COTIDIANO
O homem era um sujeito simples. Tinha três filhos. Separou-se há mais de 10 anos. O filho do meio foi morar nos Estados Unidos. O mais velho de tanto se meter em confusão acabou preso. Havia também envolvimento com drogas. O mais novo era sua companhia, pois, com sua ex-esposa não havia mais aquela cumplicidade de antes. José Flávio vivia recebendo contas de Júlia para pagar mesmo depois de separados há tanto tempo. Variavam desde assinaturas de revistas até as coisas mais supérfluas. Como a cidade onde moravam era bem pequena ninguém se hesitava em apresentá-lo as notas de Júlia para pagamento. Já que a mesma se incumbia de dizer aos lojistas para cobrarem dele. José Flávio não aguentava mais arcar com tantas despesas. Ele mesmo precisava de ajuda financeira. Mas não reclamava. Só andava meio triste e cabisbaixo.
Júlia era professora na única escola da região. Andava no mundo da lua. De certo era uma mulher sensível e sofria com a situação dos filhos. O mais novo morava com o pai, porém mãe e filho se viam todos os dias. Moravam perto. Eles iam para a mesma escola, quer dizer, a única. Sempre alegres e se davam muito bem.
Manuel tinha os cabelos castanho claro, cacheados como de anjo, olhos amendoados. A pele era de puro pêssego. Inteligente e sagaz sabia, como ninguém, agradar um e outro, em suas preferências e gostos individuais.
João morava nos Estados Unidos e trabalhava de pedreiro na construção civil. Desde adolescente queria ficar rico, era fascinado por carros. O seu sonho era ser piloto de Fórmula 1. Porém consciente de suas limitações tanto pessoal quanto financeira, e talvez até, nem tivesse talento para tanto se conformou em somente ser admirador das “máquinas”, como dizia. Mas permanecia firme no amor e interesse pela profissão. José Flávio achava João um sonhador. Tinha pena do filho por isso. Trabalhava de sol a sol durante 12 horas por dia para realizar sonhos materiais tão caros!
Mas João, dos três, era o mais amoroso. Sempre se preocupava com a mãe. Dava conselhos e não se esquecia do combinado que fizeram quando foi morar fora que era telefonar todos os domingos para matar a saudade e saber como foi a semana. Claro que sempre que podia fazia o mesmo com o pai. Manuel chorava. Júlia levava notícias para Pedro todos os domingos nos horários de visita. Pedro também chorava ao ver a mãe. Todos choravam.
Na segunda-feira tudo voltava ao normal. Cada um vencia a semana como podia.
O que sempre importava para ambos eram os filhos. Para eles nunca podiam dar o melhor. O amor estava meio escasso por causa do cotidiano e a idade ajuda bastante. Ficando mais velhos os sonhos, a esperança e os desejos envelhecem também. O amor é dependente desses sentimentos. Eles precisam estar vivos para que também existisse o essencial. Há muitos que lhes faltam o essencial. Teria que haver escolhas. A escolha era sempre difícil. Escolher é meio que um tiro no escuro e acaba esbarrando no destino. Por isso eu acredite tanto no destino. Deixo o restante de lado.
Não tinham muito dinheiro. O do advogado não havia espaço para ele. Sem ele Pedro ficaria o resto de sua vida na cadeia. Foi pego em flagrante com drogas e armas. O advogado pedia dinheiro todos os dias. O trabalho deles é bastante valorizado. Tiveram que vender a casa. O único bem. Infelizmente. O dinheiro acabou e o jovem não saiu da prisão. Faltavam alguns meses para terminar a pena que foi de 2 anos e 7 meses em regime fechado e mais 2 anos de semiaberto.
Júlia marcava no calendário os dias em contagem regressiva para então poder nesse dia ser feliz de novo. Era assim que ela pensava. Era assim que todos pensavam naquela família. De tudo que pudesse acontecer de ruim aquilo era o pior: um filho preso.
