O Néscio
"I just want to walk right out of this world
'Cause everybody has a poison heart" - Ramones.
Quanta humilhação. A geladeira cheia, o bolso cheio, o freezer cheio, a fruteira cheia. Saiu da cidade grande, conquistou um lugarzinho numa repartição provinciana, conseguiu alugar um apartamento bacana em um bairro bom. E ali, cotovelos arrimados na janela, duas da manhã. Olhando a rua, a rua vazia, vazia. Insônia. Sem fome, sem sexo. E aquele diabo no outro quarto, dormindo, com dobras macias no ventre que poderiam amainar seus sofrimentos. A amiga de um amigo, vestibulanda, passando uns dias sob suas garras, mas não exatamente sob elas. Dezessete anos, branquinha, linda, simpática. Ele, forte e desenxabido, gostosamente desenvolto nos diálogos mentais que tinha com mulheres e completamente néscio diante de uma belezinha de carne e osso. Duas semanas ali, a bicha. Não incomodando, conversando pouco, não dando indícios, não dando brechas. No ar as nuances inexistiam. O gato avizinhou-se dele à janela. Ronronou, roçou o focinho na ponta do dedo que estava estirado e se sentou enrolado no rabo, já distraído olhando a rua. Trinta segundos de passadas largas e estaria dentro do quarto da ilustre hóspede, já despido, acariciando levemente a pele alva, a pele imaculada, a pele lisa, macia, perfumada. Um grito e tudo estaria perdido. Luzes se acendendo na rua, vizinhos observando por frestas das cortinas com o telefone pendurado no pescoço, ligando para a polícia. Pancadas, chutes nas costelas, escarradas dos vizinhos, sangue, dores. O assunto do dia no e-mail corporativo. Estuprador. Não. Diabo! Dores. Aquele comichão na virilha. A luz do quarto de hóspedes é acesa, assustando-o. Os passos inaudíveis vindo em sua direção – ele não ouve, ele não vê, mas a presença animalesca exalada pela vestibulanda branquinha o oprime contra a parede. Calor. A silhueta – a curvilínea e feminil silhueta – estaca ao entrar na sala e se deparar com ele ali parado na janela.
- Calor demais aqui, diz ela. Não consigo dormir. Vou tomar um banho. Posso tomar um banho? Não consegue dormir também?
- Ora, deixe de cerimônia, moça. Já tomou mais de cem banhos aqui e ainda pede, que deselegância.
- hihihihi então eu vou lá.
- Vá.
Vá, desgraça, pensou ele. Ficou no mesmo lugar, estático, atento aos passos, ao abrir e fechar de gavetas, do ruído de zíperes abrindo e fechando. Imaginou-a escolhendo a calcinha limpa. Uma calcinha tipicamente adolescente: larga, discreta, de algodão, com estampinhas em rosa: morangos, corações, gatinhos, pandinhas. Ficou esperando a silhueta cruzar o corredor que dava no banheiro. Cruzou, toalha nos ombros, uma virada de pescoço discreta em sua direção, olhar baixo, um sorriso às escuras. A porta do banheiro reclamando, rangendo. Se fechando. Silêncio. O silêncio do atrito das roupas de baixo escorregando pele abaixo. Imaginou-a de braços esticados ao alto, puxando a blusa, a gola da blusa emaranhando seus cabelos, erguendo-os e soltando-os. A gravidade fazendo com que eles caíssem lentamente sobre os ombros, escorrendo omoplatas e clavículas abaixo. O clique do sutiã, os peitos dando aquela caidinha. A gravidade embelezando a naturalidade dos peitinhos de ninfa caídos. Jesus, murmurou ele, empurrando o pau pra baixo e sentindo um formigamento familiar onde julgava ser o coração. Deu cinco ou seis voltas em torno de si mesmo; mão no queixo, não no bolso, dedo alisando a cabeça enrijecida; girando e girando sobre si; taciturno, diabo no corpo; diabo no banho – chuveiro ligado, água caindo, passeando por aquelas curvas juvenis, de ninfa, indo ralo adentro se misturar ao chorume no lençol freático. Desperdício. Até o chorume tendo um quinhão daquilo. E ele ali, volteando feito urubu, bicho carniceiro. Perdendo a paciência. Decidiu: sim. Partiu feito bala em direção ao banheiro no minuto mesmo em que o chuveiro foi desligado. Isso acabou com sua concentração. Praguejou baixinho. Algo bem cabeludo. Bem baixinho. Voltara a ser o moleirão sem atitude. De pau duro no meio da sala, coração envenenado, ladrão dentro da própria casa. O gato ainda na janela, indiferente. O veio de luz do banheiro banhando o corredor. O pijaminha florido, rosinha, toalha enrolada na cabeça. Caminho linear, sem quebrada de pescoço. Um “boa noite” distraído. Silhueta sumindo quarto de hóspedes adentro. Foi ao banheiro, sentou na latrina, afundou o rosto nas mãos, os dedos afundando no cabelo abundante. Suspirou, olhou do chão ao teto. Os olhos pararam em algo pendurado no registro. Calcinha, calcinha pendurada, torcida e retorcida, úmida, velha. De menininha. Odiava calcinhas penduradas. Lembravam sua mãe e irmãs, desleixadas, deixadas na cidade grande, se engatando com os machos da vila, fofoqueiras, bêbadas noveleiras. Arrancou o pedaço de pano num impulso pueril de ódio e sapecou-a na janela, mas o troço ficou pendurado. Foi até ela, puxou-a, enrolou nos dedos e esfregou na cara. Abriu, virou do avesso, desvirou, esfregou no pau, esfregou na cara. Babava, virava os olhos. Abriu, fechou, virou do avesso, desvirou. Punheteava em êxtase. Pensava em índios se masturbando no meio da floresta, escondidos. Selvagem. A parte do pano onde calculava ficar o períneo socada no nariz, o cheiro de cu e xoxota ainda ali, impresso, impregnado. Desvario. Sentiu que estava prestes a gozar um gozo arrebatador, transcendental, doído. Sentiu: a coisa saiu num esguicho, com um guincho e um peido. Rilhava os dentes pra não gritar de prazer. Largou o pano de volta no registro, largou os olhos nos ladrilhos, voltou o olhar ao registro e o pano não estava mais lá. Sobressaltou-se ao virar e se deparar com a proprietária do tecido. Com ele e mãos. Com uma sobrancelha erguida num misto de consternação e excitação. Talvez não, talvez só consternação. De pau ainda em riste, ele avançou um passo. Avançou, rezando para que não houvesse um grito.
11/04/2013 - 22h00m