NA BATALHA DA VIDA, MAIS VALEM AS BOAS COMPANHIAS QUE AS ARMAS.

Sonegado ao pré-conceito por: Angelo Magno


 
Pedro Henrique Marinho Soares Junior é um artista das letras, suas mãos pintam palavras que se transformam em paisagens vistas por milhões de pessoas ao redor do mundo, histórias que comovem, incentivam e dão sentido àqueles que se alimentam desta tão adorada arte.

Quando criança o Sr Marinho, ou melhor, Juninho, como era conhecido na pequena cidade onde nasceu e viveu boa parte da infância, era um menino bastante desajustado, não parecia se encaixar em qualquer paradigma de sua contemporaneidade. No colégio, os colegas o chamavam de “lerdo”, um apelido jocoso, próprio da criteriosa avaliação de qualquer criança.

Criado em uma casa de sete irmãos, sendo ele o quinto, seus pais só se lembravam de sua existência quando fazia alguma traquinagem ou quando tinha que dar banho nos dois irmãos mais novos, não era um ambiente propício ao diálogo, nem mesmo quando chegou à fase do “por que?”. Não tendo oportunidade de questionar aqueles que o rodiavam, Juninho começou a observar o mundo à sua maneira e isso logo se tornou um hábito, digamos, diferente. Costumava ficar horas e horas observando os cenários à sua volta, com olhar distante, meditante, poucos conheciam o som de sua voz, o “lerdo” foi um dos últimos termos a ser usado por aqueles que queriam, de qualquer forma, chamar sua atenção, já que nenhum apelido havia feito suscitar qualquer protesto.

Ao sair de casa, todos os dias às exatas quatro horas da manhã, caminhava na total escuridão da trilha cortada por entre o matagal de sua casa até a estrada de terra onde o ônibus escolar o pegaria, era uma caminhada de aproximadamente quarenta minutos. Quando o ônibus chegava, já vinha lotado de alunos abarrotados na carroceria. Era um velho e barulhento caminhão de carga com uma tarja amarela na porta que dizia “iscolar” (com “i” minúsculo mesmo). O seu Domingos, como era conhecido o velho motorista que já dirigia no tempo dos pais de Juninho, se orgulhava em dizer que aquele era o mais moderno meio de transporte para alunos que havia na região, o que seria até verdade, não fossem os irmãos Nogueira.

Um criado levava os três filhos no carro da família dona daquelas terras, diziam que eram latifundiários, mas ninguém sabia ou tinha coragem de perguntar o que isso significava. Como costumavam sair de casa mais tarde, sempre era possível os ver passando em alta velocidade, deixando uma densa parede de poeira no caminho, não fosse a experiência do seu Domingos, seria impossível transitar por pelo menos quinze minutos. Todos tossiam e escondiam a cabeça dentro da camisa na busca de partículas de ar puro, menos o lerdo, que colocava as duas mãos nos olhos em formato de binóculo e olhava para a luz do sol cristalizada pelo barro flutuante, nem os palavrões do velho motorista conseguiam tirar sua atenção.

Todos odiavam aqueles três que estavam sempre ostentando as melhores roupas, os melhores cadernos, e claro, as melhores notas validadas pelas mãos dos mesmos professores que os davam aulas de reforço com os préstimos da família. Na hora da merenda, faziam questão de abrir suas caixas de guloseimas diante dos olhos famintos dos que todos os dias bebiam a sagrada sopa da dona Sônia, cozinheira mor da escola.

Em um belo dia, mais precisamente no dia 16 de Julho daquele mesmo ano, antes de ser decretado feriado municipal em homengem à fundação Marinho Soares, Juninho entrou na cantina correndo velozmente puxando um barbante cuja ponta estava dentro da boca de uma galinha, matéria-prima da sopa de dona Sônia. A explicação está em um dos muitos desajustes do garoto que costumava pegar iscas na plantação pela manhã, como lagartixas, e amarrar em uma linha fina e esta, por sua vez, ligada num barbante. O garoto então deixava a isca à mostra e se escondia, quando a inocente ave abocanhava e engolia a preza, o menino malino rasgava na carreira puxando o alvo de sua diversão que se debatia desesperadamente.

