O matrimónio dos Poggetto

I

A costa italiana vislumbrava-se no horizonte carregado de cores vivas. A tripulação do barco retirou a bandeira de Argel para a substituir pela do duque de Poggetto, uma prudência necessária para evitar derramamento de sangue inútil.

O barco deslizava pelo mar azul prenúncio de um novo dia quente, o vento sul abanava as velas arrastando a embarcação para terra num balancear preguiçoso e morno. Pequenas ondas esbranquiçadas batiam vagarosamente no casco feito em madeiras provenientes das florestas suecas, como tributo aos estaleiros de Argel.

Os porões carregavam as provisões suficientes para um mês. O paiol de pólvora continha o suficiente para alimentar as baterias do tombadilho salvaguardando a defesa do dey e da comitiva, que raramente se aventuravam a penetrar no coração do mundo cristão, eterno inimigo daquelas faces tisnadas pelo Sol e enrugadas pelo mar.

Um homem de porte atlético e maneiras delicadas observava a azáfama dos marinheiros subindo e descendo aos mastros para orientar as velas.

- Desembarcaremos dentro de algumas horas.

Thiago admirava a perícia da tripulação escolhida criteriosamente entre os melhores da pequena cidade de Argel, situada no norte de África, enquanto Rodolfo observava o céu.

Abdul Hauqel olhou sorrindo para o amigo antes de continuar.

- Nunca pensei deixar o palácio de Janina para assistir ao casamento de um fidalgo italiano, mas jamais recusaria a honra de assistir ao matrimónio do duque de Poggetto, meu querido amigo e antigo embaixador de Veneza na minha cidade.

- O teu gesto é louvável. Eu conheci o duque numa recepção, logo fui cativado pela eloquência das suas palavras e pelas maneiras delicadas comprovativas de um alto grau de educação. Um nobre notável que muito contribuiu para a aproximação de homens de raças e credos diferentes. Ele sempre demonstrou ser um perfeito diplomata intensificando as relações entre os povos.

- Sem dúvida. Precisamos agora de atravessar regiões em que apenas podemos contar connosco, terras pertencentes a desconhecidos que não devem ter a hospitalidade do nosso anfitrião.

- Sim, quando desembarcarmos no porto jamais deveremos revelar as nossas identidades. Iremos cruzar-nos com inúmeros cavaleiros que se bateram com guerreiros muçulmanos e muitos desejariam de bom grado ver-nos encarcerados em frios calabouços ou até mortos.

- Iremos estar atentos para evitar o pior. Como medida de precaução este barco foi construído por um polaco, em nada se parece com as minhas embarcações mouras que cruzam o mar Mediterrâneo. Em terra seremos acompanhados por seis janizaros que falam fluentemente a língua italiana. Um pequeno grupo desperta menos suspeitas do que uma numerosa comitiva.

De repente o vigia começou a agitar os braços e a gritar que já se avistava o porto. Imediatamente todos se prepararam para as manobras, um pequeno barco a remos deslizou do cais de embarque rumando em direcção à barca acostando minutos depois. Algumas escadas de cordas voaram e um corpulento italiano de bigodes encerados subiu com dificuldade para o tombadilho.

Durante um tempo o homem inspeccionou os papéis oferecidos por Thiago e depois de inúmeros entraves, quando lhe ofereceram algumas moedas de prata, mandou a embarcação avançar. O astro-rei cedera o reinado à Lua quando pela primeira vez Abdul Hauqel desembarcou na península itálica.

- Necessitamos de retemperar as forças. Vamos primeiro para uma estalagem prosseguindo amanhã a jornada.

Perto do cais descobriram uma pequena hospedaria apinhada de homens rudes, que trocavam novidades em voz alta sublinhando as afirmações com gestos desmedidos Ao entrarem, um criado vestido com tecido grosseiro e de barrete indicou uma mesa perdida a um canto, e sem auscultar os clientes trouxe de imediato canecas de vinho.

Na mesa ao lado, um indivíduo vestido com um casaco de capuz e a cabeça descoberta, narrava aos berros um acontecimento muito importante que abalava a aldeia naquele momento. Um janizaro conhecedor da língua italiana apressou-se a informar os presentes.

- Parece que um terrível salteador se encontra cercado pela guarda numa casa fora da aldeia. Alguém denunciou o seu paradeiro e uma força composta de vinte homens não lhe dá tréguas nem um momento de descanso.

