Diário de Mamãe

O sono era profundo. O sonho era intenso. Tão logo se deu conta de que estava apenas sonhando, acordou, abriu os olhos e sentou-se em sua cama. Contemplou o seu quarto tão conhecido durante alguns minutos até que pudesse afirmar com certeza:

- Foi só um sonho.

Levantou-se da cama e notou que havia um pedaço de papel sobre o seu criado-mudo. Era uma mensagem.

“Querida, fui chamada pela empresa de última hora para atender a um cliente muito importante de outra cidade. Tive que sair às pressas. Devo voltar à noite. Por favor, passe o aspirador de pó em todos os cômodos da casa. Eu mesma iria fazer isso, mas esse compromisso é mais importante, então por favor faça isso por mim. Tem leite na geladeira.

Mamãe”

Nada de surpreendente para ela. Sua mãe era uma representante importante da empresa em que trabalhava e muitas vezes tinha que viajar para outras cidades e até mesmo para outro estado em alguns casos para atender clientes importantes. Ela estava sozinha em casa naquele sábado ensolarado. Naquela casa eram apenas as duas, a mãe e a filha. Ela havia se divorciado do pai quatro anos antes. Era uma mulher batalhadora e corajosa que se viu na obrigação de criar a sua filha única por conta própria depois do divórcio.

A garota foi para a cozinha, tomou seu café da manhã tranquilamente e depois se sentou no sofá da sala para assistir aos sagrados desenhos da televisão que eram exibidos todo sábado de manhã. Ficou um bom tempo assistindo desenhos até se lembrar de que tinha um compromisso. Ligou o aspirador de pó e começou a limpar com ele todos os cômodos da casa. Começou pela sala de estar, depois o corredor e a cozinha, e por fim o seu quarto. Guardou o aspirador no quarto e resolveu ir limpar os dois banheiros da casa. Foi uma limpeza árdua, mas depois disso ela se lembrou que havia esquecido o aspirador no próprio quarto. Tinha também esquecido de aspirar o quarto de sua mãe, já que o bilhete dizia que ela deveria limpar todos os cômodos da casa.

- Parece que a mamãe saiu com tanta pressa que não teve tempo nem de fazer a cama. - afirmou, ao entrar no quarto da mãe, que permanecia com as janelas fechadas, a cama desarrumada e as portas do guarda-roupa abertas, tamanha a pressa com que saiu.

Quando estava usando o aspirador para remover a poeira do chão do quarto esbarrou acidentalmente no criado-mudo da mãe. Teve a impressão de que algo havia caído dele. Desligou o aparelho e procurou cautelosamente pelo chão. De fato, ela havia derrubado algo do criado-mudo. Era um objeto pequeno. Na verdade, uma chave. Ela pegou a chave e a pôs no bolso, pois tinha receio de que ela acabasse sendo aspirada ou mesmo de perdê-la, porque ela era muito pequena. Depois de terminar de limpar o quarto da mãe, arrumou a cama dela e se aproximou do guarda-roupa para fechá-lo, mas ao se aproximar, notou que havia algo atrás de suas roupas. Era alguma coisa enrolada numa fronha de travesseiro. Ela estendeu as mãos movida pela curiosidade e pegou o objeto. Era um livro. Mas estava lacrado. Um livro com um lacre certamente era alguma coisa muito especial. Ela queria, pelo menos, saber de que se tratava. Levou o livro para o seu quarto. As capas estavam muito bem presas, nem tinha como olhar as pontas de cada página. Deixou o livro sobre a cama e começou a pensar. Deveria haver alguma forma de abri-lo. Talvez fosse melhor apenas perguntar sobre isso à sua mãe. Mas, se o livro estava com lacre, seria alguma coisa que ela queria ocultar da filha. Se fosse esse o caso, ela se via com todo o direito de saber o conteúdo daquele livro, pois entre mãe e filha não poderia haver segredo nenhum. A própria mãe costumava dizer que as duas eram um único ser e que entre elas jamais haveria qualquer segredo. Estaria a mãe enganando-a todo esse tempo?

Pensando nisso, ela foi até a cozinha pegar uma faca. Iria violar o lacre abruptamente. Se o fizesse, é claro que a mãe iria notar, porém esse era o único jeito de saber qual era o conteúdo do livro. Voltou para o seu quarto com uma faca de cozinha na mão. Segurou o livro com uma mão e com a outro esgueirou a lâmina da faca entre as páginas e o lacre. Estava prestes a rasgar o lacre quando se lembrou da chave que achara no quarto da mãe. Soltou a faca imediatamente. Era uma possibilidade. Se não funcionasse, ela usaria então a faca de cozinha. Pegou a minúscula chave que permanecera em seu bolso e a encaixou na fechadura. O encaixe foi perfeito. Girou a chave apenas 90° e o lacre se desfez. Enfim, o livro estava aberto para que ela o olhasse.

Sábado, 3 de março de 1984

Hoje eu e quatro das minhas amigas, Rita, Adriana, Kelly e Laura tivemos uma noite muito divertida juntas. Na verdade a noite foi tão cansativa que eu não estou com disposição de descrevê-la inteira aqui agora. Nós fomos a uma pizzaria e depois ao Arcade e tivemos até a chance de flertar com alguns garotos, menos a Laura, porque ela não pára de falar do novo namorado dela. Isso tornou a noite um pouco maçante, apesar de ter sido divertida, nenhuma de nós queria ficar ouvindo a Laura falar do novo namorado dela o tempo inteiro. Bem, agora já é quase uma hora da manhã. É melhor eu ir dormir.

Então era isso, afinal. O diário de mamãe. As datas ali registradas remetiam a um tempo em que a mãe tinha quase a mesma idade dela. A curiosidade da garota tornou-se então incontrolável. Ela queria muito saber como era a vida de sua mãe na época da escola. Um registro escrito dessa mesma época seria bem mais apurado que qualquer lembrança que a mãe pudesse lhe contar. Então ela pegou o diário e começou a lê-lo com toda a sua alma.

Quinta-feira, 8 de março de 1984

Hoje nós finalmente conhecemos o namorado da Laura. Não fui formalmente apresentada a ele, mas ele estava lá para ver a sua namorada na saída da escola. Logo que o vi, fiquei imediatamente atraída por ele, e creio que muitas das garotas que estavam ali também devem ter se sentido atraídas a ele. Eu sempre fui uma pessoa muito tímida; não haveria a mais remota possibilidade de eu tentar alguma coisa, isso porque eu não sabia que era o namorado da minha amiga. Só fui perceber isso quando Laura se aproximou dele e o abraçou. Bem, então aquele que era o Renato. Sim, todas nós já sabíamos o nome dele: Renato. E como poderíamos não saber? Laura não pára de falar dele o tempo todo. E agora eu compreendo por quê. Quem não gostaria de ter um namorado tão bonito quanto ele? Aliás, se todas as coisas que Laura fala a respeito dele forem verdade, então ele é o namorado perfeito. O que mais eu posso dizer? Fico feliz por ela.

