Um perigoso assaltante

(Era uma linha muito tênue a linha que separava a fome da ira)

Os curiosos diziam que ela, estando deprimida há muito tempo, entrara em desespero por não ter condições nem mesmo de dar o que comer aos filhos. A angústia advinda da constante necessidade, o choro torturante dos filhos pedindo pão e leite, a indiferença daqueles que receberam o título de administradores dos interesses da comunidade, as noites frias enrolada com os filhos para aquecê-los, como a galinha faz com os pintinhos; tudo isso somado à profunda depressão em que se encontrava, fez com que ela não suportasse mais a vida. Mas, que vida? Será que ela tinha uma vida? O marido, sob o imerecido rótulo de assaltante de alta periculosidade, fora tirado dela e das crianças brutalmente; e beijou sua mulher como se fosse a última. Um comerciante daquela região o surpreendera furtando um pacote de pão em seu comércio. Ele tentou fugir em desembalada carreira, levando consigo o pão, apertando-o com força contra o corpo, aflito, desesperado, ofegante, com medo, com muito medo. Um estampido seco ecoou pelo ar fazendo que as pombas que catavam grãos, displicentemente pela praça, se assustassem levantando uma grande revoada. Seu rosto, rijo e firme, em sua determinada carreira, era forte e seus traços sisudos, mas alegres. Na medida em que corria, seu rosto começou a desfigurar-se. Uma dor ligeira, aguda, ardida e quente; um líquido quente e pastoso molhando a roupa; a fraqueza fazendo bambear o corpo como um boneco de Olinda fora do ritmo. Baleado, enfraquecendo, sentindo o cheiro lúgubre de crisântemos, o pobre pai, o pai pobre, desfalecendo, corria contra a morte, contra a fome, contra a vida, contra a miséria, contra a injustiça, contra as lágrimas dos filhos famélicos, contra os suspiros angustiantes da esquálida e triste mulher. Ele corria, e eu corria também. Ele corria e o meu pai corria também, sangrando, querendo, tentando viver, não morrer, não sofrer, não morrer na frente dos filhos, continuar sendo o pai- herói, o pai que dá pão, o pai que é forte, o pai que é corajoso, o pai que sabe tudo, o pai que não morre, que mesmo morto ainda é o pai. O pai sofrendo, o pai sangrando, as lágrimas querendo sair ardendo mais que o chumbo, o pai correndo, o pai morrendo, meu pai sangrando, meu pai morrendo. O pai, que tinha vergonha de deixar os filhos terem fome, cumpriu a sua derradeira e quase póstuma missão de levar pão para os filhos, forçando sorrir-lhes para não perceberem que morria, voltando para expirar na porta do comércio de onde tirara o pão que o Diabo amassou; cujo preço custou-lhe mais que podia pagar. E agonizou no meio do passeio público, enquanto tapava desesperadamente com a mão o furo da bala, pensando que poderia fazer parar de sair sangue; chorava, não por si, mas pelos seus pobres e queridos filhos, agora órfãos de pai; pela esposa a quem tanto amara, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, na casa e na sarjeta, na vida e na morte; e que agora não poderia mais amá-la, nem ela a ele. As lágrimas eram tão quentes quanto o sangue que saía; que corria; que se esvaía. E se acabou no chão feito um pacote tímido.

E o pão era dormido.

(Extraído do meu livro: Fé sem memória)

Naassom
Enviado por Naassom em 07/04/2013
Reeditado em 07/04/2013
Código do texto: T4227966
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