Ponte sobre o Sena
Daniel chegou.
Tu te debruças na amurada da ponte e ficas vendo correr o rio, que divide em duas a cidade. Teu olhar, tentando descobrir o teu reflexo nas águas, perde-se no fundo. Depois de um tempo, alonga-se pelas margens, abarcando-as como se fossem grandes peças de um brinquedo de montar. Paisagens que conhecias através de livros e filmes tornaram-se, paulatinamente, familiares. Respiras fundo para impregnar-te desse ar que revitaliza o teu espírito.
Daniel chegou. Escapaste a sua carinhosa vigilância e vieste postar-te diante da Notre-Dame, na hora em que os primeiros raios de sol reverberam sobre o Sena. Tens levado uma vida cheia, dedicada a haurir de Paris tudo que és capaz de absorver. Não faltaram amigos para acompanhar-te na missão de desvendar segredos. Vieste por seis meses, já estás há quase um ano, entregue à tarefa de, em descobrindo a cidade, descobrir-te a ti mesma.
Daniel chegou para buscar-te. Acertar o casamento, que já deveria ter acontecido. Não fosse o teu desejo tenaz de aceitar a bolsa para a França. Quando te chamaram à portaria do alojamento e te deparaste com ele, como se fora alguém surgido de outro mundo, quase caíste de surpresa. Vinha definir as coisas, Daniel.
Paris te foge, é o teu primeiro pensamento. Ficar? Bem que gostarias. Ainda há muito a desfrutar. Não, não tens o direito de fazê-lo esperar mais. Ele chegou ao limite, estás bem certa disso. És tu que te afastas,diante da cidade iluminada. Procuras levar contigo um pouco desse brilho que contagia tudo.
Deixas a ponte e andas lentamente pelo "quartier latin" que aprendeste a amar. Entras em um café da rua Soufflot e sorves uma mineral sem pressa. Duas brasileiras te descobrem e sentam a teu lado. Daí a pouco, é teu colega holandês que te abana do lado de fora. Fazes sinal de que entre. A mexicana do alojamento não espera convite para acomodar-se à mesa. De repente, estás cercada por um grupo, como se estivesses na tua cidade. Resolves:
- Hoje eu pago a conta.
Olham-te sem entender o que está ocorrendo. Revelas, apenas ao final, que é a tua despedida. Sais rápido, antes que se multipliquem no teu rosto as primeiras lágrimas.
Tu te debruças mais uma vez sobre uma das pontes que atravessam o Sena. Teu olhar, num giro panorâmico pela cidade, certifica-se de que ainda a reconheces. Paris parece não ter mudado ao longo dos últimos vinte anos. Não tens tempo de pensar muito. Sabes apenas que estás um pouco mais pesada e um pouco mais madura. Daniel aproxima-se:
- Vamos caminhar?
Segues com teu marido, trilhando o velho e conhecido Boulevard Saint-Michel.