Rodolfo abriu a boca admirado e interrogou.

- Como pode um homem sozinho enfrentar duas dezenas de soldados?

- A progenitora parece ser uma terrível bruxa que o auxilia a defender-se. Durante muitos anos o bandido assassinou vários viajantes na estrada principal até que agora finalmente vai cair nas mãos da justiça.

- E a mãe, porque a receiam?

- Nunca contactou com ninguém, vive do que a terra lhe dá nunca se aproximando de uma povoação. Um dia quando três homens a tentaram matar, apareceu um animal incrível que a auxiliou a desembaraçar-se dos inimigos e todos acreditam que foi o próprio diabo em pessoa a ajudou na altura.

Um silêncio revelador de temor caiu sobre os presentes sendo o dey de Argel o primeiro a interrompê-lo.

- Quem é esse demónio que pode transformar-se em animal?

Thiago ponderou as palavras antes de responder a Abdul Hauqel com o seu semblante traindo grande preocupação.

O demo é o mal, temos liberdade nas nossas acções, contudo muitas vezes o belzebu tenta-nos a praticar as mais incorrectas.

- Seria mesmo o diabo a surgir? Se três homens tentam matar uma mulher indefesa aparecendo na altura uma criatura será esse defensor o mafarrico? Ele nunca iria ajudar a senhora em dificuldades.

Thiago não disse mais nada. Bebeu o vinho olhando em redor da sala, entretanto alguns clientes principiavam a debandar recolhendo-se às respectivas casas.

Depois de saciarem os estômagos todos se dirigiram para os quartos. Um sono reparador esperava-os antes de seguirem viagem.

II

Um galo oportuno cantou anunciando o princípio do dia e despertando os hóspedes. O frenesim habitual instalara-se entre os criados em mais um dia de trabalho.

Depois de ajaezarem os cavalos o grupo atravessou a vila e entrou na estrada principal contornada por árvores de grande porte. A manhã apresentava-se perfeita para a jornada. Os cavaleiros saboreavam o aroma do campo apreciando paisagens desconhecidas para quem vive normalmente em desertos e urbes. Coelhos atravessavam o caminho em velocidades impensáveis e lagartos escondiam-se nas pedras temendo aqueles seres descomunais para o seu tamanho.

De tempos a tempos os cavaleiros cruzavam-se com carros de bois que penosamente arrastavam grossos troncos de pinheiros, mulas de modestos arreios em marcha lenta transportando camponesas com saias cinzentas, sem casacos e sapatos toscos, ainda adormecidas pelo calor.

Junto a um riacho, um rapaz montando um burro que freneticamente sacudia a cauda para afastar as moscas, conversava com uma mulher de cesto pousado sobre a relva que ao ouvir a conversação do companheiro soltava juvenis gargalhadas acariciando com a mão o focinho do jerico.

Abruptamente a paz foi interrompida por uma salva de tiros que pareceu não importunar o casal.

- Depressa os tiros vieram dali.

Um janizaro indicava apontando a direcção, ligeiros entraram numa clareira a tempo de verem um homem sair de um casebre de mãos levantadas e ser recebido com uma saraivada de balas que o postaram por terra. Uma mulher correu atrás da vítima debruçando-se sobre ela como que a querer protegê-la de nova agressão. Acto contínuo um soldado destacou-se do grupo aonde se integrava e enfiou na cabeça da mulher um capuz negro atando-o no pescoço, apesar da resistência da idosa. Em seguida arrastou-a até uma árvore apontando o arcabuz para ela.

- Alto!

Thiago gritou a tempo de evitar o assassínio, nem os soldados nem os janizaros baixavam as armas, mas nenhum dos grupos queria começar a peleja que se sabia de antemão vir a ser sangrenta.

- Quem sois vós para nos deter?

O capitão dirigiu-se ameaçador para Thiago parando o cavalo em frente do português.

- Sou um convidado para a boda do duque de Poggetto e não desejo assistir a um crime.

- Esta mulher não passa de uma bruxa.

De repente um animal incrível saltou do arvoredo, os soldados fugiram aterrados preparando-se o dey, Rodolfo mais o restante séquito a vender cara a vida. Thiago no entanto desprezou o monstro, aproximou-se da velhota, abraçou-a e acto imediato o animal desapareceu como por encanto.

Abdul Hauqel aproximou-se dos dois, ainda de espada desembainhada, observou o amigo levantando a anciã amparando-a por um braço.

