Dia de malhar Judas
 
O governador, o prefeito da capital, um senador e um deputado federal, ora aliados, ora adversários políticos entre si, dependendo das circunstâncias, amanheceram dividindo a mesma mesa num aparentemente animado carteado. Todos com suas cartas nas mãos e uma em cada manga.
 
A três passos dali, encostado no poste, um ex-presidente da República a tudo assistia. Rosto coberto por uma espessa barba, feita com a crina cedida por um generoso cavalo, e um sugestivo nariz de Pinóquio. A seus pés, um pequeno cartaz: EU NÃO SEI DE NADA.
 
A turma passou a Sexta-feira Santa confeccionando os bonecos, tentando imprimir o máximo de fidelidade às feições, de forma que todos pudessem ser identificados com facilidade pelo povo. Nenhum dos artistas era profissional nessa arte. Tinham seus próprios ofícios e apenas procuravam se divertir e oferecer aos vizinhos a oportunidade de umas boas risadas, por um lado, e de extravasar descontentamentos e decepções, por outro. Alguns, a raiva contida.
 
As roupas, como sempre, foram coletadas entre a vizinhança. Como nesse ano os cindo Judas eram políticos, foi necessário representá-los de terno e gravata. As peças foram recheadas com uma mistura de capim seco e serragem. Mãos, pés, cabeças e pescoços deram mais trabalho. Precisaram ser cortados e costurados. Os rostos, desenhados e pintados.
 
Claro que as indumentárias não estavam à altura dos representados, pois tinham servido durante anos a fio a pessoas de renda bem inferior à deles. Portanto, não havia nenhum terno de grife e o estado dos panos demonstrava o tempo vivido diariamente no batente dos bancos, repartições públicas e escritórios em geral.
 
Sábado de Aleluia. A piazada, mesmo não precisando ir à escola, levantou cedo ante a expectativa da diversão. Muitos nem sabiam direito quem eram os ilustres homenageados. Tinham dificuldade de entender as funções de cada um na vida real. Mas isso não importava. Primeiro foram ao reduzido descampado para apreciar a cena montada. Em todo momento, tinha alguém dando explicações, apontando quem era um e outro, o que tinham feito de mal ao povo. Tal como Judas, eles eram considerados traidores. Por isso mereciam castigo severo. E se alguma qualidade porventura algum deles escondia, nessa ocasião ela não seria lembrada. Era o dia da vingança, ou justiça, como alguns preferiam. Assim, só os defeitos e malfeitos vinham à tona.
 
A manhã demorava a passar. As crianças ansiosas. Depois de examinarem os condenados lá no largo, saíram à procura das armas. Cada um queria se apresentar ao meio-dia, hora da malhação, com a melhor que pudesse encontrar. Valia todo tipo de pau. Roliço, quadrado, ripa de cerca. Necessário que fosse resistente para não se quebrar com o rigor das bordoadas.
 
Os pais recomendavam. Bata valendo no presidente. Acerte a cabeça do senador, mas cuide para não machucar o amigo. O governador deve apanhar mais. O deputado, então, nem se fala. Desça o cacete nele com vontade. Pau no prefeito, que prometeu asfaltar o bairro inteiro na campanha e nunca mais apareceu.
 
Às onze horas os justiceiros já se aglomeravam diante dos bonecos, cada um com seu cacete tinindo na mão, fazendo coceira. Pobre de quem era visto com relógio. Tinha de informar as horas de cinco em cinco minutos.
 
Finalmente, meio-dia. Os organizadores deitaram os cinco Judas no chão. Amarraram as cordas com cuidado, passando um grande laço sob os braços de cada um deles, de modo que a brincadeira pudesse durar bastante tempo até o esfacelamento quase total dos bonecos. Três meninos e duas meninas candidataram-se a puxadores. Posicionaram-se na rua, lado a lado, segurando as respectivas cordas. Dada a largada, puseram-se a trotar, puxando os políticos para uma volta no quarteirão. A piazada atrás, batendo para valer. Acompanhavam o trote mudando de posição, de forma a não perder a chance de bater nos cinco durante o percurso. Impossível saber quem se divertia mais, se eram mesmo os petizes vingadores ou os adultos que assistiam nas portas e janelas das casas, bares e lojas, gritando palavras de incentivo e desabafo.
 
Pedaços de tecido e porções de capim e serragem iam ficando entre as pedras do caminho. De volta ao ponto de origem, os Judas estavam em frangalhos. A um faltavam os pés, a outro uma perna inteira, a um terceiro partes dos braços. O ex-presidente teve mais sorte. Apanhou bastante mas chegou ao destino totalmente preservado, como se tivesse sido protegido por estranhas forças ocultas. Os cinco foram amontoados no meio do descampado de terra castanha. Um dos organizadores despejou sobre eles uma garrafa de querosene. Outro ateou fogo. Sob aplausos e gritos da molecada, os bonecos ardiam. Mais tarde, assim como as chamas se esvaeciam, os meninos se aquietavam. Um pouco tristes com o fim da brincadeira, mas de alma lavada. Esperariam um ano para a próxima malhação, quando novos Judas despontariam nos noticiários com as velhas traições. Quem sabe outros políticos, um técnico ou cartola do futebol, talvez um estuprador ou assassino. Ou então ladrão de verbas públicas ou corrupto incorrigível.
 
Os cinco Judas daquele dia identificaram-se nos telejornais da noite, esparramados confortavelmente em suas poltronas. Sentiram-se lisonjeados com a lembrança e riram muito. Sabiam que a população os amava e nas próximas eleições iria novamente reelegê-los ou votaria neles para novos cargos.

O povo daquele país imaginário não tinha jeito. Além da mente ingênua, possuía bom coração e memória fraca.


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N. do A. - Na ilustração, O Beijo de Judas de Jean Bourdichon (França, 1457-1521).
 
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/03/2013
Reeditado em 03/04/2021
Código do texto: T4214820
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