Quando a garota terminou de ler essa parte, fechou o diário por um instante e começou pensar sobre as questões do coração. Ela nunca tinha namorado ninguém, mas também já tinha se sentido atraída por alguns dos namorados de suas amigas. De certa forma, se sentiu feliz pela sua mãe ter passado por coisas semelhantes. Não continuou a pensar nisso por muito tempo, pois a ansiedade de conhecer o passado de sua mãe era muito grande.

Sábado, 14 de abril de 1984

Estou impressionada! Muito impressionada! Porque hoje finalmente a Laura nos levou à casa dela para conhecermos o seu namorado perfeito do qual tanto ouvimos falar. A garota certamente tem muita, muita sorte. Tudo que Laura falava sobre ele era verdade, que ele faz faculdade de Biologia, que sabe tocar piano muito bem e que ele é ótimo no basquete. Nunca duvidei da palavra de Laura, mas por um momento achei que ela pudesse estar cega pela paixão e eventualmente exagerava nos detalhes ao falar sobre seu namorado. Agora eu sei bem que é tudo verdade, porque eu o conheci formalmente.

Laura nos chamou para ir à casa dela por volta das quatro horas. Não que eu nunca tivesse ido à casa dela antes. Eu já tinha estado lá várias vezes antes e sabia que tinha um piano na casa dela. Ela dizia que foi presente da sua tia e que ninguém naquela casa sabia tocar, então ele só servia mesmo para enfeitar a sala. Fui a primeira a chegar lá no horário combinado. Toquei a campanhia da casa e fiquei esperando. Enquanto eu esperava pude ouvir o som do piano, mas achei que fosse de outro lugar.

- Ah! Olá, Paula, chegou cedo! - ela disse, assim que me viu.

Ela abriu o portão para mim e me conduziu para dentro de casa. À medida que nos aproximávamos, pude notar que o som do piano se tornava mais alto, portanto não poderia estar vindo de nenhuma outra parte senão daquela casa.

- Eu pensei que ninguém na sua casa sabia tocar piano, Laura.

- Ah! E não sabe. É o Renato que está tocando. - Ela abriu a porta da sala no mesmo segundo em que terminou de pronunciar a frase, de modo que eu pude ver na mesma hora aquele rapaz tão elegante tocando uma peça de Tchaikovsky.

- Renato, essa é minha amiga Paula.

- Ah! Olá!

- Olá. - respondi, um tanto relutante.

- Bem, fiquem à vontade os dois, eu já volto. - Disse Laura, retirando-se para o seu quarto.

- Paula é um belo nome. - ele disse. Nada respondi. - Há quanto tempo você conhece a Laura?

- Desde que tínhamos doze anos. - ele deu uma breve risada e respondeu:

- Então você a conhece há mais tempo que eu. - Forcei um sorriso e disse-lhe:

- É verdade. Ela não pára de falar de você. É verdade que você faz faculdade de Biologia?

- Sim. - ele respondeu, sorridente. - Mas ela também fala muito de você. Ela me disse que você sabe cozinhar muito bem.

- Ah. . . nem tanto. - respondi com sinceridade. Nunca me achei uma cozinheira tão habilidosa, mesmo.

- Bem, de qualquer forma, eu gostaria que você cozinhasse pra mim qualquer dia. - Olhei-o, assustada, naquela mesma hora. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Laura já tinha voltado.

- Eu fui pegar pra você aquele livro de que tinha lhe falado. Aqui está.

- Obrigada. - Era um livro que ela tinha lido há pouco tempo e que eu também tinha interesse em ler, por isso tinha pedido para ela, mas já fazia algum tempo.

Tentei me distrair com o livro enquanto esperávamos as outras chegarem. Quando todas já haviam chegado, eu não sei como, mas de alguma forma, Renato conseguiu prender a atenção de todas falando sobre basquete e sobre como ele aprendeu a tocar piano. Parecia que todas estavam se divertindo nesta noite, menos eu. Por quê? Não consigo entender por que fiquei tão relutante.

- Ei, Paula, por que você está tão quieta aí no seu canto? Você não falou quase nada desde que chegou. - Foi Laura quem falou, e eu também não sabia a resposta. Levantei-me do sofá naquela hora e resolvi direcionar uma pergunta a Renato:

- Ei, Renato, me responda uma coisa: o que você acha dos experimentos de manipulação genética de Paul Berg? - Não sei por que, mas naquela hora toda a sala ficou em silêncio. Ele me olhou profundamente nos olhos e falou:

- Acredito que isso seja uma forma de desenvolvimento a longo prazo. Com o tempo, tenho certeza de que tais experimentos serão úteis à medicina, e quando isso acontecer, as pessoas se lembrarão de Paul Berg.

Desviei o olhar dele e continuei:

- Já ouviu falar que isso é contra a vontade de Deus? - ele balançou a cabeça, num gesto de negação.

- Albert Einstein costumava dizer: “Sutil é o Senhor, mas não malicioso, porque Ele nos oculta os seus segredos não por malícia, mas pela sua própria altivez.” Por isso eu acredito que seja sim da vontade de Deus que nós queiramos descobrir como as coisas funcionam. - Depois disso, fiquei quieta, mas as outras não.

Todas começaram a elogiá-lo como um bando de escravas querendo bajular o seu amo. “Como você é sensato, Renato!” “Como você é inteligente!” “O mundo precisa de mais pessoas como você, Renato!”.

Por alguma razão, aquilo me deixava enojada. Renato ignorou todos os elogios aos quais já deveria estar acostumado e me perguntou:

- Pra que a pergunta, Paula? - Não respondi. Não respondi porque não sabia a resposta.

Fiquei apenas olhando para o chão durante alguns segundos que me pareceram uma eternidade, até que ele me chamasse a atenção de novo.

- M. . . Me desculpem, eu tenho que ir agora. - Dizendo isso, saí. Pude ouvir Laura dizendo:

- Que garota estranha!

Será que eu sou uma garota estranha? Bem, isso aconteceu há aproximadamente duas horas e agora que meu cérebro voltou a funcionar, eu vejo realmente que agi de maneira estranha. Fiz uma pergunta totalmente desconexa para testar a sensatez do rapaz. Durante meu caminho de volta para casa, eu pensei muitas vezes no que ele me disse sobre cozinhar. Com certeza ele não disse aquilo com má intenção, mas acho que eu recebi isso de uma forma um tanto maliciosa. Será que eu me apaixonei pelo namorado da minha amiga? Oh! Que ironia!

Quarta-feira, 18 de abril de 1984

Hoje eu o vi de novo. Renato. Ele, mais uma vez, foi buscar a Laura na saída da escola. Estávamos nós quatro juntas como sempre, saindo pelo portão da escola e, antes mesmo que eu colocasse um pé para fora da escola, já o tinha visto ali, em pé do outro lado da rua. Das quatro, eu aparentemente fui a única que o viu, mas ele percebeu que nós estávamos saindo e atravessou a rua na mesma hora para nos cumprimentar.

