Manifesto do Não-Nascido

Primeiro mês:

Começo em admitir que me impressiono com a imensa notabilidade existente em algo qualquer, com a grandeza enclausurada nos mais ínfimos detalhes, como os primórdios de uma ideia que muito bem mudaria todo o curso de toda a vida, ou a perene e ainda malnascida promessa que há numa efeméride que desliza, lânguida e notável, no que deveria ser o primeiro dia do mundo. Há nestas coisas o sonho, a vida, o sentido das coisas ainda por nascer, um eco cáustico e etéreo nas celestiais cavernas. Há simplicidade em todo o inicio, há silêncios e trevas e sonhos ainda não sonhados em todo despertar - e aqui não fora diferente. Uma tímida claridade acarinhava meu corpo disposto e ainda não desenvolvido, ou teria eu sonhado com tal luz? Eu era uma efeméride, mas não deslizava sobre a água: eu estava na água. Era um inicio, e eu estava nele: eu era ele. Eu ainda era um mero detalhe ainda não descoberto, porém notável e sagrado. Eu seria esperado(a)?

Eu flutuo de maneira lânguida, preguiçosa e frágil, com uma vontade meio que incompleta, como incompleto é tudo o que sou agora. Eu não penso, talvez por ainda não estar completo o que quer que mova nossos pensamentos ou sonhos, mas se tal dom me fosse concedido (à frente de tudo o que me será concedido num ermo futuro), eu até poderia refletir: estarei seguro(a)? Serei amado(a)? E novamente: seria esperado(a)? Não ignorava o fato de que me encontrava na celestial caverna tantas vezes à mim mencionada, mas seria eu uma ideia que poderia muito bem mudar o curso da vida? De uma vida, ao menos?

E, no entanto, eu existia. Estava além do meu controle, mas existia. O meu coração já bate de forma uniforme e descompassada. E isso era tudo o que me bastava.

Segundo mês:

Não sou mais um detalhe, ínfimo mas notável. Sou um esboço do que serei, um rascunho do que me espera.

Á água em que flutuo, leitosa e morna, agora me parece agradável e tépida, fazendo-me imaginar se eu poderia existir sem ela. Agora ouço vozes, longínquas e como que etéreas, mas ainda não distingo suas palavras, supondo-se que algum dia as distinguirei. Uma imagem se forma em mim, sou agora mais humano, tenho uma forma, e ainda que esta seja irregular, é um vislumbre dos dias que estão além da minha compreensão. Não sou mais uma efeméride que desliza sobre a água no ínicio de tudo: sou o cavalo-marinho que singra estas quentes e milagrosas profundezas, nobre e frágil. Eu percebo que já me perceberam, e espero que tenham eles, quem quer que eles fossem, percebido que eu os percebi - adivinhado que eu existia, que eu gostava dessa situação e adorava a embaladora quentura desse lugar escuro. Adorava as cócegas que me faziam esse lastro que me prendia nesse mundo, e que me sustentava. Os olhos surgiram, e me doeram brevemente pela desvantagem de nunca os haver usado. Os ouvidos surgiram, e foram acarinhados pelo silêncio desse primórdio. O entendimento surgiu, e entendi finalmente: eu não apenas existia, estava vivo(a). Existia e vivia. Era só o começo.

Terceiro mês:

Meu amadurecimento é ininterrupto. Agora sou definitivamente alguém. E mais: serei percebido e diferenciado como macho. É o que serei.

Movimento-me na maneira universal dos pequenos e vulneráveis filhotes: primeiro, à medo, depois, confiante. Sei que eles ainda não detectam meus sinais de vida, mas mexo-me assim mesmo. O que me moverá nos dias vindouros, tudo o que forma essa máquina complexa que é meu corpo ainda incompleto desenvolvem-se, plenos de vida. Estou quase completamente formado, não sendo mais um embrião. Sou um feto. Um grande cavalo-marinho num mar escuro.

As vozes agora são constantes, e os identifico de maneira relativamente fácil - há uma voz baixa e quase ininterrupta, que um certo receio à torna ainda mais melodiosa. A outra é grave e ponderada, ainda mais longínqua, e destas duas, capto uma carícia infinita apenas nesta última. Parece querer falar comigo, tocar-me mesmo estando longe e perto, e respondo às suas palavras. Eu estaria, agora, hospedado nele? Fui por ele gerado? Confusão, confusão nestes primeiros tempos. Por enquanto, aceito os alimentos que até mim chegam através do grande lastro que me sustenta, e que ignoro a origem. Mas desde já agradeço a atenção à mim dispensada.

