Minha Mãe, a Violinista
Eu não entendia nada do que estava acontecendo. Eu tinha apenas 6 anos, mas mesmo assim minha mãe fez questão que eu assistisse à sua apresentação, o que era muito importante para ela. Um dos maiores violinistas do mundo estava visitando a nossa cidade, e ele queria conhecer os jovens talentos de lá. Havia centenas de violinistas que queriam mostrar suas habilidades a ele. Um monte de gente estranha, e eu ali sentado com o meu terninho e a minha gravata, enquanto todas aquelas pessoas das altas camadas da sociedade assistiam aqueles jovens bem-vestidos que pra mim estavam apenas arranhando violinos. Chegou uma hora em que minha mãe me disse:
- Eu tenho que ir agora, você me espera aqui só um pouquinho, filhinho? - Antes que eu pudesse responder alguma coisa, ela já havia se levantado e estava indo em direção ao palco, me deixando sozinho ali na mesa com todas aquelas pessoas esquisitas ao meu redor. Permaneci sentado e fiquei apenas observando.
Quando uma pessoa terminava de tocar, todos aplaudiam. Eu não entendia nada. Pra mim estavam apenas arranhando as cordas do violino com um arco, qualquer um poderia fazer isso. Afinal, uma criança de apenas seis anos não iria mesmo entender essas coisas. Alguns minutos depois vi minha mãe subir no palco diante de todos. Como era minha mãe, naturalmente, eu prestei mais atenção nela do que na maioria dos outros violinistas. Ela fez exatamente a mesma coisa que todos os outros haviam feito: sentou-se ali no banquinho, apoiou o violino no queixo e começou a arranhá-lo com aquele arco enorme. O que ela estava tocando na verdade era a Ária na corda sol de Johann Sebastian Bach. Eu não entendia nada de violinos, mas por ser minha mãe, aos meus olhos era ela quem tocava melhor. Entretanto, parece que essa não foi apenas o ponto de vista de uma criança de seis anos leiga em música clássica, mas também de um dos maiores violinistas do mundo ali presentes. Pude notar o seu sorriso durante toda a performance dela. Quando ela terminou, todos aplaudiram, inclusive eu, mas notei que empolgação do público foi maior que a maioria das outras vezes, e alguns se levantaram de seus lugares, pois faziam questão de aplaudir em pé. Percebi também que havia uma mulher muito bonita, uma ruiva com um vestido azul muito bem adornado, que estava sentada do outro lado do salão. Ela também aplaudiu, mas ela não sorria. Sua expressão era fria, parecia que ela aplaudia apenas por uma função mecânica. E sua expressão durante a apresentação também era muito insensível. Minha mãe foi uma das últimas a se apresentar, mas, quando o último violinista desceu do palco, o responsável pelo evento ficou um tempo sussurrando com o tal violinista ali presente. Entrementes, minha mãe voltou para a mesa em que estávamos sentados, muito eufórica e com um grande sorriso no rosto.
- E então, como eu fui? - Ela perguntou, muito animada.
- Muito bem, mamãe. - Foi o que pude responder, não querendo decepcioná-la por dizer que pra mim ela só estava arranhando um violino.
- Que ótimo! - disse ela. Logo depois o homem começou a falar ao microfone:
- Muito obrigado a todos que se apresentaram esta noite. Todos tocaram muito bem, mas só pode haver um vencedor. Todos os jurados já fizeram a sua avaliação, inclusive nosso convidado especial. E é com prazer que anuncio que o melhor violinista da noite é: Monica Sheri!