José Flávio era aposentado. Morava de aluguel num barracão com Manuel. E Júlia morava com os pais.
João mandava dinheiro para ambos. Usavam todo o dinheiro para despesa. Quem não tem nada muito vira pouco. Nunca se ganha o suficiente para ser muito e não faltar nada, ou faltar menos...
Essa família era a mais comum, a mais cotidiana, a mais piegas que eu conheço. Repito o ditado mais ouvido aqui nessas redondezas: “trabalha no almoço para comer na janta”. Falta tudo, conforto, alimentação saudável, dinheiro.
Acho que amor não faltava não (mas eles não tinham consciência de que não faltava). O casal mesmo separados, do jeito deles, se gostavam muito. Um estava sempre de olho no que o outro fazia. E de vez em quando trocavam presentes. José Flávio deu a Júlia de presente um CD de Ana Carolina. Há alguns dias antes da escolha do presente ouviu-a contar ao telefone para João que adorava as músicas da cantora mineira. Estava fazendo muito sucesso em todo Brasil. Os olhos brilharam quando disse isso e José Flávio percebeu. Ele sempre percebia a emoção no rosto dela, em qualquer situação que fosse. O presente foi um sucesso e uma alegria. Então, eles se comportavam sempre assim, com a cordialidade que a amizade exige. Só se estranhavam um pouco quando chegavam as contas, o que era de se esperar. Mas, no final tudo se resolvia. Júlia pedia desculpas e jurava nunca mais fazer isso. Depois ela se esquecia da promessa e estava ela lá de novo se justificando o injustificável.
Mas, era desse jeito mesmo que eles conviviam desde sempre. Compreendiam, sem saber, que a vida era um eterno retorno. Júlia havia estudado sobre esse filósofo, mas não sabia que essa compreensão de mundo saía do papel tão facilmente e pulava para a vida real sem pedir licença. Mas, José Flávio não. Nunca se interessou por leitura, principalmente, de filosofia.
Eu queria, a princípio, contar a história de um homem que ficaria rico, muito rico mesmo. Mas como poderia isso acontecer? Pensei que poderia ganhar na Mega Sena (mas nem nesta se está podendo confiar... não totalmente) e também José Flávio nunca foi bom com os números.
Pensando em resolver esta situação sonhei que José Flávio poderia achar uma mala cheia de dinheiro no Aeroporto Internacional do Galeão. Mas ele era apenas um pai, aposentado. Nunca viajou de avião. Tão pouco era frequentador de aeroportos. Não tinha parentes políticos nem nada.
Estava difícil encaixar uma coisa com a outra. Eu continuava com a ideia fixa de que o dinheiro compra tudo, até o amor verdadeiro, como dizia Nelson Rodrigues. E assim várias outras máximas vinham a minha mente na tentativa de solucionar esse embate com o meu personagem. Em vão.
Sabem o que aconteceu? Conclui que quando não se tem felicidade o dinheiro pode trazê-la num pacote completo. E que eu estava errada na minha avaliação. A minha visão do personagem que criei estava distorcida, pois, dinheiro e felicidade não precisam necessariamente coexistir. Se assim não fosse onde ficaria a liberdade, o pensamento e a alma das pessoas? Podemos transformar felicidade em dinheiro, ou, dinheiro em felicidade. Basta compreender de que lado estamos.
Depois desta pausa volto a dizer que José Flávio, Júlia, Manuel e João – que chegou há pouco dos Estados Unidos – estão preparando um delicioso almoço para Pedro. Hoje é dia 27 de março de 1990. O dia mais feliz de suas vidas. O dia em que a alegria voltou a reinar naquela família. Tinham planos para o futuro. Perspectiva de melhorarem de vida. Não sabiam que felicidade era isso. Era pouco, era só o necessário. Nada mais que o necessário.
Acredito que o cotidiano nos impõe um destino disfarçado de escolhas.