AUTORRETRATO DA MULHER DE TURBANTE AZUL
Todos os dias pego o ônibus para o trabalho nesta rua. Muito movimentada, poluída, gente que não acaba mais. Sento no banco a espera que geralmente é interminável. Há momentos em que quinze minutos se tornam tempo demais. Principalmente o de esperar. Esperar é sempre uma angústia, um sentimento noturno de incompreensão com o mundo, com as pessoas. Porém há algo interessante nisso sim porque nesses poucos minutos podem conter horas também intermináveis.
O que me chama atenção, além das pessoas que passam sem parar, é uma placa. Sempre leio a mesma placa como se procurando uma novidade, uma palavra nova nos dizeres velhos, sujos pela poluição e desgaste do tempo. Parecia que aquela placa estava lá há mais de duzentos anos, com os seguintes dizeres, somente:
PERDEU ALGUMA COISA? ENTRE! CELULAR: 91996644.
A casa sempre fechada. Como se fechada para o mundo. Antiga, com janelas e portas de madeira talhada, com eira e beira. Cores de azul desmaiado e amarelo claro, situada bem na esquina e do outro lado uma farmácia e um supermercado.
Entravam homens engravatados, mulheres chiques e elegantes, de óculos escuros ou não. Jovens, idosos e até crianças de colo. Estudantes com seus uniformes branco-azuis. Não dava para ver a senhora que atendia a campainha. Aquilo tudo era uma incógnita, não sei se para todos, pelo menos para mim era. Por mais que eu tentasse entender pela leitura do texto não conseguia decifrar aquele enigma. Só tinha uma saída: ir até lá, tocar a campainha e pagar para ver, ou então, ligar para aquele número do anúncio.
Hesitei por muitos dias. Cheguei a perguntar para uma senhora que sempre sentava ao meu lado do banco do que se tratava aquela casa e aquela placa. A mulher não me deu confiança, aliás respondeu com monossílabos que “não”, não sabia do que se tratava. Achava até que não morava ninguém ali...
Tive coragem digitei atentamente o número do celular e para minha surpresa ouvi uma voz de secretária eletrônica que dizia: “se você concorda com o dia e hora (segunda-feira, às sete horas) digite 1, se quer escolher outro dia digite 2, se quer escolher outro horário digite 3, se quer falar com um de nossos atendentes digite 4. Não responda nada, apenas escolha o número de seu interesse, você está falando com uma máquina, portanto não obterá nenhum êxito na tentativa de conversar”, se você concorda com o dia e hora (segunda-feira, às sete horas) digite 1, se quer escolher outro dia digite 2...
Ouvi muitas vezes aquela gravação até resolver desligar. Achei, a princípio, que não passava de uma brincadeira. Bom, fiquei pensando naquilo por muitos dias e não tive coragem de comparecer àquele dia e horário marcados. Continuei por um tempo observando aquela casa estranha e aquelas pessoas entrando e saindo discretamente. Pude perceber nos rostos das pessoas um ar de satisfação, como se entrassem carregando um peso e saíssem sem ele, um rosto ameno, sereno, com um pequeno sorriso estampado. Essas feições me deixaram mais intrigada ainda.
Um certo dia saí de casa meio chateada com alguns problemas familiares e me sentei no cativo banco de espera do ônibus para o trabalho com um ar angustiado esperando pelo momento de assumir o meu posto de telefonista na empresa em que eu trabalha há mais de 12 anos. Todos os dias fazia as mesmas coisas. Chegava, abria a gaveta e retirava os malotes para serem entregues ao Correio Central; preparava a mesa telefônica para então ficar durante 8 horas por dia, sem direito a sair para tomar um cafezinho, a não ser que alguém ficasse no meu lugar, que era um pouco difícil, às vezes, pois cada um cumpria a sua rotina sem se preocupar com os outros.