- Estranha terra aonde os monstros aparecem subitamente e evaporam-se como a espuma do mar.

- Apenas observastes uma ilusão. Convido-te a procurares no chão pegadas da fera.

As tentativas do monarca de Argel para descobrir as pisadas apresentaram-se infrutíferas e escutou o companheiro.

- Presenciastes um caso de hipnotismo colectivo. Lembro-me há muitos anos quando vivia numa caravana de saltimbancos, um mago castelhano iludia a assistência levando-a a pensar existir um naufrágio. Quando despertaram do estado hipnótico, alguns dos mais respeitáveis espectadores agarravam-se no chão às cadeiras e as mais austeras damas simulavam nadar na pista.

- Espantoso. Gostaria de ver um espectáculo assim no meu palácio de Janina.

- Infelizmente um conde enforcou-o acusando-o de magia negra.

Sentada numa pedra a mãe olhava tristemente para o corpo do filho sangrando abundantemente no peito.

- Como te chamas boa mulher?

De olhos lacrimejantes a velha respondeu a soluçar.

- Marina.

- Preferes ficar ou seguir connosco? Certamente os soldados regressarão mais tarde.

- Senhor, o meu filho era a única razão que me mantinha fixa nesta terra fora da lei de Deus, contudo receio transtornar a vossa viagem.

- Veste as roupas do teu filho, monta um dos cavalos dos soldados abatidos pelo teu filho e acompanha-nos. Ninguém te reconhecerá.

De novo se meteram ao caminho furando rebanhos de ovelhas e caçando javalis descuidados que pagavam com a vida a aventura de se cruzarem com os cavaleiros.

Ouviram histórias fantásticas dos peregrinos, ultrapassaram monges e descobriram estranhos eremitas em estado de absoluta santidade, aconselhando as gentes pias dos lugares por onde passavam a se manter na estrada para o Paraíso na companhia do Bem. Pássaros inundavam a atmosfera com melodias suaves e borboletas graciosamente embelezadas pela mão do Criador ornamentavam as estradas emprestando um pouco de colorido à vegetação.

Quando descia a tarde do segundo dia, aproximaram-se de uma pequena hospedaria e aproveitaram para abrigar os cavalos em uma cavalariça entrando numa sala aonde na precisa altura serviam o jantar. Abdul Hauqel lamentou não haver mesas livres para o grupo.

Um criado solícito acercou-se e com uma grande referência aconselhou o grupo.

- Uma dama viaja sozinha com dois guardas. Talvez ela permita que se sentem na sua mesa que é a maior que possuímos, podendo a vossa escolta comer na cozinha.

Rodolfo aceitou a sugestão e acompanhado do dey, de Marina e de Thiago abordaram a nobre donzela.

- Senhora, permitis que utilizemos a vossa mesa hoje?

A jovem olhou para os recém-chegados e depois de os analisar acedeu com agrado.

- Queiram sentar-se. Gosto da companhia de gentis-homens, nestes tempos tumultuosos e de trevas, novos amigos são sempre bem-vindos e mais preciosos que ouro e prata.

Lucrécia apresentava-se deste modo aos seus companheiros, bastante jovial, em breve parecia ser um conhecimento de longos anos. O jantar decorreu sem incidentes, a maioria dos hóspedes já se tinham recolhido quando um grupo de homens armados entrou na sala forçando a porta de entrada e o que aparentava ser o chefe dirigiu-se para a moça.

- Acompanha-nos.

De feições transtornadas pelo pavor, a jovem escondeu-se atrás dos dois homens que a acompanhavam e que se tinham levantado desembainhando as espadas. Todos na sala se prepararam para a luta, excepto Thiago que se manteve sentado, porém foi a sua voz que soou na sala.

- Ela fica connosco!

- Como te atreves?

O gigante que comandava o grupo preparava-se para ferir o interlocutor, mas uma força invisível segurava-lhe na espada não o deixando levar em frente os seus intentos. Thiago continuou a falar calmamente.

- Esta senhora é guardada por inúmeros duendes que enchem a sala.

De repente, a sala que alardeava estar vazia começou num frenesim estranho, canecas andavam no ar transportadas por mãos invisíveis, tabuleiros com carnes cruzavam-se rapidamente e uma viola principiou a tocar sozinha, o suficiente para o bando aterrado recuar saindo em pânico da hospedaria. Dois dos bandidos apavorados tinham corrido para a cozinha, contudo passados breves instantes regressavam espavoridos de novo ao salão fugindo de vez do albergue, perseguidos pelos janizaros com facas nas mãos e coléricos por lhes terem interrompido a refeição.