E, por acaso, Monica Sheri é o nome da minha mãe. Pra ela foi um susto. Eu pude ver em sua expressão o quanto ela ficou surpresa. Lacrimejando de emoção, ela se levantou e andou novamente até o palco, enquanto todos a aplaudiam, menos aquela mulher de antes, que dessa vez estava com uma expressão de raiva que chegou a me dar medo. Sua face demonstrava um ódio profundo. Depois de ficar olhando por alguns longos minutos enquanto todos os convidados cumprimentavam e davam flores à minha mãe, ela saiu furiosa do salão. Mas, enquanto caminhava, pôde ouvir atrás de si um grito:
- Penélope! Penélope! - Era minha mãe que chamava. Ela hesitou e olhou para trás, com um certo receio. Lá do outro lado do salão, minha mãe disse:
- Você não vai me dar os parabéns? - De novo aquela expressão amarga apareceu no rosto de Penélope. Ela se virou e continuou seguindo seu caminho. Ali na saída do salão havia um cavalheiro muito bem-vestido que aparentemente a estava esperando. Quando ela chegou perto da porta, os dois ficaram se encarando por um tempo. Tudo que ele pôde dizer foi:
- Sinto muito, Penélope. - Então ela ficou triste. Muito triste. Mordeu o lábio inferior com muita força para não chorar, e depois saiu correndo do salão. Tornei a olhar para minha mãe. Ela também ficou triste de ver aquela cena, mas logo sorriu de novo quando um cavalheiro muito simpático lhe ofereceu outro buquê.
Isso é tudo que me lembro daquela noite. E dez anos se passaram.
Acordei numa bela manhã ensolarada de sábado, me levantei da cama, tomei um banho e escovei os dentes, depois desci para a cozinha. Minha mãe estava usando um avental com flores estampadas frente ao fogão.
- Bom dia, mamãe.
- Bom dia.
- Que cheiro gostoso. É panqueca?
- Sim. - Respondeu ela, sorrindo.
- Você já comprou o jornal de hoje? - Perguntei, desviando sua atenção para um assunto trivial.
- Sim. Está em cima da mesa.
- Obrigado. - Peguei o jornal, me sentei e comecei a ler. Muito entretido estava eu lendo um artigo sobre o Mercado de Ações quando minha mãe pôs em cima da mesa uma travessa cheia de panquecas, sentou-se na minha frente do outro lado da mesa e então perguntou:
- Você se lembra de uma mulher chamada Penélope Huss?
- Penélope Huss? Não. Quem é essa? Alguma atriz ou cantora? - Ela deu uma risadinha ingênua.
- Não é nada disso. Penélope Huss é uma amiga minha de longa data. Ela assistiu a uma apresentação minha dez anos atrás, na qual você também estava presente.- Quando ela disse isso, tive um fluxo repentino de pensamentos, e me lembrei do que havia acontecido naquele dia exatamente como relatei há pouco.
- Ah! Sim! Agora eu me lembro. O que tem ela? - Perguntei. Minha mãe deu um grande sorriso, o que não era raro para ela.
- Eu soube que ela chegou à cidade ontem à noite. Espero que ela tenha vindo para assistir ao meu concerto de hoje, isso significaria muito para mim. - Pela empolgação com que ela dizia essas palavras, não tive dúvidas de que falava a verdade.
Ficou dispersa por um tempo, olhando pela janela. Eu nada respondi, e apenas comecei a saborear as panquecas. Logo ela se voltou para mim e perguntou:
- E você também vai, certo?
- Ah, mamãe - falei, em tom trivial - Você sabe que eu não me interesso por essas coisas. Me desculpe, mas eu não quero ir.
- Eu entendo. - ela disse, um pouco decepcionada - mas eu gostaria muito que meu único filho entendesse a minha paixão pelo violino.
- Bem - respondi - Ninguém pode forçar as pessoas a gostar de nada, certo? Desde que eu era criança tenho te acompanhado em todas as suas apresentações, mamãe, mas hoje eu tenho outros planos. Você entende que eu não vou. Mesmo assim, espero que a sua amiga compareça. - Dito isso, ela não respondeu mais nada, ficou apenas me olhando.
