O senhor de Porcel

I

No camarote da praça pública, repleta de gente, o senhor de Porcel discutia qual a sentença que deveria ditar naquele dia cinzento de São Thiago, em 1472.

O largo, de terra barrenta, encontrava-se repleto de locais que faziam-se ouvir aos brados e comentavam o julgamento, aproveitando a oportunidade para comprarem víveres numa feira improvisada de tendas constituída expressamente para a ocasião.

- A morte na fogueira constituiria um castigo exemplar para esta bruxa.

O conde coçou a barbicha e ajeitou o bigode antes de replicar na sua voz pausada a dom Maximiano.

- Hoje não condenarei ninguém à morte, nasceu-me finalmente um filho varão. Chamar-se-á Thiago em honra do padroeiro da aldeia, porém a feiticeira deverá abandonar a povoação para sempre.

Dom Maximiano apertou o punho da espada cheio de cólera, mas o conde ignorou a atitude e levantou-se apontando para a feiticeira Molina, que jazia de joelhos à sua frente presa com correntes, escoltada por guardas de longas lança, briosos e de elevada estatura.

- Soltem as grilhetas, condeno-te ao desterro. Vai em paz, mas que a partir desta data que não te veja mais.

Lançando algumas moedas de prata aos pés da bruxa o nobre sentou-se satisfeito enquanto o povo o aclamava contente, tanto o conde justo e bom como a feiticeira sempre caridosa com os mais desafortunados. Ambos haviam ganho um lugar no coração da populaça e a razão daquele tribunal popular prendia-se com uma denúncia de um esbirro de dom Maximiano que a acusava de ter envenenado uma camponesa com mesinhas e bruxarias.

A pobre mulher levantou-se com dificuldade e recolheu as moedas colocando-as num bolso da longa saia preta e entre soluços respondeu ao fidalgo.

- Obrigado, meu senhor. Para tua desgraça não me verás mais, mas a tua acção bondosa será premiada num futuro distante.

Dom Maximiano não se dava por derrotado e insistia na sua aversão em relação à feiticeira.

- Fazeis mal em não a lançar às chamas. Esta mulher permanecerá certamente na aldeia.

O conde ignorou as palavras do comandante do seu grupo de soldados e colocou a sua mão grossa no ombro do seu auxiliar.

- Acalmai o vosso ódio e vinde a um banquete oferecido a toda a aldeia em honra do meu filho. Esta tarde javalis no espeto e vinho serão distribuídos gratuitamente e mandei vir da cidade da Guarda um grupo de ciganos que tocarão e dançarão para nós.

A multidão dispersou pela praça salpicada de vendedores, saltimbancos e monges do mosteiro próximo. Com dificuldade o conde, amparado por dois jovens e seguido do séquito dirigiu-se para uma tenda no centro da praça aonde as bandeiras desfraldadas com as armas do nobre, dançavam ao vento.

A feiticeira Molina desapareceu rapidamente e já não ouviu o galope de alguns cavaleiros a entrarem no largo, a principiarem a chacinar os camponeses e os guardas do nobre.

Sobre os gritos dos feridos a voz de dom Maximiano elevava-se no clamor, o ódio espelhava-se no rosto quando com a pesada espada rompeu a população e encarou o conde.

- Hoje a tua alma vogará no inferno para sempre.

O bravo nobre enfrentou-o de pé. Com um tremor a espada luzia ao defrontar o traidor, porém os anos não perdoavam e pouco a pouco as forças faltaram-lhe quando mais precisou delas. Com um grito estridente, dom Maximiano trespassou o peito do aristocrata e o corpo ensanguentado do governante da aldeia caiu-lhe aos pés perante o regozijo dos assaltantes.

- A partir de hoje ditarei a minha lei e todos me obedecerão. O conde preparou-nos uma festa aproveitem-na e vamos saquear o palácio.

Como lobos os energúmenos percorriam as ruelas da aldeia pilhando-a, destruindo tudo à sua passagem matando os indefesos aldeões que ousavam enfrentá-los.

Montando um cavalo alazão, dom Maximiano procurava de lar em lar os fiéis ao conde e as suas mãos tingidas de sangue pareciam insaciáveis de vidas inocentes.

- Para o palácio.

Seguido de numeroso grupo de cavaleiros bateu os poucos defensores do antigo senhor de Porcel revitalizando o furor com a procura infrutífera.

- Procurem o filho do fidalgo.

Apesar de percorrerem sala a sala, o bebé parecia haver-se evaporado como que por algum acto de magia.

- Molina.

Com asco o cavaleiro soletrava as palavras e as mãos crispadas agarravam a espada enquanto nas faces rubras os dois olhos negros pareciam afundar-se.

- Maldita bruxa.

A procura vã enfurecia-o e ao ver os esforços frustrados principiou a destruir o antigo salão do aristocrata, mas acalmou por fim. Era uma estranha imagem, um incêndio contra o céu negro elevando-se na povoação, que uma pequena caravana de saltimbancos observava quando deixou a vila.

- Não se preocupe dom Maximiano, mesmo que a criança sobreviva e reivindique um dia, os direitos do conde, jamais poderá provar de quem descende.

- Enganas-te, toda a descendência da família nasce com uma mancha nas costas.

Uma gargalhada ressoou no salão e o esbirro do usurpador acalmou o comparsa.

- Para voltar o filho do conde precisará de muitos homens armados e não será uma bruxa a fornecer-lhe.

Satisfeito o hipócrita começou a encher os copos dos companheiros com o vinho da adega do nobre enquanto mantinha o saque ao paço. Ébrio batia nos criados com uma verga.

- A partir de hoje governarei esta vila como me apetecer e prometo que quem me apoiar será bem recompensado.

Um novo amanhecer descobriu a vila de Porcel manchada pelo generoso sangue do conde e as trevas no céu pareciam traduzir o que ia na alma dos habitantes da povoação.

II

Vinte anos haviam decorrido desde o drama de Porcel. O ancião de longos cabelos brancos, que deitado aguardava serenamente a morte, narrava os acontecimentos a um jovem robusto que de lágrimas nos olhos o escutava com atenção.

- O teu pai morreu e o destino quis que tu viesses para minha casa. Bendita a hora em que te acolhi e à tua benfeitora.

As mãos gélidas do decano apertavam as do rapaz, sendo a cena atentamente observada por uma mulher de olhos lacrimejantes e longos cabelos pretos que contrastavam com o xaile branco e reluzente caído sobre os ombros.

- Hoje a minha alma partirá para junto do Senhor, porém deixo-te uma herança preciosa, não em riqueza, mas sim em saber. Tu és o filho que nunca tive, amo-te como se fosses meu descendente.

As paredes húmidas do quarto brilhavam à luz de uma vela de cera acesa sobre o móvel, desvendando sombras que emprestavam figuras irreais à cena. O som das palavras esvaziava-se e o homem continuou ignorando os soluços do moço.

- Nunca desprezes os teus conhecimentos de medicina aprendidos ao longo dos anos comigo e os segredos de feitiçaria ensinados por Molina. Eles fazem de ti um homem temível e poderoso.