- Olá, meninas! - disse, sorridente. Kelly e Adriana responderam em uníssono: “Oi, Renato!” mas Laura correu animada em sua direção gritando:

- Oi, amor! - e pulou em seus braços, alegre como ficava sempre que o via.

Eu não falei nada. Apenas me desviei e disse que tinha que ir pra casa. Elas nem notaram nada. Apenas permaneceram ali na rua falando com Renato. Mas ele, quando percebeu que eu havia me afastado, interrompeu a conversa (para não dizer monólogo) com Laura, que não parava de tagarelar empolgada sobre o nosso dia na escola.

- Espere só um pouquinho, Laura, depois eu falo com você, tenho um assunto pra resolver primeiro. - Dizendo isso, saiu apressado antes que ela pudesse responder alguma coisa.

- Ei, Paula! - ouvi uma voz atrás de mim. Renato vinha correndo na minha direção. Pelo menos ele já sabia o meu nome. Virei-me para ele e respondi:

- O que foi?

- Por que você não fica lá conversando com a gente? Tem pressa de ir pra casa?

- Sim, tenho sim. - respondi com sinceridade.

- Ah! É uma pena. - diz Renato, sorridente como sempre.

- Por quê?

- Porque desde sábado eu fiquei muito ansioso pra falar com você. Sabia que você é uma garota muito interessante? - foi um choque.

No sábado, afinal, Laura tinha dito que eu era uma garota estranha, mas Renato disse que eu era “muito interessante”. Ele desviou o olhar e ficou olhando disperso para o céu.

- Sua opinião sobre Paul Berg é realmente muito interessante. Aposto que a maioria das garotas da sua idade nem sabem quem é Paul Berg. . . estão muito mais interessadas em saber o que o Simon Le Bon comeu no café da manhã.

- De fato. - Que mais eu haveria de responder? Só pude concordar.

- Mas eu me identifico muito com você! Você tem interesses variados! Embora só tenhamos conversado uma vez, tenho certeza de que podemos ter conversas muito interessantes juntos. - Olhei-o. Ele não olhava para mim, mas continuava olhando distraído para o céu.

Ele estava certo. Dificilmente eu encontrava alguém com que pudesse compartilhar meus interesses tão incomuns. Mas por alguma razão, não sinto vontade de falar com ele.

- Aliás, você sabe que dia é hoje? - torna ele a perguntar, interrompendo meus pensamentos.

- Não. - respondi, sem parar pra pensar.

- Não mesmo? 18 de abril. . . será que ninguém importante morreu nesse dia?

- Fala de Einstein? - dei-me conta naquela mesma hora.

- Sim! - ele responde, empolgado. - Hoje se completam 29 anos que Einstein morreu. Inclusive eu queria te perguntar se. . .

- Renato! - Era Laura. Ao que parece, ela sentiu falta do namorado depois dele ter ficado três longos minutos conversando comigo e foi procurá-lo. - Vamos? - pergunta ela, ao se aproximar.

- Certo. Até mais ver, Paula. - Nada respondi, apenas acenei.

Essa era a vida de sua mãe. Era muito mais interessante que qualquer romance meloso que pudesse ser comprado numa livraria de quinta categoria. Ainda mais, era uma história real! Mais do que uma história verídica, era algo que alguém que ela conhecia tinha vivido! Mais do que alguém que ela conhecia, era uma história vivida pela sua melhor amiga e a pessoa com quem ela tinha mais intimidade no mundo inteiro: a sua mãe! Mas por que a mãe nunca lhe contou essa história antes? Será que Laura e Renato foram apenas pessoas que passaram pela sua vida e não tiveram tanta importância assim? O único jeito de saber seria continuar a ler o diário de mamãe.

Entretanto, aquela não era a melhor hora para isso. No momento em que ia virar a página, ouviu o barulho da porta da sala abrindo e em seguida a voz de sua mãe a chamando pelo nome e dizendo:

- Cheguei! - Fechou o livro e lacrou-o com a chave naquela mesma hora. Escondeu-o embaixo da cama e saiu do quarto, indo cumprimentar a sua mãe.

- Mamãe! Você disse que voltaria apenas à noite! São apenas quatro horas. - “Apenas” quatro horas? E ela achava que ainda era de manhã. Quanto tempo ficou lendo o diário, afinal? Certamente, ela ficou muito entretida na leitura.

- Os meus superiores lá da empresa gostam de dar trabalho. Foi fácil resolver o problema. . . nem sei se era mesmo necessário ir lá. Enfim, você almoçou, querida?

- Não.

- Oh! Eu deveria ter ligado. Você deve estar com fome. - de fato, estava, mas o passado da mãe era tão mais interessante que ela simplesmente ignorou a fome. - Pra ser sincera, eu também não comi nada, porque voltei às pressas. Então se arrume, vamos comer fora!

- Sério?

- Sim, agora vá se arrumar porque eu estou com vontade de ir a um restaurante alemão bem caro!

- Certo. - ela disse, animada, um momento antes de voltar para o seu quarto. Porém, depois de saber que algo do passado da mãe lhe ficou oculto durante toda a sua vida, ela não conseguia mais ver a mãe com os mesmos olhos. Porém não iria comentar nada disso com a sua mãe. . . por enquanto.

A viagem de carro até a parte nobre da cidade se deu quase sem nenhum diálogo. A mãe apenas perguntou o que a filha fez a manhã inteira. Ela se limitou a responder que arrumou a casa e ficou assistindo desenhos, como fazia todo sábado. Só isso. Logo elas chegaram num restaurante de classe e foram almoçar. Enquanto comiam, a filha tentou de uma forma bem astuta encontrar os sentimentos ocultos da mãe.

- Mamãe. . . eu estou a fim de um garoto. - ela disse, durante o almoço.

- Oh! Que surpresa. - respondeu Paula. - Você que nunca namorou ninguém.

- É. E realmente não creio que será dessa vez.

- Por quê? - torna a perguntar a mãe.

- Porque ele já tem dona, sabe?

- Ah, entendi. - ela disse numa total tranquilidade. Talvez tivesse lembrado o passado, mas isso não transparecia. Então seria necessário ir ainda mais longe.

- Não só isso, como a namorada dele é uma grande amiga minha. - enquanto ela pronunciava isso, a mãe estava tomando suco de abacaxi de seu copo, e nem sequer parou de beber enquanto ouvia, mas, depois de ter terminado e colocado novamente o copo sobre a mesa, disse:

- Eu acho que isso não faz grande diferença. - a casualidade com que ela falava realmente não fazia parecer que tinha despertado algum sentimento íntimo da mãe. Talvez aquela história do diário não fosse tão importante para ela, mesmo. - Não importa que ela seja sua amiga ou não, você não pode “investir” num garoto que já tem uma namorada. Porque se você fizer isso, sabe o que você vai ser?

- Sei sim. - disse ela, um tanto desanimada. Não pela resposta, afinal, essa história de paixonite era uma bela mentira, contada com o objetivo de despertar alguma lembrança na mãe, e a decepção veio justamente de ela não ter conseguido isso, pelo menos não ao que parecia.

