A Flor que se enamorou pelo Mar, que queria ser o Sol para fugir e viver com a Lua.

A
madrugada ainda era prenúncio, mas já haviam pessoas à beira do mar. Era o dia seguinte ao dedicado à rainha do mar, Yemanjá. A areia da praia estava escura, pois a maré, naquele dia, de acordo com as fases da lua, fazia com que ficasse firme aos pés das pessoas, uma vez que vazante, deixava lá longe o mar, que, por sua vez, mostrava-se envergonhado e ciumento, já que as atenções do dia anterior não foram para ele, e ainda mais: tinha que ficar mais longe da orla.

De longe, como em todos os anos, o Mar via sobre a areia uma enorme quantidade de coisas que deixaram à sua beira: copos, garrafas vazias de vinho, pratos e talheres portáteis, garrafas de champanhe barata e algumas de boa marca, ramalhete de flores brancas: rosas, lírios, dálias angélicas, murchas, molhadas. E muitas fitas largas com laços e velas vadiavam por ali. Iemanjá devolveu. Até barquinhos de madeira, sabonetes e perfumes, pentes, colares e brincos baratos e enfeites estavam lá, semi enterrados em sua areia. Todos os anos ele pensava: quanta bobagem... será que não podem acreditar sem sujar?
Misticismo há em todo o mundo e os oceanos sempre ficam ainda mais sujos em diferentes épocas, pensava, revoltado. Porém uma flor em especial lhe chamou atenção: ainda viçosa, de um amarelo dourado, o caule firme, pétalas vigorosas, corola perfeita, estava lá, como esperando que ele a buscasse. Parece um girassol, pensou, vou chegar perto. Encantou-se pela flor; não sabia seu nome, nem isso importava, levou-a consigo e, durante todo o dia permaneceu recuado. E assim ficou durante uma semana, namorando sua Flor, que no jardim, sempre aguardou quem a colhesse para levá-la até o Mar. Enamoraram-se.
As ondas subiam, baixavam, de acordo com o movimento das marés. O Mar às vezes ficava furioso, outras, era uma calmaria só e quando estava assim, a Flor o amava mais ainda. Meses se passaram e a Flor foi sendo deixada para trás. O Mar tinha mudado, ela dizia. Ele negava dizendo que ela gostava de confusão. Mas a Flor sabia, ele já não era o poético, delicado, gentil, carinhoso e amável Mar que a chamava de Mulher; e foi-se deixando ser coberta aos poucos, pela areia. Poucas pétalas viçosas ainda podiam ser vistas. As flores recebem proteção da deusa Flora, das Sílfides e entes da Natureza, e ela era forte, mesmo quase desaparecendo, sempre viveria em todos os jardins e nos corações apaixonados.

Uma noite a Flor não conseguia dormir e ficou olhando para o céu, seu caule fraco, esticando-se para o esforço de suspender a flor. Foi então que ela escutou uma conversa entre o Mar e a Lua
- Por que você continua enamorado dessa flor velha? Para que ela serve? Um dia desses a areia lhe cobre toda. Será que não vê que me interesso por você? Não recebe meus recados que envio nas minhas fases?
- Desconfiava, disse o Mar, e também me interesso por você; gosto de sua luz e de suas fases, embora elas demonstrem inconstância. Mas... Não vou poder estar perto de você. Com a Flor posso estar sempre, desde que cuide dela. Ela está em mim.
- Peça ao Universo para transformar o Mar em Sol  e assim você vem para onde estou, disse a Lua.
Ele acreditou, pediu, torceu, vibrou e aconteceu. Em uma linda manhã não era mais o Mar azul, era o Sol amarelo-vermelho e estava no mesmo espaço da Lua.
A Flor foi murchando, mas, mesmo traída, ainda amava o mar, afinal de contas eles eram da Terra, moravam juntos.
Um dia o sol gritou para a Lua:
- Eu não posso ir perto de você. Você não pode vir onde estou. Eu apareço de dia, você aparece à noite, assim mesmo, em pedaços.
- Você sabia que seria assim, respondeu a Lua e isso nunca vai mudar. Teremos que continuar assim. Nunca estaremos perto um do outro.
O Mar emudeceu. Desconhecia a Flor, enviava seus raios quentes para queimá-la. Claro, agora ele era o Sol e seu amor era a Lua,
Mas como toda mudança traz conseqüências boas e ruins, a Flor continua sendo quase enterrada na areia seca. Onde havia o Mar, era deserto. O Mar (agora Sol) não mais a via, nem procurava saber dela. Um dia, ela será apenas resíduo de uma noite de festa em homenagem a Iemanjá, pensava. Mas a Flor sempre estaria perto de onde viveu o Mar, seus restos misturados e dissolvidos na areia, intensa e fiel, como sempre fora.
Sem o Mar a vida de todos começou a minguar, o sol escaldante matava adultos e crianças. Os peixes desapareceram e a pele das pessoas rachavam e formavam-se feridas. Já não havia arrecifes, corais, algas, nada, só esqueletos e flora marinha virando pó. O desequilíbrio no planeta era mais forte, mais perigoso, a esperança não morava mais nos corações.
Mas...o Vento carregou para outras plagas sementes da Flor e ela brotou, seu caule cresceu, desabrochou ainda mais linda, forte e brilhante. E continua encantando as pessoas que passam e perguntam curiosas:

- de onde será que veio essa linda flor?

Agora ela está em outro planeta dessa imensurável galáxia ou até, talvez, em outra da orbe.

Já o Sol e a Lua estavam fadados a viverem distantes e nunca poderiam chegar perto um do outro, a não ser que uma fatalidade cósmica acontecesse.


(Imagem: Carlos Kurare)