MATIRA?
Vi Matira sem perceber, de fato, quem era. Só, carregando apenas mochila estronfel, caminhava à orla do rio Balsas, precisamente num trecho que corta a pacata cidade de Sambaíba, no Maranhão. Era uma tarde comum de fevereiro. A serra, na outra margem, impolinda, parecia revelar um segredo: “fim de uma era”.
Serenas, as águas do Rio eram veias de sentidos a sangrar sua, outrora, consciência miserável. O inferno e suas camas fora o único aconchego gerador, digamos, de modos de ser e não ser. Vivera como se uma espécie de “bandeira azurelada” apontasse, profeticamente, o alvo verdadeiro, único, absoluto e fundante. Não era mais escravo da empulhação.
Ao me enxergar, parou. Notei certo mal-estar entre nós, mas permaneci como estava. Não havia ninguém na área. Nossa hesitação talvez fosse produto daquele tipo de medo saudável, aquele que nos dispara o alerta da sabedoria, do cuidado e da prudência. Matira, olhar para baixo, veio ao meu encontro. Seu rosto revelava mais que angústia, a perda total do tônus muscular exprimia tristeza.
- Lugar mágico este, não?
- O brilho desaparece um pouco quando o hábito nos invade, respondi.
Engraçado, o ponto chave não era metafísico, nem existencial, tampouco fenomenológico. Simplesmente um emaranhado de estarmos no Greino como se um destes planetas insondáveis nos enlaçasse e nos cortasse as entranhas. Voz, gestos e trajes cantavam paixões de um desenvolvimento articulado entre sabiás e armadeiras. Matira, sem dúvida, um outsider, rasga, hoje, qualquer camisa de força, sobretudo essas tão a gosto das frivolidades. Um ao lado do outro, nos contagiávamos com sons de harpa vindos da serra.
- Consegue decifrar?
- Sim. Belas canções cristãs.
Ao se referir a “Soldado Ferido”, ampliou-se minha compreensão e interpretação de sua tristeza. Não se entregaria, não se autodestruiria; mas as forças do sistema o feriam. Pior: quase todo o arsenal tecido na velhacaria e no absurdo. Pouquíssimos debelam as chamas do engano, do autoengano e da mentira social. Os sinos se dobram com badalos de buriti. A racionalidade mentiresca sufoca as consciências impingindo uma farsa democrática que ousamos cunhar de “lucrocracia” – modo de viver no qual a essência é o lucro, nada além dele – ele é a mola propulsora de tudo. O cinismo de que a natureza humana é imutável nega a evolução espiritual impregnando leituras meramente materialistas. Ademais, quantas teorias da natureza humana existem? Matira me fez pensar em algumas nas áreas da religião, da filosofia e da própria psicologia.
Entender nossa conversação nunca foi fácil para mim. Não apelou ao irônico, preferia a chalaça machadiana, não importava seu estado de espírito. Dada a necessidade do momento, várias pessoas chegavam para o banho vespertino, tinha de partir. Ao se levantar da Pedra na qual nos sentamos, Matira me surpreende.
- Deixarei com você minha mochila. Tome cuidado porque é perigoso, pode explodir. Adeus!
- Como assim?
Caminho afora, nada mais disse. Vi quando atravessou a velha ponte e desapareceu na direção da serra. Intrigado, abro a mochila e encontro uma pequena caixa com os dizeres “Fim de Uma Era”. Dentro, os livros Ortodoxia, de G. K. Chesterton; D. Quixote, de Cervantes; A Ciência Em Uma Sociedade Livre, de Paul Feyerabend; Os Miseráveis, de Victor Hugo e Como Mudar o Mundo, de Eric Hobsbawm. Minha reação?
- Mentira! Maldita seja essa tecnologia comportamental! Terra, és um engodo, teu verdadeiro nome é “Mentirra”. Se, a cada dez minutos, mentimos três vezes, onde, afinal, fica a Verdade? Mente-se tão descaradamente que os delírios atingem status de verdade. O instituído força os pusilânimes a mentirarias para aceitações sociais. Os cínicos mentem visando agradar alguém. Os aproveitadores mentem segundo as circunstâncias. Os impostores dissimulam sentimentos.
As mentiras de nossa cultura engendram seres apequenados, conservadorismos reles, pensamentos únicos, ceticismos, pseudoprogressistas e os mais variados preconceitos. Lembraram-me, enfim, estas palavras de Marcel Arland: “A mentira não é odiosa por si mesma, mas porque se acaba por acreditar nela”. Onde houver Liberdade, creio, haverá sempre a consciência da Verdade.