A voz do velho médico do rei enfraquecia à medida que falava com o jovem, mas as mãos continuavam a apertar fortemente as do mancebo.

- Promete-me nunca agarrares uma arma contra o Bem.

Com a cabeça do ancião no colo, Thiago sofria ao ver aquele que ele tanto amava morrer, exalando um último suspiro, e apenas os braços caridosos de Molina conseguiram retirá-lo do quarto para uma pequena sala bem mais alegre.

- Meu filho, vivestes com saltimbancos, que não eram da tua estirpe, porém ensinaram-te os seus segredos até ao momento de vires para esta casa aonde completas-te a tua educação. Chegou o dia de eu regressar, de voltar disfarçada à aldeia aonde nasci, não o tendo feito antes porque não queria que o nosso bem-fazente morresse sem ninguém à cabeceira. Apesar de a minha vida correr perigo em Porcel, foi nesse lugar que me abençoou pela primeira vez a luz do dia.

Dirigindo-se para uma janela Thiago olhou para a rua ouvindo com atenção a velha feiticeira.

- O nosso benfeitor deixou-nos uma pequena herança, ficarei apenas com uma pequena parte para comprar um casebre, o resto será para ti. Conheço-te bem, sei que em breve partirás também daqui.

- Sim, sempre desejei viajar, percorrer o mundo, cruzar oceanos, conhecer o local aonde o Sol nasce, beijar a terra que lhe serve de leito.

- O teu sangue arde como o do conde.

- Esse título pertence-me.

Silenciosamente a mulher retirou-se deixando o jovem observando o povo anónimo na ruela suja. Marinheiros carregavam barris, casais passavam enlevados e uma vendedora gritava para um rapaz que corria desenfreado para não ser apanhado por uma moça bonita.

De súbito a donzela escorregou e dois homens corpulentos que saiam de uma taberna troçaram da jovem, que sem cerimónias, lançou uma pedra da calçada certeira à cabeça do rufia provocando-lhe pronta reacção.

Sem possibilidades de fuga, apenas a rápida intervenção de Thiago chamando a atenção do indivíduo evitou que ele se dirigisse para a adolescente.

Saltando pela janela, o jovem enfrentou de mãos vazias os dois ébrios armados de punhais perante um pequeno aglomerado de passan-tes aterrados. Uma barreira de fogo serviu de muralha aos intentos ameaçadores dos canalhas que perante tão estranho fenómeno fugiram apavorados.

Sem de início compreender o que se passava Thiago sentiu um rubor quando a moça o beijou na face. Ao longe, na entrada da viela ainda viu Molina afastar-se e desaparecer no meio da multidão. Com um sorriso o jovem inquiriu.

- Quer que a leve a casa?

- Se desejar conhecer o meu irmão e jantar connosco. Ele parte amanhã para Itália e é bom ter amigos corajosos quando se vive metade da vida sozinha.

De braço dado atravessaram velhas ruelas pejadas de aventureiros e mercadores até chegarem a uma casinha simples e acolhedora. Um rosto enegrecido pelo Sol acolheu-os e o sorriso franco do irmão de Ângela imediatamente cativou Thiago.

A refeição decorreu sem incidentes e alegre, como a atmosfera da noite apresentava-se cálida e convidativa, acabaram por se sentar num pequeno pátio a conversar.

- Amanhã parto para Itália. Deseja acompanhar-me? O capitão procura marinheiros valentes e ousados que se saibam bater caso os muçulmanos nos ataquem.

- Gostaria de o acompanhar, mas não gosto da carreira de armas.

As feições do navegante traíram espanto ao ouvir a revelação do hóspede.

- Como defendeu a minha irmã?

- Imprudentemente fiz frente a dois brigões não levando armas.

Confuso, Rodolfo deixou Thiago continuar a explicação enquanto afastava um mosquito que lhe rondava um braço.

- Salvou-me uma feiticeira que interpôs entre nós e os malfeitores uma barreira de fogo.

Soltando uma gargalhada o homem fixou a irmã, contudo ao vê-la com as faces sérias, aquiescendo com a cabeça deixou de rir e perguntou.

- Sabe magia?

- Um pouco, porém raramente utilizo os meus poderes.

- Qual a sua profissão?

- Auxiliava o médico do rei.

Um assobio de assombro saiu dos lábios do interlocutor.

- Conhece a corte?

- Fui poucas vezes ao palácio real.

- Amanhã apresentá-lo-ei ao capitão e talvez venha comigo para Itália. Nunca se sabe quando precisaremos de um amigo de bruxas no barco.

Soltando uma risada Rodolfo, o irmão de Ângela, regressou a casa deixando os dois jovens enamorados sozinhos no pátio.

- Um dia regressarei para te levar para sempre daqui.

- Aguardarei por ti.

Um longo beijo banhado pelo luar uniu os dois namorados, os lábios juntavam-se selando-se um compromisso indissolúvel. Os dois amantes nem ouviam os acordes de uma guitarra que saiam de uma velha casa de pasto, onde dedos habilidosos soltavam, calcando nas cordas.

III

O dia rompera claro e o capitão percorria com a vista o horizonte servindo-se da mão direita como pala.

- Não me agrada a calmaria!

Um marinheiro tisnado pelo Sol respondeu ao superior soltando um grunhido e apontou para um minúsculo ponto negro.

- Um barco. Prepara os homens e dá mais velocidade.

Sem replicar, o mulato prontificou-se a cumprir as ordens soltando todas as velas da embarcação. Passados alguns instantes a tripulação reunia-se a contemplar o ponto negro que gradualmente aumentava.

Uma análise breve ao astrolábio linear bastou a Rodolfo para se inteirar das horas.

- São sete e meia. Parece-me um navio de grande tonelagem. Agarra as armas e luta como um leão se o barco pertencer aos muçulmanos.

Thiago sentiu o sangue percorrer-lhe as faces. Nunca entrara em nenhuma batalha naval e sabia da sorte que o esperava se caísse em mãos dos sarracenos.

O grito do capitão para os artilheiros confirmou os seus piores receios. Uma aparente desordem instalou-se no convés e os soldados arrastavam as armas de maior calibre.

- Piratas.

O aventureiro apertou com a mão o punho da espada sentindo com este gesto um pouco de falsa segurança. A azáfama da tripulação intensificou-se rolando os barris de pólvora para junto dos canhões que atordoavam os ares.

Um cheiro a pólvora espalhou-se no ar e pequenas gotas de chuva salpicavam os corpos suavizando os efeitos do calor mediterrânico. O barco cristão carregado de mercadorias era presa fácil, ficando rapidamente ao alcance dos discípulos de Alá, que como demónios abordaram a embarcação espalhando-se numa larga frente e a peleja ganhou novo vigor. O comandante gritava desesperado enquanto lutava corpo a corpo com um corsário.

- Não os deixem saltar.

