O Órfão

Não teve braços para afagá-lo ou seios para alimento. Não ouviu cantigas de ninar e nem dormiu em berços de cedro. Amor? Não conheceu. Carinho? Se teve, não sabia dizer. Não era fácil distinguir afeto de pena. Não avistou Papai Noel no Natal, tampouco ganhou chocolates na Páscoa. Não conheceu Peter Pan, Cinderela ou Rapunzel.

Nenhuma praia visitou nas férias. Não velejou por “mares nunca dantes navegados”, nem teve primeiro amor. Não sofreu a perda da vovó, nem chorou quando o Totó se foi. Não escondeu a nota vermelha e nem ficou de recuperação, não foi reprovado. Não comemorou o bicampeonato do Fluminense e nem chorou o tetra do Flamengo.

Não teve ideais. Não foi de esquerda nem de direita. Não pintou a cara e nem saiu às ruas. Não jurou bandeira e não temeu o alistamento. Não teve identidade, nem documento. Nem foi ateu nem religioso. Não leu Nietzsche e não criticou Platão.

Não teve emprego, tampouco foi empresário. He has not learned to speak English. Et il n’a pas appris à parler français. Não se chocou com crimes hediondos. Nem se extasiou com Titanic e também não soube quem matou Odete Roitman.

Não teve esposa, filhos e nem sogra para ofender. Não conquistou casa própria nem o carro dos sonhos. Não teve sonhos ou pesadelos. Não reclamou da inflação ou comemorou o real.

Nada de netos, amnésia ou pressão alta. Não pescou no Pantanal, não saldou o papa e nem reviu Casablanca. Não leu Guimarães Rosa. Não confessou os pecados, tampouco comungou.

Não teve caixão para repouso e nem lágrimas para enterrá-lo.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 11/04/2013
Código do texto: T4234698
Classificação de conteúdo: seguro