Neste dia, tudo corria como planejado, até que Juninho se estabacasse na mesa onde os irmãos Nogueira estavam se deliciando com mais uma farta refeição, as lancheiras decolaram acompanhadas pelos olhares arregalados de todos os alunos e funcionários presentes. Antes que qualquer reação pudesse ser articulada, pedaços de sanduiches, doces e sucos estavam esparramados no chão. Um silêncio sepulcral invadiu o recinto, até a galinha parecia ter entendido o desastre que se instalou na cantina da senhora de quadris largos que assassinara seus ancestrais.

Os segundos pareciam horas, o pátio da cantina estava em modo “pause” até que, Juninho lentamente começou a se levantar, foi quando todos perceberam que o mundo continuava girando e como se alguém apertasse o “play” começaram todos a rir ao mesmo tempo da cara dos irmãos petulantes, dedos estavam em riste, frases de chacota como: - “Nogueiraaaaaa... cadê a merendeiraaaaa!! – ecoavam como sinos da liberdade em berço esplêndido, alguns jogavam copos secos de sopa nos irmãos que ficaram acoados com a situação, todo o ódio contido e toda a inveja retraída foram exauridos em tom maior do tenor ao soprano.

Os irmãos Nogueira estavam sendo fuzilados em praça pública e sem direito a defesa ou julgamento, o tribunal infantil já os sentenciara à vergonha absoluta. Seguindo os passos dos primeiros, outros atiravam o que podiam nos meninos, menos Juninho, que olhava para os três, completamente imóvel.

Como em qualquer ato de linchamento, este não durou mais que alguns segundos, até que ninguém visse mais graça em aplacar sua ira à custa dos bastardos colegas. Pouco a pouco os insultos iam se atenuando e o espaço aéreo ficava cada vez menos congestionado de objetos voadores muitas vezes não identificados, até que não se ouvisse mais do que tímidas risadas e comentários diminutos.

Juninho caminhou lentamente em direção à dona Sônia que ainda estava com as duas mãos agarradas nos cabelos como se os quisesse arrancar à força e que, pela sua expressão facial, parecia que estava quase conseguindo. O garoto lerdo da escola municipal pegou uma concha, encheu três copos de sopa e, com bastante dificuldade, os levou silenciosamente até os irmãos. Os últimos protestos deram lugar à quietude da voz do pequeno rapaz que ecoou pelos tímpanos vermelhos de ódio dos pequenos algozes – “desculpa!” – foi a única onda sonora a vagar pelo ambiente, esmurrando a consciência de cada alma silenciosa do recinto. A vergonha estava estampada nos rostos em tom vermelho reluzente.

Poucos dias depois, os alunos daquela humilde escola municipal estavam indo para a escola em um ônibus novinho em folha, dona Sônia estava com mais assistentes e seus clientes podiam até escolher um sagrado pãozinho com presunto para acompanhar sua famosa sopa, teve até um sábado que todos os alunos puderam pintar a fachada da escola com o “dotô” Nogueira e seus filhos ao som de muita música.

Quanto a Juninho, passou a ser visto com frequência na casa daquela família nobre e na companhia dos irmãos Nogueira. Quando se formou em letras na cidade grande, o agora Sr. Marinho voltou à sua terra natal para, com a ajuda do prefeito e da população local, que havia se transformado em grande produtora de café, construir um centro educacional e esportivo que, após muitos protestos do então famoso autor, acabou ficando com seu nome.

Hoje, este renomado escritor está lançando um livro e dando autógrafos para uma fila que espera ansiosamente para receber uma cópia de suas mãos, mas ao invés de assinar o nome ou fazer uma dedicatória, aquele senhor de largo sorriso escreve na contracapa de cada cópia vendida a frase que resume o que ensinou e aprendeu naquela antiga cantina de sua escola no interior: “Na batalha da vida, mais valem as boas companhias que as armas.



Estocado em: CRÔNICAS
Leia também: COMO ERRADICAR O MAL

Angelo Magno
Enviado por Angelo Magno em 01/04/2013
Reeditado em 03/04/2013
Código do texto: T4217766
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