Um coro de gargalhadas ecoou no recinto. O dey de Argel gritava para os seus homens em árabe na frente dos estupefactos criados que jamais haviam assistido a uma cena daquela natureza.

Thiago continuou calmamente a comer e encarou os amigos.

- Não nos devem tornar a incomodar mais, os meus “duendes” e os janizaros de Abdul Hauqel devem dar-lhes pesadelos para várias noites.

Lucrécia sorriu cismática e todos escutaram a sua apreensão.

- Hoje afugentaram os meus inimigos, mas receio cair em novas armadilhas. Se estes foragidos entraram à vontade esta noite na sala, sendo recebidos desta maneira, certamente que na próxima tentativa de me raptarem serão mais prudentes. Certamente pretendem um resgate.

Marina apertou a mão da moça e afagou-lhe a cabeça com carinho.

- Talvez possas seguir connosco durante algum tempo. Para aonde ides?

- Para o palácio do duque de Poggetto.

Um murmúrio de admiração percorreu os circundantes e Abdul Hauqal transmitiu a sua ideia perante a aprovação de todos.

- Nós também seguimos para assistir ao casamento do duque, porque não vais na nossa companhia?

Radiante, com um brilho nos olhos, Lucrécia concordou satisfeita abraçando Marina e depois de se despedir, subiu com esta as escadas em direcção ao quarto deixando os homens sozinhos.

- Quem desejará raptar Lucrécia? Podíamos ter obrigado um dos assaltantes a dizer quem ordenou o sequestro.

- Não nos lembrámos na altura, foi tudo muito rápido, intensifiquemos as nossas precauções. Eles não nos conhecem e procuram arrebatar a nossa companheira. Cumpre-nos protege-la como dama e como convidada para o casamento do duque, talvez sejam salteadores da estrada que apenas a procurassem para a roubar e exigir um resgate.

O dey de Argel interveio na conversa expondo uma ideia.

- Hoje colocarei um janizaro de sentinela à hospedaria. A donzela também tem dois custódias, quanto maior o nosso grupo melhor nos defenderemos durante a jornada.

Todos concordaram e retiraram-se para os aposentos deixando a hospedaria no mais profundo silêncio. Numa árvore próxima uma coruja começou a piar, até ao momento em que alguém pegou num copo com água lançando-o na esperança de a calar. Não a atingiu, ela esvoaçou afastando-se prudentemente da estalagem deixando apenas o som do balancear dos ramos dos sobreiros ao vento.

III

Bem cedo o grupo retomou o caminho penetrando no arvoredo queimado pelo Sol. Rolas voavam em redor e uma águia imponente picava como uma seta sobre um rato que saltitava procurando abrigo, ao longe nas montanhas as searas doiradas contrastavam com o azul do céu.

Passadas algumas horas, o matagal e as rochas davam lugar a um manto de erva verde sobranceira a uma pequena aldeia enterrada num vale, servida por um rio que serpenteava duas ou três colinas como uma cobra metálica adormecida.

Lentamente desceram ao povoado chegando a uma feira aonde os habitantes compravam toda a espécie de utensílios como alfaias, hortaliças, casacos de lã, tamancos e uma infinidade de bens mudavam de dono no meio de intenso palavreado. O calor apertava, o pó cobria as bancas entranhando-se no nariz transmitindo uma sensação desagradável intensificada pelos odores da praça.

- Parece um sonho.

Lucrécia extasiada pela paisagem, transmitia a ideia geral ao observarem aquele lugar digno de servir de modelo a um célebre pintor. Um caminho de areia dirigia-se para o centro da aglomeração.

- Os nativos aproveitam a natureza construindo sólidas habitações. Reparem que as casinhas são fabricadas com rochas e pedras semelhantes às que passámos, transportadas por carros de bois.

Todos os habitantes vestiam os fatos domingueiros. Miúdos e graúdos, de olhos bem abertos, ouviam os feirantes enaltecerem as numerosas qualidades dos artigos comprados no interior do país e resgatados agora a troco de algumas moedas, pecúlio economizado durante o ano para este momento.

A feira realiza-se no sopé do castelo de velhas muralhas enegrecidas pelo tempo, mas cada vez mais altivas pelos séculos. Os sons de guizos, palavreados, berros fervilham na praça transformando-a num grandioso recinto de interesses de circunstância.