Desesperados os cristãos faziam esforços sobre-humanos batendo-se valentemente para conter aquela avalanche humana, contudo pouco habituados a combater sucumbiam ao número do adversário. Lado a lado, Thiago e Rodolfo batiam-se com ardor, porém esgotados acabaram por cair nas mãos dos inimigos que os prenderam e reuniram aos demais companheiros.

Depois de saquearem as mercadorias os seguidores do profeta afundaram o navio seguindo rumo a Argel, cidade costeira no norte de África.

Acorrentados os prisioneiros pareciam um rebanho de ovelhas, acossados por uma alcateia de lobos e os seus olhos revelavam a apreensão que os tomara. O irmão de Ângela lamentava a desdita e com um sorriso triste relatou os próximos passos dos inimigos.

- Quando chegarmos a Argel seremos brindados com uma argola na orelha que é o símbolo dos escravos.

- Possivelmente não nos separam.

- Iremos ser vendidos com abexins, arménios e outros cristãos.

- Não sabemos o nosso futuro.

- Com sorte vender-nos-ão para o trabalho de campo. Lamento agora a minha ideia de te convidar.

Uma chicotada obrigou-os a calarem-se, um colosso negro apresentou-lhes um punho ameaçador acompanhando o gesto com uma torrente de palavras estranhas.

Balançando pela acção das ondas o barco deslizava para sul esvaziando-se as esperanças de salvação, até que uma linha surgiu no horizonte e uivos de alegria chegaram aos ouvidos dos melancólicos cativos.

- Amanhã seremos negociados no mercado como escravos.

IV

Desde muito cedo que Argel despertara para o bulício habitual com mercadores transportando-se em burros generosamente ajaezados a cruzarem-se com carregadores esmagados por caixotes nas estreitas ruas da cidade muçulmana. Nos bazares os clientes berravam junto às dakkas com os lojistas, e não raro os vigilantes acompanhados por cães intervinham nas contendas para findar as discussões.

Escassas dezenas de metros adiante, o mercado enchera-se de uma multidão ansiosa por observar os produtos do dia como camelos, gatos, escravos e flores para decoração.

Valendo-se da voz grossa o apregoador berrava as virtudes de dez escravos sem defeitos que vendia a um preço razoável porque não poderia estar naquele local no dia seguinte. Uma mulher núbia argumentava que o elevado preço pedido era incomportável para o seu senhor e se ele não baixasse o custo dos servos em doze moedas regressaria sem a mercadoria. O diálogo manteve-se aceso por longos minutos, contudo pouco a pouco a conversa amenizou-se findando o negócio proveitoso para ambas as partes.

Munidos de chicotes e armados com sabres os homens que acompanhavam a negra Fátima reuniram os escravos e colocaram-lhes algemas, retirando-lhes as pesadas correntes que prendiam os pés dos desafortunados.

Uma penosa marcha principiava para Thiago, Rodolfo e os companheiros, presos em fila indiana por uma longa corda no pescoço, contudo todos se alegraram de não os separem e a saída da metrópole pareceu-lhes uma bênção para o espírito.

Durante três intermináveis semanas o grupo percorreu a areia do deserto, a fadiga não lhes quebrava as forças devido aos cuidados dos guardas a que não era estranho o aparecimento duma especial afeição entre Fátima e Rodolfo.

Ao fim de vinte dias de marcha surgiu um pequeno grupo de casas brancas dominadas por uma maior que ladeava um pátio contendo um enorme tanque. Encaminharam-se para uma porta habilmente decorada de pregos e ferros, entrando para o pátio meio ocupado por uma cisterna de água cristalina, tendo ao lado um pequeno lago aonde nadavam calmamente peixinhos vermelhos ornamentando o local.

Depois de saciarem a sede entraram na casa dominante e atravessaram duas divisões antes de pararem junto a uma porta, aonde os esperava um criado ricamente trajado que os convidou a entrar. Sentado num pouf castanho de pele de camelo, aguardava-os um velho de olhos negros, vestimenta alva, turbante na cabeça e longas barbas brancas encaracoladas que cumprimentou Fátima juntando as mãos analisando cuidadosamente o grupo recém-chegado com ar aprovador.

- Realizas sempre boas compras, eles nem parecem terem feito uma viagem longa.

A serva, que se mantivera desde que entrara junto a uma das paredes da divisão, respondeu respeitosamente curvando ligeiramente a cabeça.

- Obrigado meu amo pelas generosas palavras.

- Seis escravos cristãos trabalharão no cultivo apascentando os camelos e cabras, um servirá o meu filho, e os outros três ajudar-te-ão nas lides domésticas.

Um jovem entrou na sala sem se anunciar e com uma vénia cumprimentou o dono da casa. O turbante ricamente decorado e as maneiras resolutas revelavam ascendência senhorial.

- Pai, como sabes, eu preciso de um criado e como sei que compraram dez escravos…

- Escolhe aquele que pretendes.

Decidido e sem pestanejar o moço apontou para Rodolfo. Acto contínuo a núbia lançou-se aos pés do jovem com lágrimas a escorrerem-lhe pelos olhos.

- Meu senhor, esse não.

Surpreendido Muhammad Haldun, o filho do dono da casa, hesitou na acção a empreender, mas anuiu ao pedido da servente.

- Não sei a razão porque agis assim.

A bela negra não retirava os olhos do chão aos soluços enquanto os restantes se mantinham em silêncio. Por fim o mancebo agarrou numa das mãos da moça e levantou-a com um sorriso.

- Não prefiro nenhum em especial e se Fátima deseja este cativo para a acompanhar não irei contra o seu pedido expresso.

Amparado por um criado, o ancião levantou-se encaminhando-se para o filho vestido com uma camisa e calções de pano branco bordado com fio de ouro, colocando uma das mãos sobre o ombro.

- Belo gesto Muhammad Haldun, digno da tua estirpe.

- Fátima tornou-se para mim como uma irmã, não irei fazer experiências médicas num escravo que lhe roubou o coração.

Envergonhada por desvendar a paixão aos seus senhores, Fátima soluçava baixinho e inconscientemente abraçou Muhammad Haldun quando este a beijou suavemente na testa.

Inspeccionando de novo o grupo de escravos o velho apontou para Thiago exclamando com autoridade.

- Retirem as algemas a este escravo.

Os guardas prontamente obedeceram à ordem, e libertos os pulsos, Thiago friccionou-os para restabelecer a circulação.

- Armem-no com um sabre. Ele acompanhará o meu filho.

Batendo palmas voltou para o local aonde se sentara anteriormente enquanto todos se retiravam da sala.

V

Escoltado por Thiago e dois guardas, Muhammad Haldun saiu da casa paterna dirigindo-se para as montanhas a caminho da sua casa. Os cavalos rapidamente devoravam quilómetros de areia subindo ravinas íngremes, pequenos animais receosos afastavam-se dos cavaleiros e raros arbustos quebravam a monotonia da paisagem.

Durante dois dias o pequeno grupo caminhou sem contratempos e ao findar o segundo dia algo despertou as atenções de um dos guardas.

