O Androide

Olhei para meu amigo e ele dormitava com a cabeça caída para trás, como se tivesse sido degolado. Tomei um bom trago da cerveja quente e me aprumei no banco. Que horas? Não podia dizer; decerto entre duas e três. Ainda apalpei os bolsos da jaqueta inutilmente. Pois não ignorava que meu telefone havia sido roubado duas semanas atrás num bordel parelho a este. Com música igual à música deste. Assim como idênticos também pareciam ser os clientes obtusos e as prostitutas gordíssimas.

Eram deste tipo, os estabelecimentos que frequentávamos, meu amigo e eu. Não que eu fosse um amante do underground, mas no fim, éramos pobres, e achar um lugar onde se pudesse beber quase de graça sempre é agradável a um imigrante.

Pessoas medonhas, cochichei para meu amigo.

Falei mais para me certificar que ele dormia que para qualquer outro fim. Ele se dignou apenas a emitir um ronco gutural. Levantei-me e fui até o barman que estava com a cara carregada de enfado. Perguntei por um telefone.

Achando que isso aqui é cinema, cowboy?

E a sua feição de abade severo acabou por transmutar-se num riso desdenhoso e muito feio; com os beiços esticados, ele indicou meu assento vazio e entrincheirou-se em um possível compartimento atrás de si, uma portinhola camuflada por uma lona grossa. Encabulado e sem ter mais o que fazer, voltei para meu lugar. Mais uns goles, um cochilo leve.

Eu vi o exato momento em que a puta se aproximou do homem. Mas, de fato, não pude conceber por meio de que artifício aquela criatura prateada fora pousar ali rente ao balcão. Quis cutucar meu amigo, mas logo apareceu outra mulher, esta também gorda e insolente.

Era um sujeito de lata, oxidado no pescoço e nas pontas dos dedos. Todo prateado no resto, trazendo, onde deveria estar seu estômago, uma cavidade poligonal aberta. Na caixa, um coração enorme. Coração de homem; ou talvez fosse de um touro. Um coração vermelhíssimo. E os olhos viravam o tempo todo e para todos os lados, em agonia. Mas o homem parecia sereno, protegido em sua couraça. Intermitentemente abanava-se para livrar-se dos gracejos das putas que tentavam mordiscar-lhe a orelha, ou roçar as mãos entre o as pernas de frio metal. Falar, não falava. Logo vieram outras mulheres. E se acercaram dele.

Que foi? Está doente?

Eu cuido de você!

Vem cá, coisinha estranha, disse uma puta com peruca loura.

Alvoroçavam-se, beliscando-o e hostilizando-o com aquele humor pecaminoso das putas. E o espetáculo já chamava a atenção dos estúpidos clientes do bar, todos se aproximando com a cautela dos gatos. E as mulheres começavam fustigá-lo com real violência. E alguns dos homens já soltavam pequenos urros à medida que elas aumentavam os palavrões. Neanderthalensis. Eu sacudi meu amigo, mas ele caíra sem vida junto aos meus pés, o bêbado. E eu estava deveras nauseado com toda aquela noite, com todas aquelas mulheres. Havia meses que não amanhecia naquela cidade. E eu só queria esquecer tudo. Mas não era possível.

O barman reapareceu. E agora, parecia trajar um uniforme militar. Bateu traiçoeiramente na cabeça do Androide com uma garrafa que estilhaçou. O homem-de-lata caiu num só movimento chocando-se violentamente contra o chão. Gargalhadas gerais.

Quando se ergueu, as mulheres começaram a devorá-lo, davam dentadas e o metal rangia dentro das bocas abertas. Ele se contorcia de dor enquanto elas lhe engoliam a tecnologia, e lhe expunham o interior steampunk, e lambiam os beiços e riam feito hienas.

O boneco gritou. Um berro animalesco, livresco, que divergia de seu corpo trôpego e vago. E eu vi horrorizado o coração murchar como uma bexiga, e se torna árido e sem vida. Os restos do Androide despencaram aos pés de todos, e mantiveram-se espalhados e em desordem.

Meus amigos estavam todos doentes.

Mas no fim, alguém haverá de olhar para trás, e se não houver muito cansaço, talvez reflita, trace obscuras analogias, se apiede, chore, escarneça. Talvez. Pois nós só queremos apagar o riso e fechar a rua. Era uma vez, mais um bar sujo e sem iluminação como todos os bares que frequentávamos, meu amigo cara-de-bode, e eu, cara-de-ratazana. E nosso lixo permaneceu caótico pelo chão.

Gargalhadas gerais.

(inspirado em "Cara estranho", Los hermanos)

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 20/04/2013
Reeditado em 11/05/2013
Código do texto: T4250515
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