O Monstro
Ele vinha apressado, a passos largos, pelo longo e estreito corredor cercado por espessas telas e fios de arame farpado que conduzia à área onde se localizavam as residências. A neve acumulando-se em suas botas. Subiu rapidamente os poucos degraus que separavam a casa do chão esbranquiçado. O desejo ardente em usufruir do calor da mulher e dos filhos estampado no rosto ruborizado devido a rispidez do ar invernal.
Embora fosse conhecido como um homem gentil e educado, a ansiedade fez com que abrisse porta com certa brutalidade. Em resposta recebeu uma lufada de ar quente proveniente do interior da casa. Assim que entrou, ouviu a gritaria alegre das crianças comemorando a sua chegada. Em seguida veio a correria em direção ao som rangente da porta que se fechava.
A menina atirou-se no colo do pai, agarrando-se ao seu pescoço. O garoto, abraçado as suas pernas. Ele mal conseguia percorrer o pequeno trajeto da porta até a sala. Sorrindo para a mulher beijou-a com esforço, enquanto os filhos, eufóricos, arrastavam-no em direção ao canto da sala onde de um imenso vaso de barro se projetava um pequeno abeto com ares de imponência.
Prometera às crianças ajudar na montagem da árvore de natal. Já estavam quase em meados de dezembro, e embora o trabalho fosse intenso, com vagões de carga chegando a plataforma dia e noite, ficou feliz em cumprir o prometido.
Por todo o sofá espalhavam-se bolas de natal de diversas cores. Vermelho, verde, amarelo, azul. Todas tão brilhantes que podiam mesmo refletir os sorrisos de todos. Havia também fitas multicoloridas e brilhantes que envolviam a jovem árvore em um espiral largo na base da folhagem e terminando estreito, acompanhando o seu formato de conífera.
Vez por outra a mão delicada de uma das crianças conduzia uma bola à mão forte do pai, que, apoiado em uma pequena escada, tratava de fixa-las na parte mais superior da árvore. Quando finalmente terminaram, ficaram admirando o resultado da obra, como se cada um fosse o artista que a distância avalia criticamente o produto de sua arte.
Foram interrompidos pela mãe que trazia na bandeja o chá quentinho com torradas e geléia de morango. Por um longo tempo ficaram assim, tomando chá ao pé da árvore de natal recém enfeitada e ouvindo histórias dos tempos em que o pai era criança em uma cidadezinha alemã no sul da Bavária.
Quando terminaram o chá, levantaram-se e as crianças foram com a mãe para a cozinha ajudar com a louça enquanto o pai, sozinho, fumava um último cigarro antes de voltar para o trabalho.
Na vitrola Choppin atirava suaves noturnos pelo ar. Enquanto tragava e exalava a fumaça branca no ambiente, Heinz aproximou-se pensativamente da janela. Lá fora o céu polonês ia vagarosamente transformando-se do cinza chumbo para o negro profundo e sem estrelas. Nisto as primeiras luzes dos holofotes foram uma a uma sendo ligadas e de onde Heinz se encontrava, podia ver a neve caindo levemente em contraste com a luz projetada pelos holofotes.
Missão familiar cumprida e de volta ao ar frio do exterior Heinz refez o caminho labiríntico em direção à plataforma da estação. A noite havia caído no zênite polonês quando ele juntou-se ao punhado de oficiais a espera do próximo comboio noturno. A conversa era animada e girava em torno de a cargo de quem ficariam as festividades do fim de ano. Heinz era conhecido por ser um anfitrião bastante atencioso e dar as melhores festas.
Foi somente quando saiu, tomando o caminho que conduzia ao seu escritório, é que Heinz, oficial das SS, entendeu que a neve derramada pelo céu que encobria o complexo de galpões entre cercas de arame farpado chamado Auschwitz, não era de fato neve, mas sim a macabra fuligem expelida por suas grandes e incansáveis chaminés.
Mesmo assim Hans Heinz, homem letrado, apreciador das artes, pai e marido dedicado seguia em direção ao setor administrativo do Campo acumulando corpos sob a sola de suas botas e conscientemente ignorando o monstro que se avolumava dentro de si.