Quase assim

Eu, de fato, a conheci primeiro que ele. Não sabia dizer se era bonita. Eu, porém, ao que parecia, gostava dela. Nossas conversas sempre aconteciam de um modo que ninguém, por mais esforçado que seja jamais vai entender.

No começo eu era indelicado com ela, falava qualquer coisa que me desse na veneta, e nem me importava se isso iria machucá-la. Ela ria de quase tudo que eu falava. Dizia que eu era demais, o que gerava certo conforto. Ela que no começo parecia estar ali por estar, sem o menor interesse de contribuir ou roubar, no entanto, logo foi deixando aparecer sua intenção que até podia não ser ruim, mas naturalmente era dissimulada. Ela dentro de si tinha lá suas artimanhas. Era gentil sem ser o que eu chamava de "tonta", acho que foi por aí que começou a me pegar.

Só lembro que, de um momento em diante, eu já notava que estava falando mais do que devia. Ela me dava corda, como se faz a um relógio antiquado demais. E ria com muita gentileza. Ela, a bem dizer, nada falava, ria apenas. O certo é que eu me tornava cada vez mais vulnerável, e ela imune: uma incógnita ainda, sempre. Quando percebia que eu estava desconfiado, ou amedrontado, ela vinha toda delicadinha, "Você é demais, adoro-te". Eu sabia que ela me manipulava tão descaradamente e já nem ligava. Não conseguia evitar mimá-la o mais docemente que podia.

Em alguns momentos ela se mostrava atroz, fato que era até positivo, assim eu ficava mais esperto, porém, não demorava, ela logo me inebriava outra vez. Parece que percebia certa liberdade em mim, aí atacava toda cheia meiguice. Eu via tudo, mas nem me esforçava mais para mudar.

Dizia que eu era tão novo e tão sagaz, eu já sabendo do seu cinismo ria, ela, naturalmente, também ria. Certamente tinha consciência de tudo que eu sabia e de tudo que eu nunca viria a saber.

Eu dei a única cartada que podia, um último esforço para a auto-preservação: afastei-me. Não sei se o fiz de um modo muito óbvio. Sabia que independentemente de meu esforço pra simular naturalidade, ela notaria. Chegou a perguntar por que eu estava tão ausente de seu seio, não sei se estava incomodada. Eu desconversava.

Aí apareceu o João-Canção, e tudo foi mesmo para o brejo. Não que tivesse sido uma tragédia inesperada. Tudo já estava iminente e e estabelecido: o previsto, todavia, se transformou em fatos implacáveis. Ela nunca admitia isso, "Estou sempre aqui, baby, você que não me visita mais". Cínica, sabia que no fundo acabara mesmo; é certo que não era o fim da era, ainda podíamos nos divertir um com o outro a qualquer hora, porém mudaram as coisas.

Eu não sabia o que estava se passando entre ela e o João, mas era alguma coisa. Uma vez os espionei um bocadinho, e pude ver que ele estava se entregando pouco a pouco, pobre João. Mas ele não era burro, tinha lá suas armas. Era experiente, cantava como uma cotovia, sabia muito de ervas indianas. Um dia o vi quase entoando "Índia da pele morena, a boca pequena". Eu desejei sorte em pensamento, cuidado João.

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 20/04/2013
Reeditado em 11/05/2013
Código do texto: T4250532
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