Terminei de tomar meu café da manhã tranquilamente, me levantei e me retirei em seguida. Não sentia remorso pelo que havia feito. Eu já tinha dezesseis anos e minha mãe deveria entender que eu não tinha obrigação de acompanhá-la em todos os seus concertos. Enfim, o dia decorreu normalmente. Depois do café da manhã fui jogar tênis no clube como tinha o costume de fazer regularmente antes disso. Mas, durante as partidas um assunto que frequentemente me vinha à cabeça era qual o significado que teria a visita de Penélope Huss ao concerto de minha mãe. Ela tinha me dito que eram amigas desde a juventude, e também tinha minha lembrança do concerto de dez anos antes, mas fora isso eu não sabia nada sobre a relação de Monica Sheri e Penélope Huss. Enfim, isso não me era importante então decidi esquecer o assunto.
Quando cheguei em casa, logo que entrei na sala de estar, o telefone tocou. Prontifiquei-me a atender. Era meu amigo Yuri que falava.
- Arthur - disse ele pelo telefone - você tem disponibilidade de vir à minha casa esta noite?
- Sim. - Respondi. - Sem problemas, não tenho nenhum compromisso esta noite. - Foi inevitável pensar no concerto quando disse essas palavras, sem nem mesmo me dar conta, mas eu havia dito que não iria, mesmo. - A que horas você quer que eu esteja aí?
- Esteja aqui às seis horas, por favor. Quero te mostrar algumas coisas que descobri naquele jogo de videogame.
- Ah! Sim. Ótimo. Estarei aí. - Depois disso desliguei o telefone. A noite se aproximou rápido. Quando me dei conta já era hora de eu me arrumar. Assim o fiz. Tomei banho, troquei de roupa e fui avisar minha mãe que eu estava saindo. Quando cheguei ao seu quarto, ela estava usando um belíssimo vestido azul importado da Europa e passando o perfume francês.
- Eu também já vou sair - disse ela.
- Ah! Já está indo ao concerto?
- Sim. Começa daqui a pouco. Parece que a casa vai ficar vazia.
- Está certo - respondi, como se esse fato em nada me afetasse. - Então eu já estou indo. Tchau. - Ela me fitou por um momento, um tanto espantada.
Sim, ela esperava que eu fosse com ela. Mas, mais uma vez optei por não ir. Saí de casa e deixei-a sozinha. Fui logo para a casa de meu amigo, para que pudéssemos jogar videogames. Tão entretidos ficamos os dois que nem vimos o tempo passar. Quando estávamos jogando na sala, a irmã de Yuri passou por lá e notou então minha presença.
- Arthur - disse ela, assim que me viu - sua mãe não tem um concerto hoje?
- Sim. - respondi, sem largar o joystick.
- E você não foi? - Ela tornou a perguntar. - Esse é um concerto muito importante para ela.
- Sim, eu sei. - falei. - É por causa da amiga dela que foi visitar o concerto, não é? Penélope Huss? Espero que ela esteja lá. - Na hora não soube por que, mas minhas palavras deixaram a garota espantada.
- Espera? - disse ela, inconformada. - Você não sabe que sua mãe pode estar em perigo? - Naquele momento sim eu larguei o joystick, esqueci o jogo e olhei para ela.
- Por quê? - Perguntei.
- Você conhece essa mulher? - Perguntou ela.
- Eu a vi num concerto da minha mãe dez anos atrás.
- Então você deveria saber de tudo! - disse ela, inconformada. Levantei-me do sofá, me dando conta da gravidade da situação. - Escute. - Prosseguiu ela. - O concerto que você me falou deve ter sido na ocasião em que um dos maiores violinistas do mundo esteve na cidade, estou certa?
- Sim. - respondi.
- Penélope estava naquela época apaixonada por um aristocrata. Já fazia anos que ela pegava no pé dele. Ele não a aceitou de jeito nenhum. Mas depois de muito Penélope insistir, ele consentiu em casar com ela.