- Então. - falou Paula. - eu não quero que você seja uma garota assim, e sei que você também não quer.

- Está bem. - e dizendo isso, voltou a comer, mas pensando se havia ainda alguma forma de fazer a mãe falar de seu passado. É claro que havia!

- Sim, você está certa. - falou a garota. - Um dia eu encontro o homem certo pra mim, não tenho que ficar babando pelo namorado da Laura. - Laura.

Sim, tudo estava no nome. Essa garota, de fato, nem existia, então ela poderia simplesmente inventar um nome para sua “amiga”. Se colocar nela o nome de “Laura” não fosse o bastante, então com certeza a história do diário não era tão importante assim.

A mãe pareceu não se surpreender, no entanto, perguntou:

- O nome da sua amiga é Laura?

- É sim.

- Que coincidência! Eu também tinha uma amiga chamada Laura quando tinha sua idade. - Ela finalmente encontrou o ponto fraco! Agora não poderia deixar escapar a chance.

- Quantas Lauras será que existem no mundo? - perguntou a filha, com um sorriso discreto, num disfarçado tom sarcástico, que era pra não deixar a mulher perceber suas intenções. Ela demorou um pouco pra responder.

- Muitas, de fato. - Foi só isso que ela disse. Mais nada.

A Laura que a mãe citou era, sem dúvida nenhuma, a mesma do diário. Por que a mãe não falou mais nada sobre ela? A coincidência não estava apenas no nome da garota imaginaria, como também estaria na mesma situação. Mas ela nada falou sobre isso. E por que causa não falou? Evidentemente, ela não queria falar sobre isso, mas seria essa a tentativa de ocultar algo da filha? Talvez. Se fosse realmente esse o caso, então a curiosidade sobre a história do diário tinha se tornado ainda maior! Agora é que ela não poderia parar de ler. Pensou em fazer mais uma pergunta à mãe, se ela também já havia alguma vez se apaixonado pelo namorado de uma amiga. Mas isso já seria arriscar o segredo. Sabia que a mãe era esperta, e se se expusesse demais, ela iria saber que a menina leu seu diário, então seria melhor parar por ali.

Continuaram o almoço, normalmente conversando sobre vários assuntos e depois foram passear no shopping. Voltaram pra casa só de noite e então a filha foi jogar videogame. Convidou sua mãe pra jogar com ela, também. A mãe não era muito chegada em videogames, mas ás vezes jogava junto com sua filha para dar-lhe atenção e mostrar que se interessava pelo que a filha fazia. Ficaram jogando até ás onze horas da noite. Depois disso a mãe resolveu assistir um filme que iria passar na TV naquela hora. A filha deu “boa noite” à sua mãe e foi para seu quarto. Mas não iria dormir ainda. Tinha uma curiosidade insaciável pelo passado de sua amiga e mãe. Ficou no seu quarto ouvindo música no MP3-Player, lendo histórias em quadrinhos ou fazendo qualquer coisa que lhe distraísse até o filme acabar e a mãe fosse dormir. Só iria começar a ler quando ela estivesse dormindo, pois tinha receio de que ela entrasse abruptamente no quarto enquanto estivesse lendo e a visse ali com diário. Ela não sabia qual seria a reação da mãe se descobrisse que ela andava lendo seu diário, mas mesmo assim queria fazer isso em segredo por enquanto.

O filme só foi acabar quando já era quase uma e meia da manhã. Ela já estava muito entediada. Quando não conseguia mais ouvir o barulho da TV, apagou a luz e fechou a porta do quarto, para fingir que estava dormindo. A mãe ainda continuou andando pela casa por uns vinte minutos, fazendo sabe-se lá o quê. Depois de vinte minutos, quando já eram quase duas da manhã, ela por fim apagou todas as luzes da casa e foi para o seu quarto. A filha foi até o quarto, que também estava com a porta fechada. Sentou-se do lado da porta e ficou esperando. Esperou uns dez minutos, até ter certeza de que ela estivesse dormindo. Finalmente! A oportunidade chegou, enfim.

Voltou correndo para o seu quarto, trancou a porta e pegou o diário que estava escondido debaixo da cama. Com uma lanterna, ela o devoraria até o fim ou até amanhecer. Uma das duas coisas.

Quinta-feira, 19 de abril de 1984

Estive pensando naquilo que Renato me disse. Não o vi hoje. De fato, hoje foi um dia normal. Mas eu estive mesmo pensando naquilo que ele me disse ontem. Ele disse que eu sou muito interessante. Por quê? É porque eu conheço um pouco de Biologia? Eu realmente nunca gostei muito dessas coisas. Meu pai é farmacêutico, e ele gosta muito de ciência. Além de colecionar as revistas Science e National Geographic, ele gosta muito de ler livros como os de Stephen Jay Gould, Richard Dawkins ou Hubert Reeves. Às vezes eu dou uma olhada, mas honestamente, eu não sou uma pessoa que se cativa com essas coisas.

Eu gosto mesmo é de cozinhar. Adoro cozinhar desde que eu era pequena. Começou com a massa de modelar. Desde que eu consigo me lembrar, eu gostava de brincar com a massa de modelar e geralmente fazia coisas em forma de comida com ela. Não demorou muito e eu passei para a culinária de verdade, mas eu realmente não me acho boa nisso.. Isso me faz parar pra pensar numa coisa. Do que eu gosto mesmo?

Talvez, como Renato disse, eu seja uma pessoa com interesses diferenciados. E isso que me torna interessante? Bem, afinal, ele faz faculdade de Biologia, então provavelmente ele vai achar isso interessante.

Realmente, nunca tinha pensado nisso. Seria legal se eu pudesse conversar ou mesmo ter uma amizade com alguém que se interessa pelas mesmas coisas que eu. Não que seja realmente esse o caso do Renato, mas, de fato, pode ser muito interessante, afinal, assim como eu, ele tem interesses diferenciados.

Se eu estou apaixonada por ele? Não sei. Sei muito bem que as pessoas não podem controlar os próprios sentimentos. Se fosse esse o caso, Julieta jamais teria se apaixonado por Romeu, como ela mesma diz: “Romeu, Romeu! Ah! por que és tu Romeu?”

Da mesma forma, eu não tenho o direito de me apaixonar pelo namorado da minha amiga, mas meu coração pode tomar uma ação que seja contra a minha vontade. Para evitar isso, acho melhor não pensar nessas coisas.

Terça-feira, 1 de maio de 1984

Hoje, eu e a Laura combinamos de sair juntas depois da aula. Só nós duas, sem Adriana ou Kelly ou qualquer outra pessoa. Depois que a aula acabou eu voltei pra casa, almocei, me arrumei e saí para me encontrar com ela como planejado. Nos encontramos por volta das quatro horas e depois disso fomos ao parque. Ficamos um longo tempo ali sentadas na grama e olhando para os patos. Apenas admirávamos a beleza do lago, sem falar nada. Nem sei quanto tempo ficamos sentadas ali sem falar nada, quando, sem nenhum motivo aparente, ela me dirigiu uma pergunta:

- Paula, você gosta do Renato? - Olhei para ela, com um certo espanto. Fiquei quieta algum tempo, mas ela não falou nada, pois estava apenas esperando uma resposta. Dei uma risadinha ingênua e respondi:

- Bem, eu acho que ele é uma pessoa diferente. . . interessante.