- Senhor, pareceu-me ver um dromedário.

Nesse momento uma flecha acertou no ombro do homem e, acto contínuo, todos se abrigaram numa cova fruto da erosão do vento do deserto. Aos gritos duas dezenas de berberes cercavam os quatro homens que, de imediato, se aperceberam da sua situação dramática. Muhammad Haldun deitado na areia colocou o turbante de forma a lhe tapar o nariz e a boca desvendando apenas os olhos, apontou o fuzil para os atacantes e exclamou.

- Não nos resta outra alternativa a não ser combater o melhor que soubermos.

Resolvidos a venderem cara a vida, viram com horror os assaltantes apontarem para ele um pequeno canhão.

- Senhor, se nos rendermos talvez nos poupem as vidas e depois os possamos iludir.

Muhammad Haldun não respondeu a Thiago, contudo saiu do abrigo de braços levantados. Passados poucos minutos os bandidos aprisionavam-nos transportando os cativos para uma imensa gruta, iluminada por dezenas de tochas, que lhes servia de esconderijo.

Um árabe de feições de águia, sentado num pequeno tapete, tendo um colosso negro de pé por atrás, recebeu-os e os gestos decididos indicavam ser o chefe do bando. Dezenas de comparsas rodeavam o grupo, deitando por vezes impropérios aos desafortunados.

- Sou Ibn Maqdisi, a partir deste momento as vossas vidas pertencem-me.

- Clamo-me Muhammad Haldun e o meu pai pode dar-te um valioso resgate se me libertares.

O foragido sorriu, com um gesto da cabeça negou a proposta enquanto, que com a ponta de um punhal ia fazendo arabescos do chão arenoso da caverna.

- Prefiro que entres para o meu grupo, Muhammad Haldun, se me obedeceres serás rico, se não, morrerás.

- Escolho a morte.

O gigante negro que até ao momento se mantivera imóvel por trás do cabecilha dirigiu-se ameaçador para o cativo, contudo o chefe deteve-o.

- Não lhe faças mal.

Retirando o punhal do chão, Ibn Maqdisi passou o dedo pela lâmina da arma e de seguida cravou-a no chão do antro com furor. Thiago avançou para ele e perante a admiração dos fora da lei falou-lhe árabe.

- Ibn Maqdisi, a tua palavra como a de todos os berberes, é sagrada. Lanço-te um desafio.

O mouro elevou o olhar para o interlocutor e as feições duras amedrontavam aqueles que as contemplavam.

- Pareces cristão, como sabes a minha língua?

- Meu pai era doutor, tinha um criado sarraceno que o ajudou a traduzir tratados e livros médicos árabes. A medicina muçulmana está tão avançada como a cristã.

- Muito bem, qual a tua proposta?

- Desejo um duelo entre mim e um dos teus homens escolhido como o mais valente. Caso eu ganhe deixas-nos seguir em paz, se pelo contrário o teu escolhido vencer, pertencerei ao teu grupo.

O bandoleiro soltou uma gargalhada que ecoou na gruta, e exclamações a zombar o desafio nasciam por todo o lado. A multidão gritava o seu apoio à ideia e Ibn Maqdisi acabou por fazer um pequeno gesto com a cabeça dando o seu acordo.

- Não tendes hipótese. Se Omar, o negro que está atrás de mim ganhar o duelo, juntar-se-ão ao meu bando, se ele perder poderão sair em liberdade.

Muhammad Haldun fitava Thiago atónito, mas concordou com o desafio. De imediato foi traçada uma linha na terra em forma de um círculo que definia a área aonde os combatentes iriam pelejar. O foragido definiu as regras da refrega.

- Os dois combaterão dentro do espaço da circunferência desenhada na terra, o primeiro que lançar o adversário para fora dela será o vencedor. Que arma escolhes para o combate cristão?

- O teu punhal.

- És audaz, serás um bom elemento do meu grupo, espero que Omar não te fira muito para poderes depois lutar com fulgor ao meu lado.

- Não serei derrotado pois a mão de Deus está do nosso lado.

O sarraceno não respondeu lançando o punhal para dentro do círculo, mas Thiago não o apanhou, deixando-se permanecer imóvel de pé dentro da circunferência.

Aos urros o colosso negro entrou no terreno de combate sendo saudado pela multidão aos gritos. Sem entender porque Thiago não agarrava o punhal foi avançando lentamente para o adversário com a cimitarra descaída tentando adivinhar o que o oponente iria fazer.

Passados instantes o espanto espalhava-se no rosto dos circundantes, o punhal como munido por uma mão invisível subia e rodava no ar sem ninguém a segurá-lo. Diversas expressões de assombro assomavam no meio da turba e o temor tomava conta dos bandoleiros.

- Alá protege-os!

- Ele é mágico.

- Será um novo profeta?

O punhal subira até ao tecto da gruta, e depois de gerar a admiração geral, voltava a descer. Trémulo de terror Omar acabou por sair do círculo e deitou-se por terra colocando a testa no pavimento, enquanto os elementos do bando assustados voltavam-se para Ibn Maqdisi, esperando a reacção do chefe, que num acesso de fúria atirava terra com a sandália para cima das costas do petrificado negro. Uma barreira de fogo obrigou-o a recuar, fazendo-o cair de costas no chão, enquanto alguns elementos da populaça começavam a prostrar-se por terra.

Thiago agarrou no punhal e dirigiu-se para o salteador que ainda deitado colocou o braço a tapar os olhos pensando que o cristão o iria matar, porém o jovem puxou-o para cima ajudando-o a levantar-se e entregou-lhe de seguida a arma. Mais sereno, Ibn Maqdisi voltou a sentar-se no tapete aonde estivera antes do combate e inquiriu.

- Quem és tu? És um novo profeta, iremos seguir-te para onde nos mandares.

- Não sou profeta e quero que deixes a vida de salteador.

- Roubamos para sobreviver, a maioria do meu bando são pessoas que viviam pacificamente, mas os elevados impostos fizeram com que lhes confiscassem as casas e campos, deixando-os na miséria. Somos uma turba imensa, apesar de mal armada.

- O dey de Argel carrega-vos com impostos?

- Não, o cobrador de impostos dele, que tem um exército particular e maltrata as gentes que não lhe pagam as pesadas taxas que ele solicita.

- Agora desejo que nos libertes.

- Assim farei, dar-vos-ei um salvo-conduto, nunca hesites em procurar-me quando precisares de mim, és um homem justo e bom, lamento não quereres ficar connosco.

Thiago e os companheiros montaram nos cavalos, que entretanto lhes entregaram, e saíram do local a galope, embrenhando-se novamente no deserto até chegarem já de noite a um pequeno oásis aonde deixaram as montadas a beber num pequeno lago.

Depois acenderam uma fogueira com gravetos e envolveram-se em mantas para dormirem, todavia Muhammad Holdun não tirava os olhos do português.

- Thiago, irei falar com o meu pai para que te liberte, devo-te a vida.

Sentado sobre uma pedra a olhar para o fogo e sentindo a frescura da noite o cristão demorou alguns segundos a responder.