- E por que ele faria isso? - perguntou Yuri.
- Porque ele, como era um rapaz da alta sociedade, disse que só se casaria com uma mulher refinada e que cumprisse todos os seus requisitos. Penélope não mediu esforços para satisfazer esses requisitos, mas, por mais que se esforçasse, ele não a aceitava. - Houve uma breve pausa. - Vocês dois devem concordar comigo que uma mulher que toca violino é muito elegante, certo?
- Sim. - respondemos juntos.
- Pois bem. Quando o tal aristocrata soube que aquele violinista famoso viria à nossa cidade, ele deu sua palavra à Penélope que se ela conseguisse ganhar o concurso, ele se casaria com ela.
- Mas que idiota! - disse Yuri, com desprezo.
- Talvez, Yuri, ou talvez ele queria apenas se livrar dela de uma vez.
- Por quê? Ele sabia que ela não iria conseguir ganhar?
- Isso eu não sei dizer. - Falou a garota. - Mas o fato é que sua mãe, em total ignorância dessa história toda, acabou por ganhar o concurso. - Tive um súbito choque. Dei-me conta então de que era aquele rapaz parado frente à porta do salão no concerto de dez anos antes.
- Mas se as duas eram amigas, por que Penélope não pediu que minha mãe a deixasse ganhar? Seria por uma boa causa.
- Hipótese 1: Ela queria se considerar digna de conquistar o coração do homem que ama com honestidade. - Raciocinou Yuri. - Hipótese 2: ela achou que mesmo que eliminasse Monica Sheri como concorrente, isso não lhe asseguraria a vitória, visto haver muitos outros violinistas, então achou que não serviria de nada pedir uma coisa dessas.
- Bem pensado, Yuri. - falou a irmã. - Mas a questão é que depois que sua mãe venceu o concurso o aristocrata disse a Penélope que não havia mais chances deles ficarem juntos. Sua mãe destruiu o sonho dela, Arthur?
- E daí? - Disse, inconformado - ela não estava ciente da situação, e nem teve culpa de nada. Muitas vezes precisamos destruir os sonhos dos outros para alcançar os nossos próprios.
- Eu não estou culpando ninguém, Arthur. Mas soube que, uns quatro anos depois, o cara acabou por se casar com uma donzela que também era da alta sociedade. Penélope tinha se mudado já fazia tempo, porque não suportaria mais viver na mesma cidade que Monica Sheri. Aparentemente a frustração amorosa foi mais forte que a amizade das duas.
- Entendo. - disse, depois de me acalmar. - Mas ainda não entendi, como isso põe minha mãe em perigo?
- Penélope matou o casal assim que soube que seu antigo bem-amado havia se casado. Invadiu a casa deles e matou os dois. Ela deve ser uma pessoa muito rancorosa. Pense na possibilidade dela fazer a mesma coisa com a pessoa que a impediu, ainda que sem querer, que ela se casasse com o homem que amava!
- Mas. . . - gaguejei. - Isso é só uma possibilidade, certo? Afinal, se Penélope é assim tão vingativa, não seria mais coerente que ela tivesse feito isso dez anos atrás?
- Não necessariamente - disse Yuri. - Talvez ela só tenha se tornado rancorosa e vingativa depois que o cara casou com outra mulher. Por isso não sabemos o que ela pode fazer agora que está na cidade. - Quando ouvi essas palavras, entrei em desespero.
- Precisamos fazer alguma coisa! - gritei.
- Calma, Arthur, fique calmo. - Yuri falou, pondo as mãos nos meus ombros. - Você sabe onde é o concerto?
- Sei.
- Então vamos pra lá. Nós dois. Meu pai tem uma arma que ele guarda para se defender. Eu vou pegá-la. - Quando ele estava se retirando, não pôde deixar de perguntar:
- Como você sabe todas essas coisas, mana? - ela deu um sorriso discreto e respondeu:
- Sou uma grande fã de Monica Sheri.