Quarto mês:

Meu coração retumba com tanta força e tão rápido dentro do peito que durmo embalado pelo som incessante. A inquietação agora me domina, mas ainda sinto prazer em cada movimento, em cada alimento, em cada palavra daqueles que estão do lado de fora. A voz grave e carinhosa está mais distante; em compensação, a voz melodiosa e temente aproxima-se cada vez mais, e agora capto uma nota doentia nesse som. Eles deveriam estar assim? Ainda me alimentava deles, ainda crescia neles, seguro e vulnerável... Mas pela primeira vez, me perguntei: não seria eu bem-vindo?

Ante a dúvida temível, passei à movimentar-me mais, à guisa de aviso: estou aqui, eu existo, quero existir! Ouçam meu coração, sintam minha presença, considerem meu amor! Quero amá-los, quem quer que sejam! E afinal, o que estaria eu fazendo aqui, se não fosse esperado? Que crueldade seria esta, quem quer que aqui me tivessem colocado, de fazer-me despertar apenas para sofrer a dor da rejeição, o medo do escuro, a mágoa do não-existir! Estou vivo! Pelo amor Daquele que aqui me colocara pelo mais misterioso dos motivos, estou vivo!!

Quinto Mês:

Uma luz cruel, não sei de que canto dessa escuridão, adentrou meus sentidos, e me fez perceber duma vez por todas: não, eu não era bem-vindo. A voz melodiosa, ainda mais melodiosa, tornara-se túrbida e cáustica. Jamais falou comigo, jamais permitiu que sua voz embalasse o meu sono frequente. Em contrapartida, a voz grave e amável e longínqua fora embora, para nunca mais voltar. Não mais me sentia como um nobre cavalo-marinho, e sim algo aquém de um girino de águas podres. Eu não era desejado, e peguei-me imaginando, pela primeira vez nessa breve vida, o que seria de mim, preso á um mundo que não precisava em absoluto da minha inútil presença, apesar do fato de que eu necessitava deste mundo, acima de tudo. E os choros, ermos, constantes e tenebrosos, foram as únicas canções que embalaram-me neste meu inseguro inicio. Não mais havia satisfação em mim ao pequeno ato de movimentar-me, abrir os olhos de vez em quando, chupar o polegar de tempos em tempos. Era-me agora indiferente à delicada lanugem que surgira-me anteriormente e, agora, era substituída por cabelo verdadeiro. Não mais importavam as mudanças que se operavam em mim, e operavam com força: me sentia como um parasita, que sugava a fonte de vida necessária à minha sobrevivência, sem a autorização da verdadeira geradora de tais fontes. Ainda estava ligado á ela pelo lastro de vida - e não por muito tempo.

De que adiantaria agora agitar os pequeninos braços, abrir as pálpebras sempre cerradas, chorar e agarrar-se à uma ínfima esperança (e me disseram que aqui haveria esperança à farta) se, burlando tudo o que geralmente deveria acontecer, um sorriso não era brotado, através de mim, ao rosto daquela que me carregava, uma lágrima de alegria não era vertida, através da minha presença, aos olhos daquela que deveria me amar? Adiantaria tentar existir sem o amor? Porque, então, eu seria mandado pra cá? Que crueldade sem tamanho seria essa? Eu quero voltar. Quem quer que tenha me colocado aqui, estaria melhor, infinitamente melhor, no lugar onde surgi, no lugar onde fui terrivelmente arrebatado. Não sou bem-vindo aqui, apesar de terem me dito e prometido o contrário. Peço, por favor, deixem-me voltar!

Sexto mês:

Uma criança saudável, alegre, cheia de vida: era o que eu seria.

Sorriria por um tudo, a imperatividade equivalente á todas as crianças me dominaria por inteira, e seria presenteado por uns bons galos na testa.

Contrairia a catapora bem cedo, e sofreria pelo nascimento dos primeiros dentes. Teria o meu próprio cachorro, e ele teria medo das minhas travessuras. Eu adormeceria beliscando, com a ponta dos dedinhos, o braço de quem quer que tivesse paciência pra fazer-me dormir, e acordaria bem cedo, reclamando alimento.

Lembraria perfeitamente, mesmo muito tempo depois, do meu primeiro aniversário, onde praticamente enfiei o rosto no bolo e chorei quando um primo petulante qualquer assoprou as velinhas no meu lugar.

Teria medo do meu primeiro dia de aula, mas aguentaria firme e mostrar-me-ia corajoso quando finalmente soltassem-me a mão e prometessem buscar-me ao final do dia. Faria novos amigos, amigos esses que perdurariam por toda a minha vida.