- Nada me deves e ainda não é hora de deixar de ser cativo. Esse momento chegará, a minha liberdade será no mesmo momento da dos meus companheiros que vieram comigo no barco.

O muçulmano calou-se. Aconchegando a manta contra o corpo voltou-se para adormecer. A chama da fogueira transformou-se em cinzas e passado um tempo todos dormiam ao relento sob um céu estrelado e uma Lua reluzente.

VI.

Durante cinco meses Thiago serviu fielmente na casa de Muhammad Haldun, e pouco a pouco a amizade enraizou-se. Apesar da estima do amigo, o português passava longas horas em meditação, cheio de saudades, os momentos passados com Ângela faziam-no suspirar e o coração enchia-se de nostalgia.

Uma tarde o maometano chamou o companheiro e apresentou-lhe uma lista de bens necessários ao quotidiano.

- Parte amanhã para Argel, tenta arranjar-me estes produtos no mercado, e cuidado com os ladrões que abundam nos bazares.

Thiago recebeu a lista e guardou-a entalando o papel no shall, um cinto de pano apertado na cintura.

- Serás acompanhado por dois homens e que a paz de Alá te guarde.

- Regressarei o mais cedo possível.

Muhammad Haldun bateu palmas despedindo o companheiro ficando a observar Thiago vestido como um autêntico mouro.

No dia seguinte bem cedo, os viajantes partiram e após uma jornada calma avistaram o casario da cidade desenhando-se no horizonte sem nuvens.

Acotovelando-se com o povo, entraram numa ruela comprida aonde as lojas mais ricas estavam dotadas de pequenos alpendres. Num ruído ensurdecedor, aqui e além os comerciantes sentados em esteiras com as pernas dobradas conversavam e negociavam indiferentes ao calor tórrido.

Ferreiros, trabalhando ao ar livre em forjas improvisadas, faziam saltar milhares de faíscas tomando o metal a forma de inúmeros objectos como alfaias para a agricultura, ornamentações e utensílios para as habitações. A multidão começou a afastar-se quando som de guizos e de ferraduras a baterem no chão de pedra começou a aproximar-se. Curiosos, os três homens, acercaram-se para verem passar o personagem que de forma tão pouco discreta anunciava a sua passagem.

Inesperadamente uma negra ao tentar passar a correr em frente da comitiva tropeçou numa pedra e estatelou-se na calçada sendo prontamente socorrida por um servo que apesar dos esforços desesperados não a conseguiu erguer de imediato. Dois soldados que iam em frente do séquito aproximaram-se, um deles começou a chicotear o par provocando a reacção do escravo, sendo prontamente neutralizado pelos restantes guardas e apenas a voz de um árabe montando um belo cavalo branco, ricamente ajaezado, evitou correr sangue na calçada. Entretanto a negra Fátima erguia-se e lamentava a situação crítica de Rodolfo.

O dey de Argel, chefe supremo da cidade, que comandava o grupo, bem-disposto dirigiu-se para ela sob o olhar atento da multidão.

- Posso mandar matar o teu companheiro pois ousou defrontar os meus guardas.

Pálida a moça tremia ao ver os janizaros, puxarem os cabelos de Rodolfo provocando-lhe queixumes de dor.

- Eu intercedo no julgamento!

O dey de Argel voltou a cabeça colérico para ver quem ousava entrar no diálogo sem cerimónias, mas os olhos abriram-se de espanto ao ver uma galinha a falar e a encaminhar-se para ele. Estupefactos, os circundantes olhavam para aquela intrometida que parecia não notar a atenção de que era alvo.

- Por eu ser uma galinha não implica que eu não possa defender o rapaz.

Amedrontado o dirigente mouro observava espantado o animal, enquanto a populaça envolvente se chegava mais perto para ver o fenómeno resultando de seguida uma imensa confusão que os jovens aproveitaram para escapar do local.

Passados instantes penas da galinha voavam em todas as direcções e os “vigilantes” acompanhados por cães usavam bastões para conter a confusão.

Thiago e os acompanhantes correram atrás dos amigos e passado pouco tempo paravam para conversar. Fátima abraçou carinhosamente o cristão.

- A tua intervenção não podia ser mais oportuna, lamento perderes a galinha.

- Não te preocupes, compro outra.

- Nós viemos comprar alfaias a Argel e mantimentos. Por pouco matavam-nos.

- No entanto o destino juntou-nos uma vez mais. Cuidado com os maus encontros como o anterior.

- O pai de Muhammad adoeceu gravemente, avisa o filho quando regressares para ele ir junto do leito. O nosso amo libertou-nos, apenas quando ele falecer abandonaremos a casa.

Entretidos a conversar não viram algumas dezenas de janizaros, os turcos que constituem a guarda pessoal do dey, rodeá-los. Apanhados de surpresa sentiram uma sensação desagradável quando o chefe supremo de Argel, no alto do seu corcel branco e gracejando lhes perguntou.

- Continuamos o nosso julgamento? Agora desejam uma ovelha ou um asno como vosso defensor?

VII

As urbes costeiras do norte de África aliciam o estrangeiro sensibilizando-o para o ambiente que transparece, como se o visitante incauto se visse subitamente num dos contos das “Mil e uma noites”.

Os raios de Sol atravessam um céu sem nuvens e os telhados rasos das habitações apresentam uma brancura sem igual, que contrasta com o vermelho acastanhado da paisagem e o cinzento das sombras. O mar azul do Mediterrâneo fornece um colorido misterioso, as ondas alvas e frágeis banhando suavemente montículos dourados de areia, rivalizam em colorido com o branco das habitações.

Palmeiras e tamareiras esperneiam-se pelo infinito, e em qualquer mesquita um muezzin chama os crentes às orações do alto de um minarete, um bedéi conversa com um vendedor de kilims, belos tapetes bordados em paragens longínquas.

Os comerciantes interrompem por vezes as azáfamas habituais, voltados para Meca cumprindo o ofício da oração sentados nos calcanhares e baixando a cabeça tocando com ela no solo.

Sem oferecerem resistência os novos prisioneiros do dey seguiram para o palácio de Jenina, residência oficial do senhor de Argel, e enquanto Fátima e Rodolfo eram guardados numa cela especial, Thiago e os dois companheiros foram conduzidos a um subterrâneo imundo, com infiltrações de água, dividido em pequenas celas de grossas grades nas janelas.

A noite chegou e o silêncio envolveu a cidade, estrelas brilhantes no céu sem nuvens cintilavam, anunciando uma noite calma.

Um guarda segurando uma travessa com peixe seco, cebolas e pão, entrou na cela colocando o jantar sobre uma mesinha de madeira ruída pelo caruncho. De barbicha e cabeça rapada, aonde boiava um fez, o islamita vestia de negro e o bigode cortado no centro fazia lembrar os de um gato.

- A tua mulher ainda se encontra doente?