Foi justamente nesse dia que resolvi pegar de novo o telefone e ligar, dessa vez ouvi até o final da primeira etapa da gravação (a que marcava dia e hora) e então, criei coragem e compareci na primeira hora do dia seguinte. Bati na porta, suavemente, até com um pouco de receio. A porta se abriu e uma voz disse: entre e feche a porta! Fiquei com medo. Mas, naquele momento não dava mais para recuar. Obedeci, entrei e fechei a porta...
Uma mulher de turbante azul encaminhou-me para dentro da casa. Olhava para as paredes vermelhas como se tivesse entrando em um útero. Dividia-me entre olhar para o turbante azul (da cor do céu) e as paredes almofadadas de vermelho (sangue). Havia também um tapete que conduzia a um outro cômodo da casa. Essa era a surpresa! Deparei-me com um telão enorme, e de repente eu já me encontrava dentro dele. O final do tapete dava na entrada dessa tela. Era como se a partir daquele momento eu fizesse parte daquele quadro. Eu não me sentia mal. Ao contrário, estava me sentindo muito bem. Um certo ar de aconchego. Parecia estar cercada de pessoas das quais gostasse muito. Era só uma impressão, pois, olhava para os lados e não via ninguém, nem a mulher de turbante azul. Ela havia desaparecido de perto de mim.
A partir daquele momento a cada passo mudava o cenário em que estava inserida, como num quadro que ia se renovando no meu caminhar não sei para onde.
No primeiro passo, olhei para dentro de mim e só conseguia perceber um coração, como seu eu fosse composta somente por sentimentos. Estava num CTI comum de hospital. Olhei e vi uma criança respirando por aparelhos depois de uma cirurgia no crânio. Uma cena de horror! Parecia um quadro de Salvador Dali. Mas, ao mesmo tempo uma sensação agradável, acho que de esperança. Havia a mão de Deus depositada em sua cabeça. Eu via essa mão de Deus abençoando aquele garoto. Ela fazia parte de mim enquanto a senhora de turbante azul esperava invisível pela criança, do lado de fora do hospital.
No segundo passo, uma angústia terrível, pois tentava a todo custo que uma pessoa falasse o que estava sentindo. Um menino gritava muito e não dizia o que havia. Levantei a sua cabeça e vi que ele não soltava uma lágrima sequer, apesar dos gritos poderem ser ouvidos longe. Eu perguntava, perguntava, e nada de resposta. Havia em mim um sentimento de impotência. Eu não sabia quem era aquele garoto e porque estava ali no meu caminho. Olhei para o lado e vi uma casa cheia de doces. Levantei o menino pelo braço e conduzi-o àquela casa e então ele aceitou doces e biscoitos. Calou-se. Mas não disse palavra. Quando olhei nos seus olhos azuis vi ao fundo um céu, um mar e um coração que batia num peito do tamanho da tela. Acho que esse menino era um anjo, ele desapareceu quando dei o terceiro passo.
Eu estava agora, com uma forte falta de ar . O ar não adentrava ao peito, apesar de abrigar pulmões sadios. O ar chegava na garganta e voltava. A sensação era de morte. As pernas foram ficando descontroladas e os lábios roxos. Até que senti uma agulhada no braço. Passados uns quinze minutos já respirava um pouco melhor.
No quarto passo continuava sem ar. No quinto passo também. E assim foi sucessivamente até achegar ao décimo passo. As crises de falta de ar foram muitas durante a vida toda.
No décimo passo deu-se num rio de águas límpidas, uma fresta de luz e um céu azul claro. Ao canto uma lua partida e uma estrela ao lado. Havia água, muita água. Pisei e continuei caminhando por algum tempo, como se tivessem sido por durante dias, meses, anos... até chegar a uma porta. Abri essa porta; saí e a fechei normalmente. Percebi que estava na rua lateral à casa perto do ponto do ônibus. Tropecei. Quando olhei para o chão estava lá a minha carteira de identidade. Eu não sabia que havia perdido a minha identidade.
Descobri que eu era a mulher do turbante azul, porque me vi dentro dos olhos do menino que comia doces, assim que levantei o seu rosto eu estava lá. Eu sempre estive lá.
Anajara Lopes