- Não foi isso que eu perguntei. - ela voltou a dizer. Pensei durante mais algum tempo. Resolvi ser sincera. Sinceridade seria melhor.

- Não, eu não gosto dele.

- Bem, eu noto que você age de maneira um pouco estranha quando está com ele. Eu não sei por quê.

- Você está brava comigo, Laura?

- Não. - respondeu ela, séria. - Você não tem que gostar dele só porque ele é meu namorado.

- Mas. . .

- Mas o quê?

- Ele é um cara muito legal. - Ela se levantou naquele momento.

- Você diz que ele é legal e não gosta dele. Como isso? - Desviei o olhar para a grama ao meu lado.

- Mal o conheço. - foi tudo que eu pude dizer.

- Então será que você não gostaria de conhecê-lo melhor? - nessa hora, eu também me levantei.

- Espera aí um minuto, Laura! - exclamei. - Por que você quer que eu o conheça melhor? Você acabou de dizer que eu não preciso gostar dele só porque ele é seu namorado.

- Verdade. - disse ela, fitando-me profundamente nos olhos. - Mas é que eu gosto de estar com você, e gosto de estar com ele também. E às vezes, naturalmente, eu quero ficar com os dois.

- Não tenho nada contra ele.

- Isso é ótimo! - falou ela, empolgada. - Porque eu quero levar os dois pra passear comigo no domingo.

- Só nós três? Sem a Dri e a Kelly?

- Se você quiser que elas vão, tudo bem, mas eu queria mesmo que fosse só nós três.

- Por que só nós três?

- Ora minha querida Paula. - disse ela, pondo a mão no meu ombro. - Pra que você possa conhecê-lo melhor. - e depois disso, ambas permanecemos caladas.

Duas garotas ali de pé em frente ao lago, uma com a mão no ombro da outra. Poderia até parecer um quadro, pra quem visse de longe, pois a cena permaneceu durante um bom tempo, até que eu resolvi quebrar o silêncio dizendo apenas:

- Vamos embora.

Domingo, 13 de maio de 1984

Eu acabei de chegar em casa. Nem comi nada ainda e nem tomei banho, embora esteja realmente cansada. Mas é porque eu estou muito empolgada e quero escrever logo essas coisas antes que a emoção não seja mais a mesma! Estou feliz porque hoje foi um dos melhores dias da minha vida!

Finalmente, eu, a Laura e o Renato fomos ao zoológico como deveríamos ter feito semana passada, mas não pudemos ir no domingo passado porque eu tive que ajudar a minha mãe com algumas coisas aqui em casa. Mas eles não foram, porque disseram que não seria a mesma coisa sem mim, então remarcamos o passeio para hoje. A idéia de ir ao zoológico não foi minha e nem do Renato, mas sim da Laura. Ela disse que seria algo do agrado dos dois, porque Renato é um biólogo e eu adoro animais. De fato, eu adoro animais. O que poderia ser mais divertido do que ir ao zoológico?

Eu e o Renato conversamos muitas coisas sobre os animais que víamos lá. Tigres, girafas, pandas, ursos, panteras, hienas, condores. Foi tudo tão legal. . . inclusive a própria Laura foi quem disse “vocês dois parecem estar se dando bem.” Quando fomos nós dois ver a girafa. Laura voltou pra comprar sorvete, então ficamos apenas eu e ele olhando a girafa e quando ela voltou, eu e o Renato estávamos numa conversa muito empolgada. Tudo isso porque quando eu vi a girafa eu sussurrei, sem ao menos me dar conta do que estava falando:

- O pescoço da girafa. . .

- O quê?

- Ah! Nada não. Isso é só o nome de um livro do Francis Hitching. - Na hora eu não soube por que, mas ele deu um passo pra trás quando eu disse isso.

- Você lê Francis Hitching! Garota, você tem noção? Isso é Biologia avançada! - falou ele, empolgado.

- Ah, não. - respondi, rindo. - esse é só o nome de um livro que o meu pai tem. Ele está sempre lá na estante da sala, eu nunca nem o abri, mas toda vez que eu passo pela sala de casa eu vejo aquele livro, então quando vi a girafa eu lembrei disso. - ele coçou a cabeça, aparentemente um pouco decepcionado.

- E eu já ia dizer que você é mais inteligente do que eu pensava. - ouvindo isso, não pude deixar de rir.

- A parte científica eu deixo com você, Renato. Eu gosto apenas de ver os animais. - dizendo isso, nós dois caímos na gargalhada. E foi exatamente nessa hora que a Laura apareceu segurando três sorvetes, cada um de sabor diferente.

- Vocês dois parecem estar se dando bem.

Fato! Não posso negar! Eu realmente comecei a gostar do Renato, porque ele consegue me fazer ver o mundo de uma forma diferente. Ele realmente consegue puxar assuntos que sejam do meu interesse. Talvez eu, que sou uma pessoa tão estranha (sim, eu sou mesmo!) devesse ter um relacionamento mais profundo com ele. Não que eu o queira roubar da Laura. Isso nunca! Mas talvez possamos ser apenas bons amigos.

Afinal, depois do parágrafo acima eu resolvi parar de escrever e ir tomar um banho. Comi um sanduíche e tomei um copo de leite. Meus pais e meu irmão já foram dormir, mas eu quero continuar escrevendo, porque ainda não narrei todos os eventos do dia.

- Vocês gostariam de ir ao Arcade? - Laura perguntou, logo que saímos do zoológico.

Sorte a nossa que tinha um Arcade bem perto ali do zoológico. E é claro que nós fomos. Não perderíamos essa chance de jeito nenhum.

- O que você gosta de jogar, Renato? Pac Man? Space Invaders? Donkey Kong? - foi a Laura quem perguntou.

- Eu não entendo nada dessas coisas. - disse ele.

- Sério? Porque a Paula é fera nesses jogos! - me surpreendi quando ela disse isso.

- Não. . . eu não! - balbuciei.

- Ora, não seja modesta. - Laura falou, sorridente e amigável como sempre. - Quem foi que alcançou o nível mais alto do Pac Man da última vez que nós viemos aqui? - nada respondi.

- Se você é tão boa assim, Paula, então talvez possa me ensinar a jogar. - disse Renato.

- Bem, eu. . . vamos jogar juntos.

- Isso mesmo, vamos jogar juntos!

De fato, eu nunca tinha me divertido tanto jogando videogames quanto nesta noite. Tudo saiu perfeitamente. Devo dizer que o Renato não é apenas um “cara legal” ele é alguém que, de certa forma, mudou a minha vida, porque ele me fez conhecer novos horizontes!

