MEMÓRIA

"Julgo ter perdido a memória. Ela disse-me que era uma felicidade. Poderia esquecer o que seria útil esquecer. Queria dizer, o que convinha esquecer. Mas, houve dias solenes, eu sabia, queria esses dias de regresso à memória. Como se pode viver sem saber os nomes? Os nomes são tão essenciais como respirar. Apenas restavam alguns e não seriam os mais importantes, o meu, por exemplo, era o reconhecimento de mim. Muito importante. Logo, essencial e esquecido. Ela insistia, tudo podia começar de novo, sem o peso da sombra do passado. Eu era um privilegiado, muitos gostariam de esquecer, riscar da história pessoal o sofrimento e a dor que estão em cada esquina da existência. Era coerente, considerava que a vida é uma grande mágoa. Opiniões. O problema, na sua lógica, tão trágica como cómica, é que começar de novo era viver de novo a mágoa de viver. Talvez agora – ela dizia, sem a certeza de nenhum dogma - a consciência de que há um passado perdido na névoa (ou perdido sei lá onde!) permita ser mais exigente e, quem sabe, reconhecer essa mesma mágoa que previne aqueles que aprenderam a não ser ingénuos. Descemos para praia, o dia era triste (parecia triste ou ela me convencia disso) e havia no rosto dos veraneantes uma felicidade evidente. Escolhemos ficar deitados no areal, escolhemos ouvir o mar ( ela tinha um poema que começava com este verso), ver desaparecer a multidão até ao silêncio. Com o vento a varrer a solidão instalada em nós. Julgo ter perdido a memória. As palavras saíam como se fossem um peso interior. Tudo é uma neblina no fluxo do tempo. Foi, será? Mas deve ter havido outro dia assim. Alguém me disse, com os olhos iluminados, que a vida é sobretudo a mágoa de viver, e que eu era feliz por ter esquecido quase todos os nomes. Como o meu? É possível que a história se repita. Este areal seja o mesmo daquela tarde triste (parecia triste, não sei) com gente alegre, o vento entrasse pelos arredores da noite, ouvisse o mar com o ouvido encostado ao chão (o segundo verso do tal poema). Julgo ter perdido a memória. Aqui, aqui não está ninguém!"

Página do diário de J.Malone, nome inventado pelo próprio.

Carlos Frazão
Enviado por Carlos Frazão em 24/04/2013
Reeditado em 07/07/2014
Código do texto: T4256917
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