O chaveiro maometano esfregou os olhos, incrédulo parecia que as noites mal dormidas o faziam ter alucinações, o peixinho na travessa interrogava-o sobre a doença da esposa que o preocupava tanto. Acercou-se da mesa e duvidou se o cansaço não lhe estava a pregar partidas até que sentiu uma forte dor na nuca e caiu inconsciente no chão.

Thiago com a perna de um banco acertara em cheio na cabeça do muslim e acompanhado pelos outros prisioneiros escapuliu-se pelos corredores sem resistência.

O alarme soou tardiamente, quando o homem ainda quase inconsciente foi apresentado ao dey, o cristão percorria as ruelas populosas de Argel. Furioso por o acordarem a uma hora inoportuna o chefe dos muçulmanos da cidade inquiriu o trémulo guardião prostrado à sua frente.

- Como fugiu o cristão?

Acariciando ainda a nuca dorida pela pancada o guarda explicou as estranhas circunstâncias da fuga.

- Meu amo, eu ando preocupado em virtude da minha esposa ter adoecido a semana passada. Esta noite, ao entrar na cela com o jantar, o peixe na travessa perguntou-me como estava a saúde dela.

Os acompanhantes do dey como em coro começaram a rir-se, observando incrédulos o desgraçado, porém o comandante de Argel manteve-se sério, retirou algumas moedas de prata de uma bolsa e lançou-as para junto do vigia.

- Se apanhares os prisioneiros vivos recebes o dobro dessas moedas.

Despedindo todos os que se encontravam no salão, o dey voltou para o quarto não conseguindo adormecer, pois temia fazer mal a um mago tão poderoso e desejava a permanência dele em Argel. No dia seguinte iria pedir aos outros prisioneiros para lhe trazerem o cristão para uma missão melindrosa.

VIII

A morte do pai de Muhammad Haldun abalara muito o jovem islamita que com relutância acedera em acompanhar Thiago ao palácio do dey de Argel.

A recepção discreta dispensada aos dois amigos culminou com um pedido estranho do chefe muçulmano.

- Os meus espiões detectaram uma conspiração para me afastar do poder, e segundo tudo leva a crer, parece ser o angariador de impostos o responsável pela conjuração. Preciso da vossa ajuda.

- Porque não o prende?

- Sem ele tomar uma iniciativa será difícil. Ele goza do apoio de alguns dos corsários, enquanto não se opuser frontalmente receio que ao prende-lo acabe numa guerra civil.

Um barulho ensurdecedor chegou-lhes aos ouvidos, a porta da sala abriu-se, repentinamente o angariador de impostos à frente de um numeroso grupo de apaziguados irrompeu na sala. A pronta intervenção de um pequeno grupo de janizaros proporcionou a fuga dos três homens por uma porta secreta do palácio de Jenina, e passados alguns momentos cavalgavam para fora da cidade seguindo o dey.

Decorridas algumas horas, o desolado chefe supremo de Argel, seguido de Thiago e Muhammad Haldun chegava a uma fortaleza que se mantivera fiel ao muçulmano. Desmontando os corcéis entraram numa sala sobriamente mobilada, aonde nas duas varandas se podiam ver dois canhões voltados para o mar.

- Para reconquistar o trono preciso de dinheiro e homens. Deixei os meus bens em Argel, vai ser difícil reaver o trono sem a ajuda de mercenários pois aqui tenho poucos soldados fiéis.

- Meu senhor, todos te estimam.

- Os corsários são hábeis lutadores e com o angariador de impostos a chefiar os meus súbitos a cidade sofrerá muitas injustiças.

Uma ideia relampejou na mente de Thiago, perante surpresa geral, e sem dizer uma palavra saiu do forte a galope. Alguns dias se passaram, mas numa tarde o português regressou ao convívio dos amigos.

- Dey, um numeroso grupo de homens espera as tuas ordens para marchar sobre Argel.

O sarraceno saiu da sala para o exterior. Em frente da fortificação várias centenas de berberes vestidos de negro, com espingardas e cimitarras ameaçadoras acolheu-o aos gritos.

Ibn Maqdisi o foragido, saiu do grupo, desmontou o belo cavalo e dirigindo-se ao líder da cidade disse.

- Durante muitos anos pilhámos porque devido aos elevados impostos obrigaram-nos a abandonar as nossas terras e famílias.

O dey de Argel colocou a mão sobre o ombro do fora da lei e murmurou.

- Tardiamente observo as injustiças.

- Meu amo, uma só palavra tua e todo este imenso povo está disposto a morrer por ti. Hoje mesmo, se quiseres, poderei juntar milhares de camponeses e lavradores dispostos a combater o usurpador. O teu inimigo também é o nosso.

- Dentro de uma semana regressarei ao meu palácio. Que Alah vos ajude na tarefa de angariar mais combatentes e seja misericordioso convosco. A vossa lealdade será recompensada.

O Sol escondia-se no horizonte e os guerreiros dispersaram aos gritos pelas montanhas que ficaram iluminadas pela luz das tochas.

IX

Em Argel, os rebeldes festejavam ainda a subida ao poder do angariador de impostos, hidromel trazido clandestinamente do norte da Europa, corria pelas canecas dos corsários e ciganas agitavam-se dançando ao som de músicas frenéticas.

Foliões ouviam “mudahhik” contarem anedotas, grupelhos assistiam a lutas de galos treinados especialmente para estas alturas festivas, e em alguns becos jovens de olhos esbugalhados eram espectadores atentos de marionetas enquanto comiam guloseimas.

A praça principal estava engalanada com bandeiras, criados assavam cabras em brasas para insaciáveis apreciadores de carne. Os animais previamente sangrados por judeus, como manda a doutrina muçulmana, tostavam nos gigantescos espetos.

O angariador de impostos, rodeado de apaziguados, saíra do palácio de Janina e num largo contemplava os saltimbancos mandados vir expressamente do Cairo para a festa em honra da sua tomada de posse.

O ruído do aço das cimitarras soou num bazar próximo, como demónios, os berberes e alguns janizaros travavam uma sanguinária peleja com os corsários. Habituados a não terem de suportar longos combates em terra, os apoiantes do antigo servidor do dey em breve tentavam se refugiar nos barcos, contudo os rais, ou chefes supremos dos navios, impediam a sua entrada e acabavam por ser aprisionados.

Regressado ao palácio, já controlando a situação, estando o usurpador com correntes, o chefe dos crentes reconduzido ao poder chamou os amigos disposto a recompensar todo o apoio prestado durante a odisseia.

- Ibn Maqdisi percorrerá os campos, analisará a situação dos camponeses e devolverá as terras àqueles que tiveram de sair delas por não terem podido pagar os pesados impostos.

Satisfeito com a nova tarefa o antigo foragido agradeceu, ofereceu uma indumentária berbere a Thiago, saindo depois do salão acompanhado de numerosa comitiva. O dey chamou em seguida Muhammad Haldun e segurando num anel ofereceu-o ao vassalo perante ruidosa aclamação.

- Serás o novo angariador de impostos, quem me teme, temer-te-á, e quem me respeita, respeitar-te-á.

