restrição de sal, ao invés daquela picanha gorda dos domingos com a família; a pulseira de borracha tem cor própria, dependendo da patologia; a qualquer momento vem uma pessoa que tu nunca viste e põe as mãos no teu corpo, introduz objetos estranhos em teus orifícios, crava agulhas em tuas veias, te põe goela abaixo comprimidos desconhecidos e tu, ali, pelado, sem identidade e sem possibilidade de decidir qualquer coisa.
Pois deram preferência à idosa que chegara depois de mim na sala de espera e fizeram o exame dela antes.
Enquanto apreciava a dignidade dela retirando-se da sala, ouvi chamarem meu nome. Completo: nome, segundo nome e sobrenome. Levantei com cuidado, ajeitei o avental e me dirigi à sala de exame, mãos segurando as borda do avental nas costas e dignidade plena no caminhar, altivo e sereno. Por dentro, borrado total. Há muitos anos não fazia um raio xis de tórax e o medo de câncer era uma coisa constante, pelos tempos de fumante.
Diante do aparelho, tive de largar o avental e relaxei. Posições dos braços me exigiram que dispensasse o cuidado com a bunda. Foda-se, vociferei veladamente, como vingança. Pensei na bunda como rebeldia, lembrando os caras colocando a bunda de fora em ônibus, como protesto e, até mesmo a música do Gonzaguinha.
Feito o exame, me disseram para esperar na sala, até que o raio xis fosse revelado e interpretado.
Resignado, sentei na cadeira com o cuidado de ajeitar o avental a ponto de preservar a genitália, coisa que fizera questão de exibir na adolescência a qualquer pretexto. Como a fantasia de internado não previa relógio, desconheço o tempo que fiquei ali, esperando comandos de desconhecidos, submetido a qualquer tortura que meu medo pudesse me impor.
Quando a porta da sala de interpretação de exames se abriu e uma moça apontou a cabeça e examinou o ambiente, percebi que estava sozinho.
Ela me olhou e fechou a porta novamente. Um tempo enorme se passou até que abrissem a porta e me avisassem que seria necessária uma nova tomada de imagens. Foi então que o pavor tomou conta. Uma segunda pessoa ainda me espiou pela porta. Morto, pensei. No máximo três meses. Câncer de pulmão. E eu ali, com a bunda de fora.
Claro que não resisti. Cumpri os procedimentos, sentei na cadeira de rodas e fui levado de volta ao quarto do hospital.
Até a visita do médico, na manhã seguinte, imaginei inúmeras hipóteses de meu velório, que omitirei para que não me julguem pretensioso.
Ao contrário de minhas fantasias, no entanto, nenhum câncer havia sido detectado. Os sinais das lesões pelo uso prolongado do cigarro estavam presentes, mas não prenunciavam uma morte iminente. Morrerei, por certo de uma morte não anunciada.
Dois stents integravam a estrutura de minhas coronárias para o resto da vida, ao ter alta do hospital.
Escapara, mas, para não dar chance ao azar, parei de fumar.