Descendo dos cavalos os viajantes abriram dificilmente caminho no meio da multidão que sufocava, e já se preparavam para deixar aquele pequeno Inferno, quando um moço saindo apressadamente de uma tenda escorregou caindo desamparado à frente de Rodolfo, que ao tentar o levantar sentiu a lâmina fina de uma espada encostada nas costas.

- Deixa-o!

Rodolfo recuou não largando o braço do rapaz, que com o terror estampado no rosto fitava as faces indiferentes do espadachim, que certamente habituado a ser prontamente obedecido mostrava-se cada vez mais agressivo.

- Deixa-o, quero lhe dar um correctivo que nunca mais terá a ousadia de roubar uma maçã.

Um grupo ávido de curiosidade assistia à cena. Rodolfo sem deixar de se interpor entre o perseguidor e o perseguido procurou a bolsa atirando algumas moedas ao homem.

- Leva este dinheiro que te paga o prejuízo.

De modo violento o espadachim lançou por terra as moedas oferecidas e tentou afastar o opositor, contudo Rodolfo adivinhando a intenção atirou-o por terra.

- Pagarás com a vida a afronta.

Enquanto o ladrão da maçã fugia o indivíduo pegou na arma para esgrimir, procurando resolver rapidamente a peleja sem o conseguir e com o passar dos minutos ia-se sentindo menos seguro. Um grupo de guardas que passava tomou de imediato o partido do agressor e em pouco tempo o duelo tomava a forma de uma batalha campal.

Sons de trompetas conseguiram terminar a refrega, um cavaleiro de barbas brancas acercou-se do grupo seguido de numerosa comitiva. Depois de ouvir a versão de ambos os grupos desmontou do cavalo e abraçou Rodolfo sob o rancor do adversário.

- Perdoa o meu filho. Ele usa demasiado as armas faltando-lhe no entanto a prudência.

- Senhor, recusei-me a assistir a um cruel castigo.

- A bondade inunda o teu coração. Se o meu filho Olasso foi demasiado severo com o larápio, contigo não respeitou as normas da cortesia. Desejo que me visites no meu castelo, és forasteiro e eu gosto sempre de saber as novidades de outros lugares.

- Agradeço a honra da vossa hospitalidade.

Com a reverência o grupo viu o cavaleiro montar o ginete retomando o caminho interrompido pelo diálogo.

Sem comentarem o sucedido os viajantes gastaram o resto da tarde na praça e quando desaparecia o Sol no horizonte apresentaram-se no castelo. Um pajem recebeu os cavalos e um criado convidou-os a entrar num salão aonde se destacavam uma lareira, uma mesa excepcionalmente comprida e várias cabeças de javalis e veados pregadas nas paredes.

- Ainda bem que aceitaram o meu convite, folgo muito em receber o homem que ensinou a nobre arte de esgrima a Olasso.

Uma gargalhada ecoou na mesa aonde se sentavam os convidados do conde de Cavalcanti, apenas o filho do fidalgo continuava a ostentar as feições neutras de sempre. Rodolfo agradeceu o convite do conde apresentando os companheiros. Olasso pela primeira vez enrubesceu quando trocou um cerimonioso aperto de mão com Lucrécia.

A conversa decorreu animada e prazenteira, ficando acordada a partida no dia seguinte. O filho do conde de Cavalcanti surpreendeu todos quando encarou o pai dizendo-lhe.

- Amanhã partirei com eles.

Um murmúrio de espanto percorreu a assistência, contudo o conde ficou pensativo antes de dirigir-se a Rodolfo.

- Tens o direito de recusar a companhia dele, mas asseguro-te que assim como é precipitado no uso da arma também é leal e ajudar-vos-á em todos os empreendimentos.

- Não duvido da sua fidelidade e acabas de confirmar as minhas impressões sobre ele. Amanhã poderá partir connosco, apenas coloco uma condição.

- Qual?

- Só poderá usar uma arma que lhe será dada por nós.

Olasso ainda esboçou protestar, mas o ar resoluto de Rodolfo acabou com qualquer possível tentativa de discordância e todos abandonaram o salão, dirigindo-se para os aposentos a descansarem da longa jornada.

Uma coruja principiou a piar esvoaçando assustada quando alguém a tentou atingir com um copo de água, um grito soou no castelo.

