TESTEMUNHA

Quando dobrou a última página do recente livro do grande escritor, fechou os olhos. Deixou-se ficar em silêncio. Deitado na cama em silêncio – repito -, ele que gostava de ler em voz alta. Assim ficou muito tempo. Demasiado para perder a noção desse tempo. Entrou pelas traseiras do prédio, subiu até ao terceiro andar, apartamento 34. Foi rápido, como sempre. Como em tudo. A porta estava apenas encostada. Um grito seco, o corpo caindo sob o seu próprio peso, o fumo do revólver com silenciador. Havia uma penumbra suave no quarto. Era o início da noite e as persianas estavam quase corridas. Vinha do exterior o ruído próprio da grande metrópole. De pé, estático, hirto, de preto. O rosto oculto, estava de costas e, como já disse, a noite presente deixava que a luz natural desaparecesse, em farrapos. A testemunha reparou nas gotículas de sangue no sapato esquerdo da personagem viva. A vítima já só era, naquele espaço, uma mancha progressivamente escura que a tornava indistinta entre objectos. Tinha sido ameaçada de morte inúmeras vezes no último ano. Dívidas, amores secretos, negócios com gente mais do que suspeita. Um crime impune, como muitos outros, para arquivar nos ficheiros da polícia federal. Seria o destino inevitável. A figura de preto, a personagem viva, o assassino, como quiserem, saiu para o exterior quando começava a chover. Deitou o revolver e umas luvas cirúrgicas num contentor de lixo de tampa aberta. Levantou um braço e um carro branco levou-o a alta velocidade pela vertigem feérica da cidade agitada. Um lugar, sabemos bem, de gente sempre anónima, viva ou morta. Vítima, assassino, testemunha, todos de rostos ocultos numa grande cidade de ninguém. Um crime quase perfeito. Deitado na cama, em silêncio, depois de ter lido em voz alta todas as páginas do livro do grande escritor, pensou que poderia denunciar um acontecimento que lhe trouxesse alguma prova de existência. Descrever em detalhe tudo que qualquer investigador policial lhe exigisse como testemunha fiel dos factos ocorridos. Afinal, quase tinha memorizado, até à exaustão, a trama narrativa do genial autor desde a primeira frase construída. Um homicídio é sempre um homicídio, tudo o resto são simples questões de pormenor. Sobretudo a vida e a morte. Por outro lado, há muito tempo ninguém lhe perguntava pelo nome, era uma óptima oportunidade de se lembrar de si.

In “Contos em 8 Milímetros”, 2013

Carlos Frazão
Enviado por Carlos Frazão em 10/04/2013
Reeditado em 10/04/2013
Código do texto: T4234035
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