Alfredinho das bailarinas
 
Denominava-se empresário da noite. Um terno para cada dia do mês, meia centena de gravatas, sapatos de todo jeito, vários deles bicolores. Linguagem impecável, lábia de malandro do asfalto. Códigos civil e penal na cabeça, decorados nos tempos do curso de Direito. Bacharel, e só. Nunca pisara num tribunal, salvo como réu numa ação por estelionato. Nada restou provado, ficou o dito pelo não dito. E a fama.
 
Bom na dança de salão e no gingado da capoeira. Nas gafieiras e inferninhos rodopiava com desenvoltura, mostrando seu bailado da rumba ao tango e no samba quadradinho. Briga não perdia nenhuma. Mão no chão e uma perna estendida. O desafeto caído, à espera do chute de nocaute no rosto. Se a barra pesava, sacava a navalha do bolso do paletó. Fez correr mais de quatro numa única vez.
 
Do pai caboclo herdou os negros cabelos ondulados e a tez levemente amorenada. Da mãe polaca, os olhos azuis. Sucesso com as mulheres, celibatário por opção.
 
Em todas as boates do centro da cidade havia mulheres suas. As que encerravam seu tempo no centro, por idade ou outros motivos, ele mandava para os lupanares da Vila Parolin. De lá, ninguém nunca soube para onde iam. Sabia-se, contudo, que muitas arrumavam aposentadoria encostando-se a algum velho remediado e solitário. Viravam senhoras de respeito e donas de casa. Pululavam cochichos de que o Alfredinho, por simples boa ação, acochambrava os ajuntamentos.
 
Valente, sabia recuar quando o solo estava minado. Perdeu muita argentina para figurão. Lamentava o prejuízo, mas não se metia com quem não podia. Homem de juízo. Quando perdia uma, embarcava para Buenos Aires e trazia duas. Fazia questão de ir buscá-las pessoalmente. Não confiava em intermediários e conhecia o gosto da freguesia local como ninguém. Examinava e experimentava o material antes de trazer. Por isso era respeitado no mercado. Negócio com ele era coisa séria, apesar do processo do suposto estelionato. Garantia de não perder bailarina para outra casa. Mesmo as que se destacavam e eram promovidas a stripper, passando a estrelas da noite.
 
As argentinas eram geralmente bonitas e fogosas. E também as mais exigentes e espertas. Muitas se casavam com homens endinheirados e tornavam-se damas da sociedade. Costumeiramente citadas como referência de coisas de manutenção dispendiosa. Isso é mais caro que sustentar uma amante argentina, dizia-se por aí naquele tempo.
 
Para empregar suas bailarinas, Alfredinho fazia qualquer negócio. De algumas cobrava mensalidade. De outras, comissão sobre o faturamento, prática que vinha abandonando por ser de controle mais trabalhoso. Das boates do centro recebia o passe, variável conforme o conjunto em jogo: idade, beleza, carisma, atração, leveza na dança, eventuais coreografias. Às vezes valor menor no passe e mensalidade por algum tempo. Tudo no bico, nada no papel. Valia o imaginário fio de bigode no contrato verbal.
 
Poucas vezes enfrentava aborrecimento mais sério. Não admitia que importunassem suas meninas, nem que se referissem a elas com adjetivos pejorativos. Para ele, elas eram bailarinas, moças, garotas, meninas, mulheres. Putas, jamais. Os leões de chácara colaboravam com ele nos cuidados. Recebiam sua gorjeta. Isso dava a elas segurança e fazia valer os honorários do empresário. Por acaso ele estava na Marrocos quando famoso ator, em temporada de teatro na cidade, foi posto para rolar escada abaixo até a calçada da Rua Marechal Deodoro, porque, embriagado, passou dos limites no assédio às bailarinas.
 
Uma noite, ao chegar numa das boates do centro, o garçom avisou que alguém o aguardava. Apontou para uma mesinha no fundo. Embora a meia-luz, de longe Alfredinho o reconheceu. Tratava-se de um cafetão de Buenos Aires, com quem ele já havia feito negócios na capital portenha. Ao vê-lo aproximar-se, o argentino colocou-se em pé. Ignorando a mão estendida do outro, foi logo falando:
 
- Vim buscar Laurita.
 