- Raios, fugiu outra vez.

Depois caiu o silêncio e a calma voltou a reinar.

IV

No dia seguinte, antes de partirem, Thiago entregou um pequeno bacamarte a Olasso que resignado o guardou apertando-o entre a camisa e o cinto. O dia amanhecera sem nuvens e o conde despediu-se com os olhos raiados de sono, preço de uma noite mal dormida devido ao festim da véspera.

O som de trompetas anunciou a saída dos convidados que se encontravam no adro do castelo do conde de Cavalcanti, um soldado ensonado rodou uma manivela para que um pesado mecanismo baixasse uma ponte levadiça, único acesso da fortificação com o exterior.

Os pássaros começavam a desbaratar a terra, os moleiros carregavam enormes fardos em direcção aos moinhos cruzando-se com pedintes, aventureiros e comerciantes vindos de toda a Itália para a feira, mulheres fiavam fios de linho que cuidadosamente guardavam em cestos de verga transmitidos de geração em geração.

A planície de trigo desapareceu dando lugar a um espesso matagal cujos gravetos arranhavam as pernas dos cavalos e cavaleiros que avançavam. Um janizaro que ia diante da comitiva com a ajuda de uma cimitarra abria um pequeno carreiro por onde passavam todos.

Um brado quebrou o silêncio, o grupo estancou o passo e com horror viram dois possantes javalis investindo contra Lucrécia. Sem perda de tempo Olasso disparou o bacamarte assustando os animais e o cavalo da jovem que empinou atirando-a ao chão. De imediato o moço saltou da montada abraçando a donzela aconchegando-a contra o seu corpo.

- Salvem-na, não a deixem morrer porque a amo.

Espantados rodearam o filho do conde e Lucrécia, sendo o dey o primeiro a responder-lhe.

- Ela não morre, apenas desmaiou com o susto e com a queda.

Suavemente, Lucrécia abriu os olhos vendo ainda com Olasso a abraçá-la, sorriu-lhe.

- Gostava que repetisses, meu “príncipe encantado”, da mesma forma, as palavras que dissestes há pouco.

Furioso por lhe terem descoberto o sentimento, o rapaz empurrou rudemente a jovem voltando a montar sob o olhar curioso dos companheiros.

Ninguém voltou a referir-se ao incidente e durante a viagem Lucrécia tentou infrutiferamente dialogar com o taciturno pretendente sem o conseguir.

Continuaram a jornada, num largo surgiu um robusto camponês a cortar uma cana com uma faca acompanhado de um velho andrajoso e de feições queimadas pelo Sol. Ao observarem os viajantes de imediato agarraram em dois arcos com flechas construídos por eles próprios esperando de forma cautelosa a reacção dos recém-chegados. Thiago acalmou-os enquanto acariciava a crina da montada e bebia um pouco de água de uma cabaça presa por uma corda à sela.

- Nada temam, estamos de passagem e apenas desejamos descansar um pouco.

Subitamente o velho correu para Lucrécia que ao reconhecê-lo saltou do cavalo, abraçou-o efusivamente apresentando depois o ancião ao cortejo.

- Senhores, eu nunca pensei encontrar aqui o meu pai. Tenho a certeza que ele vos acolherá condignamente.

Dois coelhos e um javali serviram de banquete e todos enalteceram o almoço confeccionado pelo camponês, fiel servidor do pai de Lucrécia.

- Permaneço neste lugar desde que o meu filho partiu para África. Deixei o meu castelo recolhendo-me neste lugar longe dos homens e das recordações.

A filha beijou-o no rosto e guardou os magros pertences do pai.

- Desejo que venhas connosco, antes de findar o dia. O meu coração transborda de alegria por te reencontrar.

Renitente o velho fixava a fogueira aonde os coelhos e o javali assavam deitando um agradável aroma para o ar.

- Minha filha, acompanhar-te-ei porque me pedes, no entanto tenho antes uma missão a desempenhar e sem ela não poderei seguir convosco.

- Diz o que te retém neste lugar?

- Dois aristocratas que vivem nestas terras guerreiam-se há longos anos espalhando a morte e a desolação por este território. Todos os anos por esta altura, assinam tréguas por um mês no meu casebre porque me respeitam muito e sentem que sou neutro em relação aos seus diferendos. Hoje é o dia em que novo tratado de paz será assinado e enquanto o pacto não for feito não poderei ausentar-me.

