O Milagre
Mal te anunciavas e multidões acorriam de todo o País para te ver e ouvir. Disputavam os ingressos e enchiam recintos e estádios. Tu eras a voz, a presença, o talento. Trazias contigo muita gente para montar o espetáculo, afinar o som, retocar a tua pintura, acertar as luzes… Uma apresentação daquele nível prepara-se com semanas de antecedência e o mais fácil de tudo era vender caro as entradas, definir a sequência das canções, organizar a segurança. Nunca ninguém soube, no entanto, que a voz maravilhosa era, como tu, instável. Nunca aconteceu nos concertos internacionais mas tu sabias que isso poderia, um dia, cair sobre ti e esmagar-te. O teu médico garantia que isso seria improvável e que o pavor que tinhas era um inconsciente desejo de perfeição. Avisaste-os mas viam nisso um pedido extra de atenção e, afinal, por mero profissionalismo, já te dedicavam a suficiente. Naquele dia já estavas, magnífica, no espaço marcado para o início do concerto. Depois de exigir que tudo começasse fez-se um silêncio pesado e a multidão viu as luzes trazerem a tua imagem àquela noite inolvidável. Figura imóvel, petrificada, muda. Um a um calaram-se os instrumentos e alguém diminuiu as luzes do palco. Saíste em braços e, quando entrei no teu camarim, vi, frágil, um ser amedrontado que chorava convulsivamente. Vestido, pintura, penteado, adereços, tudo estava estragado, rasgado ou sujo, impróprio para cena. Lá fora a multidão, ruidosa, não arredava pé. Foi então que alguém te disse: eles só querem a tua voz, vem mesmo assim e canta. E a melodia, que tinhas morta na garganta, renasceu de ti como um milagre.