Claro que também devo agradecer muito à Laura, por ter me apresentado um cara assim. Se não fosse por ela, eu não o teria conhecido.

Terça-feira, 29 de maio de 1984

Mudei completamente meu conceito do Renato! Ele pode ser inteligente, ter mil talentos, ser bonito e até extremamente divertido, mas hoje ele me revelou uma extrema insensatez. Que ironia. Da primeira vez que o vi, perguntei algo que testasse a sua sensatez, e ele mostrou ser não apenas sensato, como também perspicaz. Mas agora vejo que ele não é sensato. Ele é, de fato, um grande hipócrita!

Ele me ligou hoje à noite. Foi a primeira vez que ele me ligou.

- Paula, tenho uma coisa muito importante pra te dizer.

- Pode falar.

- Eu queria mesmo era te dizer isso pessoalmente, mas é difícil de nos encontrarmos e eu quero desabafar logo, porque não aguento mais guardar isso dentro de mim.

- Aconteceu alguma coisa? - Perguntei, já achando que seria uma notícia ruim. Ignorando isso, ele declarou:

- Sou perdidamente apaixonado por você. - fiquei calada um tempo, ainda segurando o telefone, mas depois eu disse:

- Isso é uma brincadeira, certo?

- Não, é sério. - disse ele.

- Mas e a Laura?

- Foi uma peça usada pelo Destino pra que eu me aproximasse de você. Não preciso mais dela. Não a quero mais. Tenho certeza de que você é a garota certa pra mim.

- Você está louco! - gritei. - Por acaso você terminou com ela?

- Não, mas por você eu faço isso a qualquer hora. - pela primeira vez, eu senti repulsa pela atitude de alguém. De fato, comecei a ficar furiosa.

- E você não se importa se isso arrasar os sentimentos dela, seu canalha? Você seria tão canalha se fizesse isso que eu não teria motivos pra duvidar que você faria o mesmo comigo quando se apaixonasse por outra garota.

- Isso não vai acontecer. - ele disse, permanecendo calmo apesar de eu ter ficado brava e tê-lo xingado. - Porque eu e você fomos feitos um para o outro. Nós nos atraímos naturalmente.

- Por quê? Eu nem gosto tanto assim de ciência, e nem você de cozinhar.

- De fato. Mas o que nos une é o que temos dentro de nós.

- Não, você está enganado, Renato.

- Por quê? - ele perguntou, intrigado.

- Porque diferente de você, eu não sou uma hipócrita. - dizendo isso, desliguei violentamente o telefone. Quando me virei, meu irmão estava parado ali na sala. Ele deve ter ouvido boa parte da conversa.

- Brigou com o namorado? - ele perguntou.

Disse isso em tom irônico e até mesmo cômico, mas ele não sabe o qual profundamente isso me machucou, embora tenha sido sem intenção. Sem dar-lhe uma resposta, corri para o meu quarto, onde permaneço até o momento em que escrevo essas linhas.

Sexta-feira, 1 de junho de 1984

Deus, como foi que o Renato acabou por se tornar o vilão da minha vida? Isso mesmo, ele se tornou um vilão, exatamente como um vilão de livro ou de novela. Posso até ser uma pessoa introvertida e anti-social, mas fico agoniada de ver alguém que eu gosto sofrendo. E ele fez isso, sim. Aquele canalha. Não sabe o quando a Laura ficou arrasada?

Ela tinha faltado à escola ontem. E hoje ainda se mostrava abatida. Ela não suportou que Renato simplesmente terminasse o namoro com ela. Posso ser ingênua, mas não tanto assim. Sei que foi por minha causa que ele fez essa coisa.

Poucas pessoas na sala ficaram tristes com a história da Laura, isso porque poucas pessoas sabiam disso. Entre essas poucas, evidentemente, estão Adriana, Kelly e eu. As duas, especialmente, não podiam acreditar numa coisa dessas, pois sabiam o quanto os dois eram apaixonados. Mas eu não, porque eu conheço o coração do homem. As coisas aconteceram rápido demais.

Na saída da escola, eu a chamei quando ela já estava sozinha, indo embora.

- Me desculpe. Foi tudo culpa minha.

- Do que você está falando, Paula? - fiquei mais de dez minutos falando sem parar.

Ela nada disse, apenas ouviu tudo atentamente enquanto eu abria meu coração e lhe contava toda a história. Quando terminei, recebi uma bofetada coberta de raiva. Raiva de mim? Não, raiva do Renato, facilmente direcionada a outra pessoa. Chorei. Também fiquei triste. Mas se me bater a faria se sentir melhor, eu deixaria.

- Você. . . você também era apaixonada por ele! - ela disse, com uma expressão de ódio e rancor que eu jamais conseguiria imaginar no rosto de Laura, que sempre apresentava um semblante tão sereno. Mas eu o via naquele momento com meus próprios olhos.

- Verdade. - falei. - Eu era apaixonada por ele, sim. Mas eu jamais contaria isso. Não contaria porque sei o quanto ele é importante pra você. Nunca quis te machucar.

- Então, por que foi se apaixonar por ele? - Realmente, por quê?

- Eu. . . não sei. - e estava sendo sincera. Na verdade, até agora ainda não descobri a resposta.

Renato não apenas a machucou, como também roubou a amizade que eu tinha com ela. Depois disso, eu não serei mais capaz de namorá-lo mesmo que eu queira.

Terça-feira, 5 de junho de 1984

Hoje eu fui à casa de Laura. Ela está bem melhor. Ainda bem. Na verdade, ela me pediu desculpas pelo seu comportamento agressivo no outro dia. Ela reconheceu que não tive culpa de nada e que era raiva do Renato que ela sentia, mas extravasou a raiva em mim. Eu disse para ela que não tinha problema nenhum e que entendia bem os sentimentos dela. Agora está tudo bem. Laura não tem raiva de mim e nem está mais abatida por causa do seu namoro acabado. Mas ainda assim eu me impressionei quando ela me perguntou:

- E você? Ainda quer namorar o Renato?

- Você está louca? Acha que vou namorá-lo depois do que ele te fez?

- Não vejo problema nenhum. Não tenho mais nenhum vínculo com ele. Se você o quiser, vá em frente.

- Receio que seja incapaz de fazer isso, Laura.

- Por quê?

- Porque por ele ter machucado você, eu agora o vejo como vilão. Além disso, ele apenas te deixou porque estava apaixonado por mim, já que ele disse que eu era “muito interessante.” Se ele é tão volúvel assim, não há motivos pra acreditar que ele não vai me descartar assim que achar outra garota mais interessante. Aliás, eu imagino quantas garotas ele deve ter usado e descartado antes de você! - Com um grande sorriso no rosto, ela me abraçou.

- Você, definitivamente, vale mais que cem namorados!

