Meu vício é você
(O amor de Beto e Lindamir)
 
Não era dado a prostíbulos. Uma noite, entretanto, resolveu tirar o atraso no bordel do bairro vizinho. Antes não fosse. Teria sido poupado de dias e noites de sofrimento e amargura. E não teria feito sofrer seu amor de indecisão e angústia.
 
A moça estreara na zona havia pouco tempo. Coisa de semana, talvez uns dias mais. Novinha, carinha bonita, alva, corpinho bem feito, tipo mignon. Asseada.
 
Entrou no salão e deu com os olhos no olhar dela. Fulminante atração. Sentiu o coração acelerar e quase podia ouvir o dela. Pagou o preço à cafetina e carregou-a para o quarto; ou ela a ele. Palavra nenhuma. Despiu-a despindo-se, custando-lhe acreditar que uma boneca assim pudesse ser encontrada num ambiente daqueles. Seria mesmo puta? Ou a miragem de uma deusa? Um sonho, quem sabe.
 
No auge subiram ao céu e vagaram entre as estrelas. Quando terminaram, ele percebeu que ela tremia dos pés à cabeça os resquícios do gozo prolongado. Então, de costas no colchão de espuma mole, puxou-a para si aninhando o rosto dela no seu peito nu,  de modo que pudesse descansar o queixo nos cabelos de seda e suave perfume de gardênia. Em silêncio, esperou que ela se acalmasse.
 
- Quem é você? De qual galáxia veio?
 
- Lindamir. De onde eu vim, não sei.
 
- Beto. Sou daqui, penso. Ou de qualquer lugar.
 
Não se disseram muito mais. Ele foi embora prometendo voltar. Ela esperando todas as noites.
 No fundo dos pensamentos dele os versos de uma conhecida canção do repertório boêmio:

 
Boneca de trapo, pedaço da vida
Que vive perdida no mundo a rolar
Farrapo de gente que inconsciente
Peca só por prazer, vive para pecar

Quis retornar na noite seguinte. Todavia, sentiu que a barra iria pesar. Coração fisgado. Inacreditável apaixonar-se por uma puta. Não conseguia tirá-la da cabeça um minuto sequer. Esperaria a vontade passar.
 
Aguentou o que pode. Não resistindo, voltou. No caminho que vencia a pé, indagava às pedras se ela ainda estaria lá, sentada, à sua espera. E se estivesse conversando com outro homem? Ou dançando? Pior: e se ao entrar não a visse? Certamente estaria no quarto com um cliente. Meu Deus, o que faria? Pensou em desistir. Parou na rua ensaibrada um instante, deu meia-volta. Nem dez passos. Corrigiu o rumo para o bordel. Precisava vê-la.
 
Era cedo. Nenhum freguês ainda. Ela ocupava o mesmo lugar. Talvez porque se sentisse melhor ali ou por norma da casa; cada uma no seu canto.
 
Postou-se em pé diante dela. Os olhos encontraram-se num facho de luz. Ela levantou-se mostrando nos lábios o sorriso mais lindo.
 
- Estou apaixonado - ele confessou sem sentir.
 
- Eu, morta de desejo.
 

 
Boneca, eu te quero com todo pecado
Com todos os vícios, com tudo, afinal
Eu quero esse corpo que a plebe deseja
Embora, ele seja prenúncio do mal

Novamente puderam se entregar ao amor pago num quartinho de zona. Outra vez a volúpia e o tremor incontível sucedendo ao gozo infinito.
 
Tantas vezes ele repetiria o trajeto de casa até o bordel. Sempre o sorriso nos lábios dela e os olhos cheios de amor e júbilo, quando encontravam os seus.
 
- Vou tirá-la daqui. Domingo  venho buscá-la para almoçar conosco. Você vai conhecer minha família.
 
Um frio na espinha. Ela nunca havia considerado essa hipótese. Achou que levariam a vida daquela maneira. Uma paixão que jamais poderia sair das quatro paredes do bordel.
 
- Não, Beto. Não posso. Como vou olhar para sua mãe? Escolhi esta vida. Não é certo você levar para a mesa da sua casa uma mulher da zona.
 
- Ninguém precisa saber. Você não tem cara de prostituta. Nem está gravada na sua testa essa condição que, aliás, será apagada definitivamente do seu passado com a força do nosso amor.
 
- Eu não suportaria viver com este segredo. Sou puta, mas tenho caráter e sou honesta. Nunca enganei ninguém. Nem pretendo.
 

 
Boneca noturna que gosta da lua
Que é fã das estrelas e adora o luar
Que sai pela noite e amanhece na rua
E há muito não sabe o que é luz solar

- Está bem. Vou deixar você se acostumar com a ideia. Mas esteja certa de que não vou recuar tão facilmente. A não ser que eu sinta ou você diga, olhando nos meus olhos, que não me quer.
 
Muitas vezes Lindamir esteve a ponto de aceitar a proposta. Sofria horrores com a lembrança sempre presente do amante. Entretanto não encontrava forças para seguir com ele. Preferia rastejar pelos cantos, contorcendo-se com a dor do amor impossível, do que viver uma mentira. Quando pensava em aceitar, mas contando a verdade, logo imaginava no semblante de cada familiar ou amigo dele a acusação perene a lhe fustigar até o fim dos dias. Mesmo que o dedo em riste fosse apenas um fantasma distante de uma possível realidade.
 
Ele ainda insistiu durante muito tempo, porém sem sucesso. Desfrutou o amor da mulher amada pagando por ele numa cama de bordel, sentindo simultaneamente prazer e dor ao desejar libertar-se de um vício atroz.
 

 
Boneca vadia de manha e artifícios
Eu quero para mim seu amor, só porque
Aceito seus erros, pecados e vícios
Pois, na minha vida, meu vício é você

Anos depois, Beto encontrou um novo amor. Não da mesma intensidade daquele que viveu com Lindamir, mas suficiente para casar-se e ter filhos. Ela continuou sua vida no bordel. Às vezes contava essa história a algum freguês que lhe inspirasse confiança, e voltava a tremer dos pés à cabeça se na hora do gozo supremo concebesse na imaginação o corpo do amado.


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N. do A. (1) - Conto baseado numa história real.
 
N. do A. (2) - As inserções em destaque ao longo do texto correspondem à letra original de Meu Vício é Você de Adelino Moreira, sucesso de Nelson Gonçalves gravado em 1953.
 
N. do A. (3) - Na ilustração, Na Cama: O Beijo de Henri de Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 19/04/2013
Reeditado em 29/08/2021
Código do texto: T4248806
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