- Trouxe la plata? - perguntou Alfredinho.
 
- Não é preciso. Vim recuperar o que você me roubou.
 
- Não roubei. Ela veio porque quis e não trabalhava mais para você.
 
- Ladrão, estelionatário...
 
Alfredinho não tolerava ofensas. Sobretudo em seu território e partindo de um estrangeiro. Instintivamente desferiu no visitante violenta bofetada. O estalo da palma da mão contra o rosto do homem foi abafado pelo som do trompete nos primeiros acordes de Summertime, do George Gershwin, ao mesmo tempo em que dois holofotes jogavam suas luzes sobre a sensual Laurita, no meio da pista, pronta para iniciar o seu número de striptease.
 
O argentino calmamente tirou o lenço xadrez do bolso superior do paletó e fazendo com ele leve compressa sobre a face esquerda dolorida, falou em tom ameaçador e firme:
 
- Isso vai lhe custar muito caro.
 
Encaminhou-se então para a porta, parando no trajeto apenas um instante para fulminar com o olhar a bailarina no princípio da sua dança erótica. Ela, concentrada na coreografia, sequer notou a presença do antigo empresário e ex-amante.
 
Alfredinho, sem se abalar com a ameaça, sentou-se à mesa deixada pelo gringo, pediu seu único uísque da noite e deixou-se enlevar e excitar pela dança provocante.
 
Após o número, Laurita veio lhe fazer companhia. Pediu uma bebida, um cigarro. Depois dançaram um pouco. Antes de a boate fechar, despediram-se dos amigos e saíram com destino ao pequeno apartamento dela, perto dali.
 
Cavalheiro, na calçada ele ofereceu-lhe o braço. Ela o tomou como uma dama e seguiram caminhando em direção à Praça Osório. Laurita morava na rua que nascia do outro lado. Bastaria seguir pelo meio, contornar o repuxo, e vencer a outra metade. Em seguida andar até o fim do primeiro quarteirão e pronto.
 
A noite estava agradável, para a estação. O outono tinha chegado e ainda não fizera frio. Antes que atingissem o centro do logradouro, três homens saíram das sombras das palmeiras. Um deles era o argentino. Os outros dois, no melhor estilo brutamontes, partiram para cima do Alfredinho. Ele empurrou Laurita para o lado, gritando para que fugisse. No entanto ela se atrapalhou com os sapatos de salto alto na calçada de petit-pavé e caiu sobre o canteiro de amores-perfeitos. Ficou zonza, meio desacordada, tentando entender o que acontecia.
 
Alfredinho levou a mão direita ao bolso interno esquerdo do paletó em busca da navalha. Enroscada, não conseguiu tirá-la a tempo. Enfrentou os grandalhões no braço forte e no rabo-de-arraia. Quando vislumbrava uma chance, enfiava a mão no bolso onde estava a navalha. Somente na quarta tentativa ela veio.
 
Navalha aberta e reluzindo na mão, o empresário da noite achou que a batalha estava ganha, como em outras ocasiões semelhantes. Os dois agressores recuaram. O argentino, entretanto, aproximou-se. Alfredinho estacara para estudar o terreno e preparar-se para o ataque. O portenho parou a três passos dele, esticou o braço direito e apertou um gatilho da pistola de dois canos. O tiro certeiro no coração pôs fim à vida do gigolô.
 
Ainda com a arma fumegando, o argentino avançou devagar até Laurita, que tentava levantar-se com os olhos arregalados de pavor. Apontou a pistola para a cabeça da mulher, armou o cão e disparou à queima-roupa o segundo e último tiro.
 
Antes que o porteiro e outros homens que saíam da boate, alertados pelos estampidos, tivessem tempo de chegar à praça, o argentino e os outros dois correram a salvo para o outro lado, onde os esperava um carro negro, com motorista e o motor ligado.


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N. do A. - Na ilustração, Cartaz de Jane Avril de Henri de Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 13/04/2013
Reeditado em 18/01/2022
Código do texto: T4238577
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