Sábado, 23 de junho de 1984

Às vezes temos que fazer coisas desagradáveis. Se eu não estivesse com isso em mente, dificilmente teria aceitado o convite e me encontrado com ele naquela lanchonete. Cheguei lá uns vinte minutos mais tarde do que tinha sido combinado, mas ele ainda estava lá, sentado numa das mesas da lanchonete. Ele me viu logo que entrei. Sequer tive tempo de olhar em volta, pra saber se ele estava mesmo lá e ele já me chamou pelo nome:

- Ei, Paula!- Olhei adiante e o vi sentado sozinho ali numa das mesas. Aparentemente já tinha terminado de comer. Respirei fundo e fui até lá. Sentei-me à mesa bem à frente dele.

- Bem, o simples fato de você estar aqui já me diz que você quer ser a minha namorada.

- Vá pro Inferno!

- Ora, ora. - ele falou, mantendo a calma. - Não sei por que você tem tanta raiva de mim. Afinal, ficou tudo bem entre você e a Laura, e ela não tem nada contra mim, certo?

- Por que você terminou com a Laura? - perguntei.

- Porque ela não me agradava mais.

- E por que ela não te agradava mais?

- Isso é difícil de dizer. . . - ele falou, pensativo. - O fogo da paixão às vezes simplesmente apaga. Pelo menos é isso que eu acho. No mais, eu diria que encontrei um peixe maior pra pegar. - Ri rispidamente.

- Quer dizer que eu sou um peixe?

- Encare como quiser, Paula. Eu sou uma pessoa ambiciosa. Farei o que for necessário para alcançar o que eu quero.

- Mesmo que isso envolva destruir os sentimentos da Laura? - ele riu rispidamente.

- A Laura é fraca. Os fracos não têm vez. Você deveria saber disso. - Fiquei chocada de ouvir isso. Certamente, Renato começou a me mostrar a sua outra face.

- Então você se acha muito forte, não é, Renato? - ele deu de ombros e respondeu:

- Como eu te disse, eu sou ambicioso. Faço aquilo que for necessário para conseguir o que quero. - dei uma risada. Minha risada conotava nada além de desprezo pelo que ele me falava.

- Pelo menos você é sincero. Mas falando desse jeito, como um maquiavélico, você acha que vai me convencer a te namorar?

- Não sei. - falou ele. - Mas você é diferente da Laura. Você não é fraca como ela. Pelo menos, você tem potencial para se tornar uma pessoa forte. - Naquela hora, eu me levantei.

- Bem, isso envolveria me tornar uma pessoa maquiavélica como você?

- “Maquiavélico” pode realmente ser um termo forte e até mesmo pejorativo. Mas essa é a natureza do ser humano. Se não for, é algo a que forçosamente temos que nos adaptar. Porque eu aprendi com a vida que se você não pisar nos outros, os outros pisarão em você. É assim que se atinge um ideal.

- Basicamente, essa é a idéia de Maquiavel. - respondi. De alguma forma, ele conseguiu desviar o assunto.

- Sim. - respondeu Renato. - e foi por isso que eu resolvi fazer faculdade de Biologia. Darwin pregava a sobrevivência do mais forte. Isso se harmoniza com as idéias de Maquiavel. Somente a natureza egoísta do ser humano é que nos permitiu ser a espécie dominante do planeta. Se você quer chegar ao topo, você deve seguir o que os seus genes determinam.

- Mas isso está errado, Renato!

- Não existe certo ou errado! - ele falou, levantando-se e batendo com as mãos na mesa. Isso chamou atenção de quase todos na lanchonete. - Eu desisti de acreditar que exista o certo e o errado, desde que eu possa conseguir aquilo que eu queira. E o que eu quero é você, Paula! - permaneci um tempo parada ali de pé olhando-o, do outro lado da mesa. Abri a boca, mas não consegui falar nada. Nem sei o que eu queria falar, pra ser sincera. Virei-me de costas e fui embora da lanchonete.

E foi exatamente nesse ponto que ela fechou o livro e se deitou em sua cama. Certamente, a sua mãe tinha vivido um romance intenso. Na verdade, era uma situação bem marcante. Não era à toa que estava escrito no diário. Mesmo ela não tendo presenciado (aliás, sequer tinha nascido naquela época) era impossível não sentir raiva de Renato pelas coisas que ele fazia. Ao continuar lendo sobre o passado de sua mãe, seria possível descobrir algo sobre a personalidade dela. Bem, não haveria outro jeito de saber senão lendo. E ela continuaria a ler. Por nada pararia. Bem, se soubesse das surpresas que descobrira por continuar lendo, poderia estar disposta a mudar de idéia.

Domingo, 24 de junho de 1984

Não existe certo ou errado. Esse é o ponto de vista de Renato. Sabendo disso, é possível compreender porque ele age assim. Ele não se importa com o que acontece com os outros. Sei que ele não fez isso de propósito, mas é como se esse tempo todo ele tivesse ocultado de nós a sua natureza. Pelo menos de mim. Talvez ele já tivesse falado sobre darwinismo e maquiavelismo com a Laura, mas não creio que ele lhe tenha contado que seja adepto dessas idéias. E isso me faz ficar ainda mais convicta que Renato realmente não presta. Não tenho nenhum motivo para namorá-lo, embora Laura tenha me dito que isso em nada a afetaria. Porém, se ele realmente não se importa com ninguém além dele mesmo, que confiança posso ter de que não me descartará assim como fez com a Laura? Só porque, segundo as suas próprias palavras, eu sou “forte”? Afinal, o que significa ser “forte”? Se ser forte é ser alguém como Renato, que consegue as coisas que deseja se aproveitando dos outros, eu, sem dúvida nenhuma, prefiro ser uma pessoa fraca.

“Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as coisas fortes.”

- 1 Coríntios 1:27

Não. Eu não quero acreditar nisso. Eu admirava muito o Renato. Ele foi uma pessoa que me causou uma boa impressão. Ele me ensinou como pode ser divertido viver sendo você mesmo, e gostando das coisas que você gosta, mesmo que se pareça uma pessoa estranha aos olhos alheios. E eu realmente gostava muito dele por causa disso. Mas não do jeito que ele se revelou ser, mas daquele Renato que eu conheci na casa da Laura. E eu estou confiante de que ele existe.

Eu não vou perder as esperanças. Se ele existir, vou trazê-lo de volta; se não existir, então eu mesma estou disposta a criá-lo.

Segunda-feira, 25 de junho de 1984

Naturalmente, hoje eu contei à Laura tudo que aconteceu. Todas as coisas referentes a Renato. Aparentemente, ela é indiferente quanto à essa questão. Balançando a cabeça, ela me disse:

- Ele falava muito sobre Maquiavel e sobre darwinismo, mas eu nunca imaginei que o Renato fosse adepto dessas coisas. Se é realmente esse o caso, então ele é uma pessoa desprezível. Você não concorda, Paula? - embora eu tenha ficado quieta, Rita, Kelly e Adriana concordavam com tudo que a Laura estava falando.

- O que você vai fazer agora?

- Vou trazê-lo de volta! - exclamei, determinada. - Eu sei que posso trazê-lo de volta, e farei tudo que estiver ao meu alcance para conseguir isso!

