Jacó, o superego e os homens.

Jacó era um rapaz muito diferente dos demais. Não bastasse sua aparência um pouco solta, desatinada, cabelos ondulados ao sabor do vento, de qualquer brisa, diga-se de passagem, há muitos anos não escovava os dentes (aqueles que restavam na sua cavernosa boca) e os banhos eram raros, raríssimos como um bilhete premiado de loteria.

No entanto, apesar de todas as singularidades acima referidas, sua nota principal, o que mais destacava Jacó dos outros jovens da sua idade era uma peculiar forma de falar (apesar de quase nunca o fazê-lo), se é que essa definição seja a mais adequada ao evento, a qual surpreendia quem tivesse a honra de trocar algumas palavras com nosso querido representante dos excêntricos mais acentuados.

Certo dia, numa manhã fria de outono em que a brisa, com vigor incomum, atacava a cabeleira de Jacó como se fosse o próprio Menelau tentando ultrapassar os muros da cidade de Tróia, nosso querido personagem foi colhido de surpresa em sua caminhada cotidiana em virtude de alguns questionamentos feitos por um transeunte que passava ao lado, também caminhando.

Educado com sempre, Jacó responde às perguntas sem desatinar: _ andando, Senhor. E continua:_ é logo ali, passando a esquina o Senhor vira à direita, caminha uns cem metros e encontrará o bar do Mário, aquele que.....desculpe, o Mário, só isso...Enfim, ultima o diálogo: _de nada Senhor. Desculpe a brincadeira e...não precisa correr!

Correr e correr, para longe. Jacó estava habituado a esta situação mas, em algumas oportunidades em especial, a angústia lhe apertava o peito como que querendo sair numa explosão hecatômbica, quase que impossível de ser contida em uma caixa toráxica diminuta como a do infeliz Jacó. Pensava em aplacar o mundo à golpes de porrete, sem dó! Ver o sangue da humanidade respingar nas alturas e deliciar-se.

Tais pensamentos, apesar de não serem recorrentes, também não eram tão escassos a ponto de serem desconsiderados e, para Jacó, cada vez que a angústia o afligia era um momento de medo ainda maior, pois temia que seu coração se amargurasse a tal ponto de, um dia, não conseguir retornar para o seu padrão normal de civilidade, de solicitude, características que se destacavam e que a muito custo eram exercitadas.

Cansado, empedernido com o corrido, Jacó resolve se dirigir para o mesmo bar que anteriormente tinha indicado ao transeunte, a fim de afogar um pouco as mágoas e explicar-se com o apavorado senhor que correu medrosamente, como se tivesse visto em Jacó algum monstro que, com certeza, afirmava para si mesmo, não correspondia com a verdade de sua alma adocicada.

Chegando no bar, um pouco esbaforido, nosso pobre homem cumprimentou o Senhor Mário, dono de uma enorme barriga que não concatenava com o resto do corpo esquelético, parecendo, numa descrição pouco elogiosa, uma cobra jibóia que acabara de comer um elefante e cuja digestão se encontrava a meio caminho. O dono da pocilga, solícito, serviu uma dose de aguardente, ou melhor, uma dose de “arde guela”, como o próprio Jacó se referia, pois sua boca não possuía tantos “dentes para arder”.

Ah, coisa boa, uma dose de pinga! Disse para si mesmo Jacó. Pôs suas mãos na parte de trás da cabeça, afastou bem os cabelos ondulados, aproximou o copo da radiante bebida e, estando à poucos centímetros da região posterior da cabela, jogou o precioso líquido boca adentro, sentindo uma mistura estranha de prazer e dor, sentimento experimentado por todos aqueles que apreciam esta espécie de “manjar dos deuses”.

É isso mesmo. A boca de Jacó não se situava na região em que todos os demais mortais a possuem, ou deveriam possuir. Por uma infelicidade da natureza, ou quem sabe não, Jacó nasceu com seu orifício bucal, por assim dizer, na parte de traz da cabeça, próximo da nuca. Tal situação era desconfortante mas o hábito o fizera se acostumar e a destreza adquirida impediu qualquer privação no que se refere à capacidade de prover a própria alimentação.