Pouco depois disso, Yuri chegou com um sobretudo que ele usava para esconder o revólver. Saímos imediatamente de casa, montamos em sua moto e fomos rapidamente até o local do concerto. Cortamos o trânsito várias vezes, passamos no meio de carros em alta velocidade e atravessamos faróis vermelhos com a moto, já que o assunto em questão era mais urgente. Mesmo assim demorou quase uma hora para chegarmos ao local do concerto. Havia uma grande cúpula em que se destacavam as palavras brilhosas:
“Monica Sheri in concert”
- Eu só posso vir até aqui. - Falou Yuri. - Não vão me deixar entrar com a arma, então pegue-a e vá você, Arthur! - Ele tirou o sobretudo e mo entregou. Vesti-o e apalpei a arma no bolso.
- Está bem. - Respondi.
- Boa sorte. - disse Yuri.
Corri até a cúpula. Dois seguranças de mais de dois metros estavam parados em frente à porta. Cheguei apressadamente até eles e disse:
- Eu sou filho dela! - Eles ficaram apenas olhando um para o outro. - Me deixem entrar, por favor! - supliquei, com lágrimas nos olhos.
- Desculpe, rapaz, você deve estar louco para ver o concerto, mas não podemos te deixar entrar sem ingresso. E não adianta chorar. - Falou o outro, rindo ironicamente.
-Que droga! - Exclamei. Mostrei a eles minha identidade, se isso não fosse prova suficiente. Quando o segurança leu as palavras “Mãe: Monica Sheri”, deu um passo para trás.
- Oh! Me desculpe. Pode passar, por favor. - Ele desprendeu a corrente e eu passei.
Como era de se esperar, havia um detector de metais ali na frente, mas como o concerto estava em andamento, talvez estivesse desligado. Orei aos céus que fosse assim. Que ironia! Ora, eu não iria matar ninguém, mas usaria minha arma apenas se necessário, e evitaria a todo custo matar, mas se fosse necessário, mataria. Pela minha mãe eu estaria disposto a ir para a cadeia. Passei tranquilamente e não ouvi nenhum apito. Ótimo! Percebendo que não havia perigo, corri até o salão.
Muita gente bem vestida, como era de se esperar. Muitos com taças nas mãos cheias de bebidas como vinhos e champagnes caros. Eu era o único ali que não estava de roupa social. Fui abrindo caminho entre as pessoas e rapidamente consegui chegar perto do palco. Lá estava ela: minha mãe, a violinista, tocando muito elegantemente. Parecia estar tudo bem. Mas eu não devia baixar a guarda; coloquei a mão sobre a arma por cima do sobretudo e olhei em volta. Não demorei meio segundo para reconhecê-la. Era ela! Sim, ela mesma, Penélope Huss! Sua aparência não havia mudado absolutamente nada em dez anos, por isso a reconheci sem problemas. Coloquei a mão dentro do bolso e apontei a jaqueta para ela. Quase cometo o pior erro da minha vida. Ela não tinha feito nada. Nem sequer estava com aquela pavorosa expressão de dez anos antes. Talvez não tivesse nenhuma má intenção, mas queria apenas assistir ao concerto. Abaixei a arma que não fora tirada da jaqueta nem por um segundo. Mas não prestei atenção na música; antes, fiquei com os olhos fixos em Penélope.
Minha mãe terminou de tocar a música que estava em andamento quando entrei no salão. Todos aplaudiram, inclusive Penélope. Para não levantar suspeitas, aplaudi também.
- Bem, esta é a última música da noite. - minha mãe falou, sorridente como sempre.