Arrancaria meu próprio dente da frente com um pedaço de linha, o que deixaria todos orgulhosos: o dente seria substituído, talvez na madrugada, por um moeda novinha, e eu diria à quem quer que quisesse ouvir que a fada do dente me visitara, apesar de saber, com toda a minha infantil certeza, que meu pai fora a fada improvável que levara o meu dente, trocando-o por uma rica moeda.

No meu décimo aniversário eu ganharia um pequeno violão de brinquedo, o que faria despertar em mim a paixão pela musica. Por volta dessa época, minha mãe estaria esperando uma menina, minha irmãzinha, e estaríamos todos ansiosos e felizes pela sua iminente chegada, quase como ficaram quando eu estava por vir.

Eu seria um aluno aplicado, o predileto dos professores. Popular e bonito, seria namoradeiro, como diria minha avó. Mas seria no meu décimo-sexto aniversário que levaria para meus pais conhecerem a menina que mudaria a minha vida; que seria a minha vida.

Iria cedo pra faculdade, e a medicina seria o meu curso: meus pais ficariam tremendamente orgulhosos! Eu seria guitarrista de uma banda de rock, composta pelos amigos de infância, e já começaria à agradar uma pequena legião de fãs, o que era o máximo. Minha namorada seria psicóloga. Estamos muito felizes.

No meu aniversário de vinte e um anos, a pediria em casamento. Seria na beira da praia, sob a luz de uma lua surreal e assustadora, de tão cheia. Estaríamos sozinhos, e ela estaria tão bêbada! Mas entenderia a importância da situação. Colocaria-lhe a aliança prateada no dedo, e ela choraria sorrindo. Ali faríamos amor como se tivesse sido a primeira vez, e acordaríamos pela quentura do sol de verão.

Nos casaríamos, e este seria o melhor dia da minha vida. Minha irmã caçula e seu namorado seria os nossos padrinhos. A minha banda tocaria no casório. Ouviria, pela primeira vez, as palavras "eu te amo" nos lábios do meu pai. Eu jamais esqueceria.

Viveríamos numa boa casa, numa ótima convivência, numa maravilhosa vida. Ela ficaria grávida dois anos depois, grávida de duas meninas! Estávamos radiantes. Ela me acordaria à altas horas da madrugada para comprar açaí. Desejos de grávida existem para não serem negados.

O parto. Sem complicações, sem estresses, sem receios. As meninas seriam esperadas. Aguardadas e amadas. Beijaria a testa suada da minha esposa depois do nascimento, e choraria de felicidade com a visão das minhas filhas á dormirem no berçário.

E agradeceríamos à Deus pela dádiva que nos concederia e pelas graças presenteadas.

* * *

Um monstro frio, perceptível e inesperado, surge de algum ponto da escuridão, agarrando minha perna com as garras geladas. Sou assim puxado pra baixo com imensa força, independente dos meus esforços inúteis e dos meus receios mal-nascidos. A dor já me consome, e à ela me submeto.

Houve o frio cortante que subira-me pelas pernas através das garras do monstro, houve o sangue, houve a luz intensa que me cegara momentaneamente. Obrigado á abandonar parcialmente o mundo que um dia o imaginei tépido e agradável, permaneço com o corpo pendurado no meio daquela luz, como se tivesse à beira dum precipício, e ouço choro, e vozes, e exclamações ensurdecedoras - não era pra ser assim, não tão cedo. Inundado por aquela luz que doía, finalmente percebo, talvez um tanto tarde demais: eu estava sendo eliminado. Por ela.

Sinto um leve e extremamente doloroso toque na nuca, e não produzo o mínimo som perante o ataque do monstro, não por já não ter forças para me defender ou defender minha própria e inútil existência, mas por ser eu incapaz da menor façanha de subjugar meu sofrimento. Sinto, através de tal toque, como se minha alma, meu eu ainda incompleto, a fímbria do meu ser estivesse sendo sugado, como se eu tivesse sendo despojado de todo e qualquer fiapo de existência do qual pudesse me agarrar, e eu mergulhava na dor final como se tivesse afundando num lago escuro, triste e muito profundo, tão profundo que eu afundava e afundava, e esquecia de mim mesmo, do breve tempo da minha prisão, das minhas evoluções conforme passavam-se os momentos, das esperanças prometidas, das imaginadas alegrias de dias vindouros. Esqueci-me de tudo, e aos poucos, com dolorosa dificuldade, como a efeméride que chega aos momentos finais de sua patética vida, deixei de existir.

* * *

Irei para uma nova prisão, que desta vez não testemunharei, apesar da minha tola e morta presença: um frasco de formol.