Inquietum est cor nostrum
Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te – Santo Agostinho
Isaías teve um sonho muito estranho que o deixou perplexo pelo dia inteiro. Sonhos desse tipo vem e vão, deixam-nos com um gosto de estranheza e morte no paladar, mas sem perceber, deixamos que eles se espraiem, desapareçam por inteiro, como um grão de arroz caído na areia da praia.
Uma semana, tudo passou, esvaiu-se, e Isaías nem se deu conta de que toda aquela inquietação havia desparecido de seu espírito. O sonho havia desparecido, a recordação e a memória do mesmo havia desparecido. E por mais que se repita a palavra “desaparecido” neste parágrafo, o conteúdo do sonho e a sua lembrança não retornariam a mente de Isaías. Foi-se por completo o estado d'alma que o havia absorvido. Aquelas imagens oníricas que haviam tomado conta de seus pensamentos, que haviam inclusive respondido a muitas questões que afligiam ao mais íntimo de seu ser, tudo isso se perdera. O protagonista desta história tornou-se novamente acorrentado à sua rotina, Sísifo empurrando pessoas nas cotidianas conduções lotadas.
Um acontecimento, porém, modificou este que seria apenas mais um banal esquecimento na vida de um homem. Sonhou novamente o mesmo sonho, recordou-se milagrosamente de tudo que havia esquecido. Fez-se luz, plantou-se novo Éden. Outra oportunidade de pensar nas questões mais importantes. Isaías dessa vez tinha que aproveitar a chance que o Destino – ou o Acaso, como achares melhor – lhe dera.
Pôs-se então a pensar: minha nossa, qual o significado deste sonho!? Como pude esquecer que havia sonhado com estas questões? Como fui capaz de apagar de minha memória palavras, momentos e imagens tão fundamentais? Como pude cometer tamanho erro?
Meditou longamente no conteúdo do sonho. Refez a seu espírito questionamentos que há anos não tinha coragem de fazer. Encarou-se espiritualmente, fustigou-se em pensamento. Teve a coragem de mexer e revirar feridas já cicatrizadas. Sentia dores que pensou que nunca mais sentiria.
Viu-se então frente a frente com a vitrine de uma loja iluminada pelo neon de propagandas. Envelhecera, os anos passaram, a vida que sonhara, perdera. Era outro, sentia como se houvesse vivido várias vidas dentro da única vida que vivera. Triste constatação.
Onde estava a mulher que amara, e que talvez ainda ame? A última pela qual pode realmente ter sentimentos? Talvez esteja agora casada e com filhos. Talvez seja feliz.
Seus familiares, muitos deles, se foram. O que significaram todos aqueles anos de felicidade ao lado de seus primos e irmãos? O que significaram todas as declarações de amor e ódio de seus conhecidos?
Amigos, nunca fora de dar-se muito a amizades, tinha medo de importunar, de não ser valorizado. Acabara importunado, desvalorizado.
Olhava a lua e via apenas o próprio rosto. Não havia como fugir! Via-se por toda parte, em qualquer canto!
Estava escuro, os prédios já vazios, fim de expediente, anunciavam que as pessoas em suas casas dormiam, sonhavam. Isaías solitariamente contava as estrelas. Contava, não. Melhor dizer: conversava com elas, com seus olhos marejados e tristes. Sentiu tristeza. Oh, saudades de poder chorar!, pensou o homem. E chorava.
Um casal de namorados atravessava a rua. Bêbados e mendigos trocavam palavrões e acusações. Isaías caminhava por entre essas realidades tão distintas e vivia a sua, a sua que não mais era. Que havia sido, se perdido, se desfeito. Ele era apenas imagem na memória, não existia mais. Talvez nunca tenha existido.
Foi para casa e deitou-se na cama. Não conseguia pegar no sono, sonhava acordado antes de sonhar pela última vez. Pensou, pensou, pensou. Alta madrugada, nenhuma conclusão. Chorara e rira sozinho. A vida desfazia-se a cada segundo, o relógio impiedoso marcava as horas derradeiras. Tudo valera à pena, tudo fizera sentido, tudo fez-se presente ali, naquela noite. Lembrou-se de estar sentado na beira de um lago certa vez, e que naquele dia havia sentido a paz após um momento tão conturbado de sua vida, quando havia brigado com ela e... dormiu sem perceber.
De olhos fechados, sonhou novamente com o dito sonho, pela terceira vez. O seu conteúdo encontra-se por toda parte, é fácil perceber. Isaías, em sono profundo, sonhou e viveu.
O que vem depois não cabe no texto, é uma história que não conhecemos e de que não devíamos tirar conclusões. Só se pode dizer que o tempo sempre chega, sempre rápido, sorrateiramente, como ladrão, e sempre estaremos despreparados, como para aqueles sonhos que sempre se repetem em nossa vida, imprevisíveis, despretensiosos, espontâneos, milagrosos, transformadores.