Tornou a apoiar o violino no queixo e, pondo o arco nas cordas. . . ah! Que ironia do Destino! Era a Ária na corda sol de Bach, exatamente a mesma música com que ganhou aquela exibição dez anos antes. Por que tocar Ária na corda sol de Bach justo naquela hora? Foi por acaso? Ou foi uma expressão implícita de seu desejo de que Penélope estivesse assistindo ao concerto? Talvez ela já tivesse notado que Penélope estava ali e por isso dedicou essa música a ela. Não pude deixar de notar a expressão de Penélope. Quando a olhei, ela estava chorando. Por que chorava? Simplesmente porque a música era bonita? Ou a música lhe trazia tristes lembranças? A resposta ficou clara quando logo em seguida surgiu em seu rosto aquela medonha expressão de ódio e rancor. Aquela mesma que eu conhecia de dez anos antes.
Olhei atentamente para Penélope durante toda a performance da Ária na corda sol. Quando a música terminou, todos aplaudiram vividamente e minha mãe, como de costume, desceu do palco e todos aqueles ali presentes correram entusiasmados em sua direção para cumprimentá-la e dar-lhe buquês. Penélope também correu na direção dela enquanto ela estava rodeada de pessoas admiradas com seu talento. Também eu tentei me aproximar, mas não consegui, porque as pessoas estavam muito aglomeradas ao redor dela, por isso não consegui abrir caminho tão facilmente como quando entrei.
- Com licença, com licença! - eu exclamava, me esgueirando entre as pessoas, mas parecia que ninguém me ouvia, porque a euforia era muito grande.
O pior de tudo era que Penélope estava mais perto da minha mãe do que eu. Rapidamente, ela conseguiu alcançá-la. Minha mãe estava com um grande buquê de flores nos braços e agradecia a todos que a cumprimentavam, até que aconteceu de seu olhar cruzar com o olhar de Penélope. As duas ficaram ainda um longo tempo se entreolhando. Notei que Penélope colocou a mão dentro do bolso de seu casaco. Eu fiquei sem reação naquela hora. Tirei a minha arma de dentro do sobretudo e a empunhei claramente, mas ninguém notou porque todos olhavam para minha mãe e Penélope.
- Penélope. . . - murmurou Monica. Ela ainda repetiu o nome duas ou três vezes.
- Monica! - Vociferou Penélope, pronta para tirar a mão de seu casaco. Os olhos de Monica se encheram de lágrimas. Ela jogou ao alto buquê, e as pétalas das flores se espalharam rapidamente pelo salão inteiro, o que obstruiu ainda mais a minha visão.
- Significa muito pra mim. . . que você tenha vindo! - Minha mãe exclamou, um instante antes de se lançar aos braços de Penélope Huss e abraçá-la ternamente.
Muitos espectadores ficaram emocionados com a cena, embora nem soubessem do que se tratava. Também eu me emocionei. Mas olhei para o semblante de Penélope, e ela parecia aturdida. Relutava em tirar a mão do bolso do casaco, mas, começou a tirar vagarosamente a mão trêmula de dentro de seu belo casaco de pele. Apontei o fuzil para ela no mesmo momento. Eu tinha conseguido me aproximar quando todos pararam para olhá-las então tinha uma mira boa agora. Se Penélope tentasse alguma coisa, eu poderia facilmente impedir, mas sem causar algum ferimento fatal. A mão enfim saiu do casaco, e não segurava objeto algum, mas apenas subiu até as costas de minha mãe e a envolveu, correspondendo ao seu caloroso abraço. Respirei aliviado e guardei a arma. Sorri. Não tinha como não ficar feliz. Depois que as duas se soltaram de seu longo e afetuoso abraço, Penélope, que também estava com os olhos transbordando, disse:
- Tenho que dizer algo que eu deveria ter-lhe dito dez anos atrás, Monica. - Minha mãe deu um grande sorriso, em resposta.
- O que é, Penélope? - Penélope também sorriu, e disse, com orgulho:
- Meus parabéns, Monica.
O ódio e o rancor haviam desaparecido. Definitivamente.