Comovido abraçou o amigo voltando-se finalmente para os dois cristãos.

- Lamento a vossa partida, contudo sei do vosso desejo de regressarem ao reino de Portugal. Mandei tripular um barco e representarão a minha nação junto da vossa pátria.

- Não seremos atacados pelos corsários?

- Não. Os corsários não são piratas, pilham sob o pavilhão de Argel os barcos dos nossos inimigos. Os rais, tomaram o meu partido e são de inteira confiança.

Despedindo todos, o dey ofereceu a Thiago e Rodolfo inúmeras preciosidades como prova de gratidão, colocou seis janizaros como guarda pessoal deles, mas para os dois a maior jóia esperava-os em Lisboa. Nessa noite não dormiram e Thiago lembrava-se ainda do beijo trocado à porta da casa de Ângela.

X

El rey D. Afonso V, foi um dos monarcas portugueses com maior reinado na História de Portugal. Teve o cognome de “O Africano” pelas conquistas que fez no norte de África, nomeadamente as tomadas dos fortes e das cidades de Alcácer Ceguer, Anafé, Arzila, Tanger e Larache.

Foi um rei batalhador tendo inclusive, no final do seu reinado, Portugal sido invadido pelos monarcas espanhóis, sendo derrotado por aqueles que mais tarde se chamariam de “Os Reis Católicos”, na batalha de Toro.

Quando recebeu Thiago, tinha sido batido pelos castelhanos e aragoneses há pouco tempo, por isso ansiava por concórdia e qualquer tratado de paz era sempre bem-vindo.

A viagem de Argel para Lisboa tinha sido rápida, com ventos favoráveis, contudo os barcos na altura tinham de estar de quarentena no porto de desembarque, em virtude da peste. Naqueles séculos esta doença era um enorme flagelo, não havia remédios eficazes, a forma mais comum de a evitar era deixarem preventivamente os marinheiros nos barcos, durante um certo período de tempo para terem a certeza de que não eram portadores da enfermidade.

O monarca era um indivíduo corpulento, de longas barbas e depressivo, o que veio a originar poucos anos depois a entrega do trono, ainda antes da sua morte, ao seu herdeiro e futuro rei Dom João II.

Sua majestade honrou os visitantes recebendo-os no salão real, privilégio concedido aos raros diplomatas das nações poderosas que lhe apresentavam as credenciais. Thiago, entrou no aposento vestido com o traje berbere que Ibn Maqdisi lhe oferecera, com a pele queimada pelo Sol tórrido do deserto estava irreconhecível e dois janizaros ladeavam-no fazendo-lhe a guarda.

- Sois o novo embaixador de Argel?

- Sim, Alteza Real.

O rei estava de costas para os recém-chegados quando tinham entrado no compartimento, olhando uma pintura exposta na parede, contudo ao ouvir falar correctamente português voltou-se curioso e admirou aquele forasteiro altivo que com garbo o encarava.

- Ouvi dizer que sois um poderoso feiticeiro, serias queimado vivo se fossem outras as circunstâncias, por feitiçaria, mas tratando-se de um diplomata de uma nação amiga, terás a minha protecção.

- Obrigado meu rei.

- Que contrapartidas pretendes para assinares o tratado? Sei que és livre de colocares todas as alíneas no acordo que pretendes, o teu dey tem enorme confiança em ti.

- Não haverá cláusulas, apenas o respeito e a amizade entre as duas nações.

- Sois hábil a negociar. A minha vida aproxima-se do fim, já me esforço a andar, quero que o tratado seja célere na assinatura.

O rei sentou-se no trono e encostou-se para trás olhando com interesse para os três homens à sua frente. Thiago retorquiu sorrindo.

- Vossa majestade devia ter feito o que lhe disse o médico que faleceu, andar menos na montada e mais a pé.

O monarca pareceu ser atingido por um raio, imediatamente os guardas secundaram-no, porém ele mandou-os afastarem com um sinal.

- Além de feiticeiro és vidente. Gostaria que vivesses aqui no paço, serias ricamente recompensado.

- Obrigado meu rei, mas já tenho uma pequena habitação aonde pretendo viver. Não sou adivinho, várias vezes ouvi essa recomendação ao meu pai quando ele aqui vinha.

O soberano levantou-se do trono e devagar caminhou para o novo embaixador de Argel tentando-o reconhecer. Depois com um sorriso e num sussurro interrogou.

- Thiago?

- Sim, meu rei.

Dom Afonso V correu então a abraçar o jovem efusivamente, depois puxou-o para junto do trono, indo pessoalmente buscar uma cadeira para o moço se sentar ao seu lado.

- Lamento a morte do teu pai. Mandei indagar aonde te encontravas contudo tinhas desaparecido misteriosamente.

- Foram muitas as aventuras depois disso.

- Quero saber todas. É uma ordem real. Serás tu a fazer o tratado, conheço bem a tua honradez, apenas colocarei o selo real.

- Obrigado, majestade.

- Quero recompensar-te. Esse tratado para mim é muito importante.

- Vou aceitar a vossa oferta, pretendo prender um bandido que se apossou do poder em Porcel depois de assassinar barbaramente várias pessoas.

- Vais ficar com uma guarda que te irá acompanhar para essa missão, dar-te-ei um salvo-conduto, nesse documento também ordeno para que sejam cumpridos todos os teus desejos. Quem levantar a espada contra ti será o mesmo que ousar defrontar-me.

Dom Afonso V ainda escutou atento algumas das façanhas dos aventureiros e continuou a insistir com eles para residirem com ele, mas as saudades do lar e de Ângela, superiorizaram-se à honra de sua Alteza Real.

XI

A velha casinha de Ângela mantinha a singeleza de outrora e a rapariga recebeu os jovens de modo comovente. As faces radiantes mantinham a frescura do passado e o corpo gracioso não sofrera a erosão do tempo, continuando com a vivacidade de um gamo.

- Ângela, amanhã partirei para Porcel na minha última missão.

Rodolfo pousou a mão no ombro do amigo e exclamou na sua voz calma e jovial.

- Encontras a felicidade nesta casa. Sabes se Molina, a tua mãe adoptiva, ainda vive?

- Não sei. Dom Maximiano ocupa um lugar usurpado com derramamento de sangue inocente.

- Acalmai o vosso ódio, não vos posso reter. Fátima e Ângela manter-se-ão nesta casa até ao vosso regresso.

- Partirei apenas acompanhado pelos meus janizaros e pela custódia real.

Todas as tentativas de Rodolfo para que Thiago permanecesse resultaram vãs e os meios de persuasão das mulheres ficaram sem resposta por parte do filho do conde de Porcel.

No dia seguinte o jovem partiu para a aldeia natal com o propósito de reaver o património da família pilhado por Dom Maximiano e castigar o culpado pelo acto. A jornada decorreu sem problemas e a bela paisagem de Porcel irreconhecível para o jovem deslumbrou-o pela subtileza do colorido.