Abdul Hauqal sorriu matreiro inteirando rapidamente o grupo do seu plano para levar de vez a harmonia aquelas paragens. Todos se riram às gargalhadas traçando os pormenores. Se tudo corresse como o previsto nunca mais haveria guerra naquela região.

- Como se chamam os dois nobres?

- Um intitula-se de Barão Verde o outro de Barão Azul.

V

Um carreiro de areia deslizava directo a uma pequena clareira aonde um homem chorava copiosamente sentado em cima de uma pedra. Bem constituído parecia ali encontrar-se há longo tempo, demonstrando não dar pela chegada do Barão Verde acompanhado do séquito fortemente armado.

- Porque chorais bom camponês?

- Pelas desgraças deste mundo, nobre senhor. Pranto as minhas desventuras e as do próximo servo de Satanás.

- Porque o segues?

- Ilustre nobre, durante a minha primeira vida terrena, cometi as maiores atrocidades, desprezei os pobres, amaldiçoei os bons, trocei dos puros e o diabo sabedor dos meus defeitos quando morri escolheu-me para o acompanhar.

- Pobre alma.

O Barão Verde sorria incrédulo e aproximando-se do indivíduo, interrogou-o.

- Aonde está esse mafarrico?

- Por cima de ti nobre senhor.

Olhando para o alto o cavaleiro viu com terror um animal medonho de focinho de cabra, de longos chifres, cauda comprida terminando em seta e patas de burro flutuando no ar a sorrir com o ar de espanto do cavaleiro.

A tremer ouvindo os murmúrios de angústia dos seus seguidores, o nobre olhou para Thiago que se encontrava disfarçado de camponês perguntando-lhe num sussurro.

- Quem é o próximo servidor do demónio?

Com voz trémula Thiago respondeu-lhe ao mesmo tempo que se ouvia uma tremenda rizada do alto.

- O Barão Verde, que semeia sangue e chamas como ninguém pelos vinhedos e trigais lançando o terror nos mosteiros sagrados.

Tremendo de medo, o Barão Verde partiu à desfilada como perseguido por cem diabos, mal acompanhando a comitiva. Passados alguns instantes o “Satanás” descia do alto e retirava a mascara de feições de cabra deixando surgir um rosto bem-humorado.

- Que tal parecia eu vestido de diabo?

- Soberbo, Abdul Hauqal, nunca ninguém o representou com tanta convicção e realismo. Asseguro-te meu amigo que depois da tua gargalhada pensei que tu eras o próprio Belzebu. Como estará a decorrer a visita do Barão Azul a Marina?

- Adorava lá estar neste momento.

Algumas centenas de metros afastado daquele local outra cena se desenrolava com a presença da feiticeira Marina. O Barão Azul deparava com uma velhinha de aspecto frágil sentada num tronco caído de uma árvore.

- Sabes que estás numa propriedade particular? Espantas-me a caça.

Agressivo o nobre colocara a mão no punho da espada e interrogava Marina que continuava a bordar.

- Eu sei, nobre senhor. Porém faço companhia aqueles esqueletos que estão além.

O fidalgo espreitou para a direcção indicada e ficou lívido. Vinte ossadas lutavam entre si sem razão aparente.

- Porque estão a lutar?

- Aquelas ossadas são do Barão Azul, do Barão Verde e seus seguidores, nunca fizeram outra coisa senão guerrear. Dentro de um ano, se tudo correr como penso, eles morrerão e aquela visão vai se tornar realidade.

Pálido o Barão Azul começou receoso a afastar-se de Marina, e a tremer perguntou.

- Como sabes isso?

- Eu sou o Futuro e apenas te estou a dar a antevisão do que vai acontecer.

Horrorizado o nobre retirou-se nunca mais se ouvindo falar dele. Há quem diga que se afastou para Roma, mas é impossível confirmar.

VI

Depois de uma viagem muito acidentada, Thiago e os seus companheiros chegaram ao castelo do duque de Poggetto sendo recebidos pelo senhor feudal em pessoa.

O átrio estava engalanado de papelinhos multicolores e alguns convidados visitavam as ameias de onde se podia admirar muitas léguas em redor. O tempo ajudava a uma boa disposição e o matrimónio seria celebrado por um cardeal amigo que se deslocara propositadamente de Pádua para celebrar a cerimónia.

