O palhaço

Tinha um tempo que eu não via um palhaço. Teve aquela vez na Estação, eram dois. Esses tinham um algo de velhaco, e pareciam malabaristas de sinais. Eram muito magros e altos, deixando impressão de usarem pernas-de-pau por debaixo das calças largas. Pularam a grade, furaram a fila; quando umas vozes protestaram, responderam que não sentariam. Entraram e sentaram com suas perucas muito falsas num tom sujo de dourado.

Não dei importância a esse acontecimento, porém ontem topei com outro. Este era solitário. E acho mesmo que foi a solidão dele, tão assemelhada a minha, que me cativou a atenção.

Era difícil dizer qualquer coisa sobre ele, além do evidente. Só sabia que era um palhaço e que estava exausto. Talvez fosse um ladrão, ou um desses sujeitos que batem nas esposas, mas ali minha única certeza era seu cansaço suspenso. Ele, a bem dizer, dormiu todos os dez minutos que passamos juntos. Pelo número do ônibus deduzi que vinha do Centro. Já passava das nove, era pois natural seu estado. Devia ter passado o dia inteiro na rua.

A maquiagem era simples, a cara toda de branco. Com um vermelho fraco, contornava a boca e subia até as maçãs. Tinha também as sobrancelhas arqueadas que ele fazia de azul, era tudo. Não podia ser mesmo coisa demasiado complexa, já que diariamente o trabalho deveria ser refeito. Usava uma calça de soldado e tinha os pés cobertos por uma bolsa volumosa onde adivinhei que carregava seus apetrechos de palhaço. O que encerrava o quadro era uma camiseta rósea de algodão, e um apito de alumínio que pendia de seu pescoço por um cordão.

Finalmente o ônibus deu uma freada mais brusca que o natural, ele acordou rapidamente, abriu os olhos: eram uns olhos pequenos e arredondados. Olhos tão cansados quanto o corpo pesado que, amontoado no banco, logo voltou a dormir sem dar por mim a espreitá-lo.

Chega a hora de despedir-me dele, um estranho. O ônibus pára e minha esperança que abrisse novamente os olhos se esvaiu num leve remexer para posicionar melhor o corpo no banco.

Desço então, não tento mais buscar uma última imagem sua, de relance que fosse. Vou e me despeço sem espalhafato ou lamento. Não era seu amigo, nem viria a ser. Provavelmente se ele estivesse lúcido nem me causaria essa comoção, dou adeus ao seu cansaço inquietante, a sua maquiagem, a sua tragédia cotidiana. Ele some para alguma parte da cidade.

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 23/04/2013
Código do texto: T4255860
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