Sem temor por andar vestido como berbere, deixou os guardas numa estalagem e resolveu vaguear por aqueles pinhais sozinho deixando a montada escolher o itinerário. Uma velha camponesa de roupas negras como carvão, andrajosa e de pele marcada pelo tempo interrompeu os pensamentos do jovem.

- Moço, compras um coelho acabado de abater?

Um sobressalto invadiu-o quando reconheceu Molina, quebrada pela idade estendendo o coelho pardo na sua direcção. As faces magras da mulher reflectiam a fome por que passara nos últimos anos, e os braços frágeis, certamente sobrecarregados pelos trabalhos pesados do campo, haviam escurecido com o Sol e com a chuva.

- Ofereço-te seis moedas de prata para me deixares pernoitar na tua casa.

- Viajante, és meu hóspede, não quero o vosso dinheiro para dormires no meu casebre.

- Insisto em pagar as seis moedas.

Sem reconhecer o rapaz, Molina aceitou guardar o dinheiro num bolso, agarrou no pau aonde se apoiava começando a dirigir-se para o lar seguida do cavaleiro que entretanto desmontara levando o cavalo pelas rédeas.

A tarde caia, um pequeno cão recebeu-os abanando a cauda satisfeito, as ovelhas remexiam-se e uma cabra esforçava-se por comer uma erva renitente em sair da terra.

O casebre, humilde e acolhedor, possuía como mobiliário uma cama com cobertores várias vezes remendados, uma mesa de madeira e duas cadeiras torturadas pelo caruncho. Uma lareira acesa servia de lugar para aquecer uma panela enegrecida pelos toros e gravetos queimados.

- Retira o turbante e aquece-te ao lume. Apesar de seres infiel, para mim continuas uma criatura de Cristo, quero o teu bem-estar na minha casa.

Thiago obedeceu e puxou de um pequeno banco de pinho com três pernas para junto do fogo da lareira.

- Em cima da mesa está uma boa aguardente e copos, bebe enquanto preparo o coelho para o nosso jantar.

- Gosto do coelho com batatas.

A velhota informou com mágoa apontando ao mesmo tempo para um saco.

- As batatas deste saco pertencem ao senhor de Porcel. Ele aguarda um nobre de Lisboa, um amigo do rei e lançou novos impostos em géneros para o receber ricamente.

- Não imaginas a alegria que dom Maximiano vai ter ao receber o tal amigo de sua alteza real.

Depois de gracejar, o moço levantou-se do assento, agarrou no saco, retirou uma dúzia de batatas e colocou-as no turbante dando-as de seguida à idosa.

- Não temas, ele louvará a tua gentileza para comigo.

Receosa, Molina aceitou as batatas deitando-as na panela do jantar aonde o coelho e os legumes já ferviam. Um cheiro agradável alastrou na sala recompensando a anfitriã pelo esmero com que se esforçava na confecção da refeição.

O barulho súbito de galope sobressaltou-a, a porta abriu-se violentamente com um pontapé dando passagem a dois esbirros de Dom Maximiano.

Um acolhimento inesperado sob a forma de uma vassoura voando sozinha recebeu-os, e os homens fugiram espantados perante o terror de Molina. A mulher, à janela, observava os guardas aterrorizados fugirem a correr enquanto Thiago continuava calmamente a beber o cálice de aguardente.

- Senhor, dom Maximiano virá furioso quando lhe relatarem o que aconteceu e a forma como acolhemos os seus homens. Vós fizestes bruxaria.

- Não gosto de ser interrompido enquanto como e nada receeis boa mulher. Espero que ele regresse tão depressa como fugiram os seus acólitos.

A noite alastrou e Thiago recordou os tempos passados na companhia da velha feiticeira e do médico do rei. Os acontecimentos passavam-se incrivelmente rápidos e a hora do castigo soara.

XII

O som das ferraduras de cavalos a baterem no pavimento acordou os dois, e fortes batidas na porta quebraram a monotonia do alvorecer. Um homem robusto de longa barba branca assomou primeiro à janela e depois dando passos largos entrou sem cerimónias no casebre.

- Bruxa, serás queimada viva pelo teu acto.

Dois guardas avançaram prendendo Molina cumprindo as ordens de dom Maximiano.

- Soltem a mulher.

Thiago enfrentou o assassino e a voz poderosa impressionou o nobre pela altivez do tom.

- Quem sois vós para contrariares as minhas ordens?

- O enviado do rei.

Os esbirros recuaram ao verem o selo real num documento nas mãos do jovem soltando de imediato Molina que se refugiou prudentemente a um canto.

- Esta mulher negou-se a pagar o contributo e fez um acto de bruxaria.

- Não, quem correu com os teus soldados fui eu, queres ser tu a acusar-me de um acto de feitiçaria? Ela alojou um enviado do rei, os teus apaziguados invadiram a casa durante o meu descanso.

Ninguém ousara enfrentar o nobre e este, pela primeira vez, sentiu medo ao ver o intrépido representante do monarca que ditava a lei naquele momento. Thiago ordenou, colocando a mão na bainha da espada.

- Abandonemos a casa e deixemos Molina com os seus afazeres. Logo virão trazer-lhe roupas pois será minha convidada de honra no jantar.

Saindo de casa ouviram o som de trombetas e viram chegar a coluna dos guardas reais encabeçada pelos seis janizaros que procuravam Thiago. Ao verem os soldados de dom Maximiano imediatamente cercaram-nos, apontaram-lhes os mosquetes, desarmaram-nos, e deixaram-nos presos num moinho gasto pelo tempo.

Thiago montou a cavalo, acompanhado do traidor partiu à desfilada com a guarda atrás em direcção ao palácio. Grupos de camponeses davam passagem aos cavaleiros, com as colheitas no auge, todos os braços ajudavam nas tarefas.

- Belos campos.

- Os meus domínios estendem-se até estas terras.

- Mentes. Estes campos pertencem ao filho do conde a quem usurpastes o poder assassinando-o de forma vil bem como a restante família.

Reconhecendo Thiago e cheio de furor, o facínora desembainhou a espada avançando contra o moço que se desviou do golpe atirando o adversário ao chão. Um camponês que estava perto ao ver caído o causador de tantas desgraças não hesitou e trespassou-o com uma forquilha.

Gritando vivas a Thiago o povo pretendeu ajudar expulsar os últimos lacaios de dom Maximiano, no entanto não foi necessário o apoio, porque sem o chefe, resolveram prudentemente fugir para outras localidades.

Algumas semanas depois, Ângela visitou a vila e ainda hoje na praça principal, uma lápide recorda o casamento dos dois apaixonados.

Quanto a Molina, nunca mais quis abandonar o casebre, ofereceram-lhe um burrinho e todas as semanas lhe é enviada lenha e mantimentos. Diz o povo que, em noites de Lua cheia, a podem ver buscando alecrim, salva e arruda nos campos, para afastar os maus olhares e manter a paz na vila.

FIM

Rui Manuel Resende
Enviado por Rui Manuel Resende em 17/04/2013
Reeditado em 17/04/2013
Código do texto: T4244638
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