Quando viu Lucrécia, o duque de Poggetto desmontou correndo a abraçá-la expansivamente, contudo um tiro cortou aquela manifestação de carinho. Olasso cheio de ciúmes disparara e apenas a pronta intervenção dos homens do duque conseguiram evitar que ele continuasse a atirar.

- Levem-no de imediato para os calabouços.

Prontamente os soldados cumpriram as ordens e o duque, ainda meio aturdido pelo acontecimento, convidou o grupo a entrar para um salão. Depois de contarem todas as peripécias da viagem tudo voltou ao normal tendo a cerimónia do enlace decorrido sem incidentes.

- Porque não ficam aqui mais tempo?

Abdul Hauqal explicou a razão porque não podia satisfazer o pedido do anfitrião.

- Gostei muito da viagem, mas já tenho saudades da minha cidade.

- Compreendo-te meu amigo. Não vos retenho mais e apenas desejo um bom regresso a todos.

Soltaram Olasso do cárcere obrigando-o a seguir com uma venda nos olhos até chegarem a casa do pai.

O conde de Calvancanti ofereceu um grande banquete em honra dos visitantes convidando Thiago para a sua direita e Lucrécia para a sua esquerda.

- Como decorreu a viagem?

- Bem, porém o vosso filho continua a gostar de pegar em armas.

Olasso baixou os olhos envergonhado e deixou Thiago continuar.

- Não compreendo porque gosta de usar as armas quando pode defrontar javalis sem as mesmas.

O moço levantou os olhos espantado parecendo por momentos querer responder, mas calou-se prudentemente.

- Enfrentou os javalis com um bacamarte em que eu previamente retirara os projécteis e colocara pólvora seca. Felizmente para ele não podia utilizar a arma ou teria morto o irmão da noiva dele se eu não tivesse feito a mesma coisa.

- O duque era irmão de Lucrécia?

Olasso dificilmente continha a admiração olhando para Thiago e para a noiva.

- Sim. Durante a cerimónia aproveitei a oportunidade para pedir a mão de Lucrécia para Olasso e tanto o duque como o pai deram o seu consentimento.

O moço mal refeito da surpresa levantou-se, indo radiante abraçar a jovem.

- Nunca mais hei-de pegar em armas e um dia tenho de ir pedir desculpa ao duque pelo susto que lhe preguei.

Todos aplaudiram o rapaz, o jantar decorreu dentro dos limites do bom senso, se bom senso é comer três cabritos, vinte coelhos e seis javalis acompanhados de uma pipa de vinho.

- E o teu pai ficou com o duque de Poggetto?

- Sim, o pai julgava-o morto. O meu irmão passou demasiado tempo em Argel e ele julgava que ele estaria defunto.

Acabada a refeição todos se foram deitar e apareceu uma coruja. Uma sorte para ela o copo de água lançado com uma praga não lhe acertar.

- Bolas, fugiu outra vez.

Depois o silêncio.

VII

O barco deslizou no ancoradouro e a aragem batendo levemente nas velas pouco a pouco conduziu-o para o mar alto. Abdul Hauqal falava com Thiago.

- Uma viagem maravilhosa.

- Sim, tudo correu bem, o conde de Cavalcanti conseguiu convencer o filho a não usar mais as armas, Olasso casou com Lucrécia e ela convidou Marina para aia oferecendo-lhe um lar.

- O duque de Poggetto encontrou o pai e a irmã. Conheci a Itália e gostei muito, adorava aqui voltar.

- Podemos combinar nova viagem.

- Sim, dentro de alguns dias chegaremos a Argel.

O Sol queimava os braços da tripulação. Os marinheiros faziam os impossíveis por se livrarem dos raios enquanto manobravam a embarcação.

- Os nossos amigos janizaros estão a dormir e Rodolfo até ressona.

- Uma bela viagem, contudo muito esgotante.

- Concordo contigo. Sabes que aprendi a imitar uma coruja?

Abdul Hauqal começou a simular o som do piar da ave, repentinamente um balde com água voou duma vigia, encharcando-o todo e ouviu-se a voz de Rodolfo.

- Maldito pássaro, agora apanhei-te.

Thiago soltou uma gargalhada ao contemplar a cara de Rodolfo assomando à vigia e ao ver o dey de Argel sacudindo as roupas todas molhadas.

- Não existem dúvidas Abdul Hauqal que reproduzistes lindamente o piar da coruja.

FIM

Rui Manuel Resende
Enviado por Rui Manuel Resende em 17/04/2013
Código do texto: T4244657
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.