Porém, as pessoas nunca se acostumaram com sua forma peculiar. Visando amenizar está estranha situação, Jacó mantinha um desenho representativo de uma boca na parte frontal de seu rosto, no local sabido por todos, porém, seus dotes artísticos não eram dos mais acentuados e a situação de alguém conversar com uma boca que nunca se abre causava mais espanto do que qualquer outra coisa, redundando, quase sempre, na fuga do interlocutor.

Esta humilde existência, dolorosa mas única, distinta das demais e, de certa forma, dotada de um significado peculiar e até altivo, como todas as outras, teve um ponto final que, no caso de Jacó, deu-se quando seu franzino corpo, atormentado pela ingestão diária de manjares, resolveu encerrar suas atividades mais basilares e necessárias, como um empregado que, cumprindo com os requisitos legais, resolve se aposentar.

Poucas pessoas acompanharam o cortejo fúnebre e nenhuma destas, demagogicamente, pôs-se a chorar, apenas cumpriram com uma espécie de obrigação fraternal, que se realiza para fins de evitar o tormento futuro de um superego que, das manerias mais sutis, costuma relembrar as faltas.

Baixado o caixão, realizadas as orações ritualísticas e tampado o sepulcro, perguntaram-se as pessoas ali presentes, como que premidas por uma curiosidade repentina, qual seria o epitáfio mais adequado ao defunto, o q ue melhor definiria sua passagem nesta terra. Após algum rebuliço, cochichos e sorrisos, surgiu a seguinte indicação, por todos aprovada: “Aqui Jaz Jacó, o ser que não tinha o dom da palavra!”

Por fim, todos os presentes no cortejo fúnebre resolveram se dirigir à residência do pobre Jacó, cuja suntuosidade não costumava deixar saudades nos visitantes. No pequeno e inabitado barraco adentraram e de pronto, em cima da mesa central, localizada num dos dois cômodos da casa, encontram uma vasta gama de bonecos feitos com materiais retirados, ao que tudo indicava, dos dejetos que as pessoas jogam nas lixeiras.

Todos os ali presentes estavam representados como bonecos e todos, sem nenhuma exceção, tinham as bocas localizadas na parte de traz da cabeça, peças de um teatro imaginário onde nosso falecido herói não poderia ser alvo de chacota, de escárnio ou de medo. Os bonecos estavam bem vestidos, apesar dos materiais utilizados não serem de alta qualidade, menos a figura do próprio Jaco, que ali estava representada como sendo a de menor esplendor, autorretrato perfeito de sua autoconsciência.

Diante de tal circunstância, os presentes começaram a chorar e se martirizar, lembrando das situações, que não foram poucas, em que o pobre Jacó foi hostilizado, muito embora nunca tenha, efetivamente, manifestado sua revolta de forma incisiva, contumaz. É o superego, novamente, fazendo a sua ronda diuturna, observando os erros, os defeitos que, no caso, os fatos não deixam de evidenciar.

Deste dia em diante o Sr. Jacó, isto mesmo, “o Senhor Jacó”, passou a ser lembrado com o carinho que nunca recebeu em vida e todos aqueles que perguntavam sobre este nosso personagem recebiam a informação de que o distinto Jacó foi uma pessoa muito sábia, que soube viver sua vida na resignação, ainda que atormentado por um pequeno problema físico que nunca foi motivo de deboche, nem fato que lhe impediu de viver condignamente.

Até seu epitáfio mudou, muito embora ninguém saiba até hoje quem foi o patrocinador desta empreitada. Sua nova mensagem, que o acompanharia pela eternidade, passou a ser a seguinte: “Há coisas que melhor se dizem calando”. É, frase de Machado de Assis. Nosso Jacó, agora, é uma estrela de alto quilate!. E ninguém mais falou negativamente de Jacó que, muito tempo depois, passou a ser lembrando como um dos melhores oradores da cidade, quiçá do país.

É clarividente que não se pode mudar o que passou. O ser humano, algumas vezes, pretende mudar o futuro visando aplacar as falhas do passado, esquecendo-se de mudar, primeiramente, o interior de si próprio. Jacó passou, foi humilhado e depois, exaltado. As pessoas agora apontam os dedos para outros Jacós!