- Boa sorte com isso. - falou Laura. - mas eu realmente não creio que haja alguém para “trazer de volta”, se essa era realmente a personalidade do Renato desde o começo.

Nisso eu tinha que concordar. Mas, estranhamente, eu sinto dentro de mim a necessidade de trazer o Renato de volta. Com isso eu quero dizer aquele Renato que eu conheci. Aquele que me cativava com a sua sensatez, aquele que me fez sentir especial, mesmo que eu ache uma molécula de proteína mais interessante que o show dos Beatles.

- Eu sei que vou conseguir.

Quinta-feira, 9 de agosto de 1984

O que vou escrever aqui são eventos de alguns dias atrás. Não os escrevi na ocasião porque estava demasiadamente chocada. Mas foi uma parte importante e até mesmo marcante da minha vida, então faço questão de registrar tudo aqui, ainda que de uma atrasada.

No sábado, dia 4, eu consegui encontrar o Renato de novo. Eu decidi que não existe outro modo de mudá-lo senão investir com força. Nos encontramos numa praça da cidade por volta das oito horas da noite. Contei pra ele tudo que havia no meu coração. Pra ser sincera, eu me senti bem com o desabafo.

- Então, mesmo na época em que eu namorava a Laura, você já era apaixonada por mim?

- Sim. - respondi, cabisbaixa.

- Então eu sinceramente não sei qual é o problema, Paula!

- O problema é que eu não sou apaixonada por você. Eu me apaixonei por um outro Renato. Um que não era egoísta. Um que sempre fazia eu me sentir bem. Um que me incentivou a viver no meu próprio mundo.

- Pois esse Renato é o mesmo rapaz com quem você está falando agora. Isso sempre fez parte da minha natureza, desde o começo. Apenas não revelei isso porque não houve necessidade.

- Não, isso é mentira.

- Quem é você pra julgar? - ele disse, furioso. Em resposta, balancei a cabeça negativamente.

- Uma pessoa egoísta não faria algo de bom para outra pessoa a menos que isso fosse para seu próprio benefício. - Diante dessa resposta, ele pareceu ficar sem reação.

- Como assim? - foi tudo que ele conseguiu dizer, depois de um longo tempo calado.

- Aquela vez, na frente da escola. . . se não me engano foi no dia do aniversário da morte de Einstein. Você disse que eu sou uma garota “muito interessante”. Admito que na hora fiquei confusa com isso. Mas depois, você não imagina o quanto isso me fez sentir bem! - pela sua expressão facial, concluí que ele não estava entendendo nada do que eu dizia. Mesmo assim continuei: - Antes disso eu realmente me sentia alienada. Mas você me fez perceber que não devo ter vergonha do que sou, e isso não foi apenas por você gostar das mesmas coisas que eu, e sim por você dizer que eu era interessante por ser diferente. Você está me entendendo, Renato?

- Mas nós ainda nos interessamos pelas mesmas coisas.

- Eu sei! - falei, já com lágrimas nos olhos. - Mas ainda assim eu não consigo te ver como aquela pessoa especial que mudou a minha vida, enquanto você fingir ser egoísta.

- Eu não finjo ser egoísta. Eu simplesmente sou. É a natureza do ser humano.

- Isso foi o que Maquiavel disse, mas é mentira. Eu vou provar pra você que é mentira. - antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, eu já tinha me virado de costas e corrido.

Estava agindo irracionalmente. Sem dúvida. Nunca antes em toda a minha vida eu fora tão irracional. Mas somente a minha irracionalidade poderia revelar a natureza do rapaz, e provaria que ele estava mentindo.

Renato foi atrás de mim, naturalmente. Ele não sabia o que eu queria, mas me perseguiu por dois quarteirões, até eu chegar numa passarela próxima que ficava sobre uma avenida de quatro pistas. Subi na passarela. Àquela hora da noite, não havia mais ninguém ali além de nós dois.

- O que você vai fazer? - perguntou ele, ofegante depois da corrida.

Em resposta, subi e fiquei de pé sobre o parapeito. Digo sem medo de estar errada que naquela hora eu não senti nenhum medo. Ao contrário, fiquei muito satisfeita de ver como ele reagiu ao me ver fazendo aquela loucura.

- Você está louca? - ele gritou, mais desesperado do que eu nunca havia visto antes. - Desça daí, Paula!

- Por quê? - perguntei, com tamanha calma que fico com medo ao relembrar isso agora.

- “Por quê?” Que pergunta mais idiota! O que vai acontecer se você cair daí? Essa passarela tem seis metros de altura!

- Diga você, Renato, o que vai acontecer se eu cair?

- Você provavelmente vai morrer! - minhas duas palavras seguintes o fizeram cair sentado:

- E daí? - eu notei que ele tentou falar alguma coisa, mas pareceu que as palavras não saíam de sua boca.

- Você está preocupado comigo? Por quê? Um egoísta não deveria se preocupar com as outras pessoas.

Terminando de dizer isso, desci do parapeito, ainda mais porque isso já estava chamando atenção das pessoas na rua. “Vejam! Aquela mulher vai se suicidar!” Mas eu ignorei isso. Apesar de que, na hora em que desci, um jovem rapaz já estava ali na passarela junto comigo e Renato.

- Você está bem, moça? - perguntou ele. Olhei-o e perguntei agressivamente:

- Por que você quer saber?

- Pensamos que você queria se matar, eu apenas fiquei preocupado você. - Olhei então para Renato com um grande sorriso no rosto.

- Viu só? Ele estava preocupado comigo, mesmo não me conhecendo. Se eu morresse, não faria a menor diferença na vida dele, mas ainda assim ele veio até aqui para me salvar. Isso foi egoísmo, Renato? - a essa altura o rapaz, que já não estava entendendo mais nada, desceu da passarela e foi embora.

- N. . . não. - balbuciou ele.

- E você também estava preocupado comigo. Viu só? Não existe esse negócio de maquiavelismo. Isso é tudo bobagem. - ele nada respondeu. - Você diz que não existe mais certo ou errado. O importante é conseguir o que você deseja, mesmo que tenha que prejudicar os outros para isso. Eu não sei o que te levou a pensar assim, mas agora você percebe que essa não é a sua verdadeira natureza? Nem a sua nem de ninguém. Nunca é tarde pra recomeçar, Renato! - Quando falei isso, ele me olhou com uma expressão sombria e disse apenas o meu nome:

- Paula. . . - repetiu meu nome duas ou três vezes.

- Quer chorar? Pode chorar. - Falei, abraçando-o. Também estava mostrando o meu lado compassivo, afinal.

Renato explodiu em choro. Nunca o tinha visto chorar antes, mas sabia que era disso que ele precisava. Chorar faz bem às vezes.

Quando ele recobrou o fôlego e eu o soltei do abraço, perguntei-lhe:

- O que você vai fazer agora?

- Eu não sei. Realmente não sei. Preciso de algum tempo ainda para digerir tudo isso. - Ele parou e ficou olhando para o céu durante algum tempo. - Mas, Paula, você ainda está disposta a ser a minha namorada?

- Não sei. - falei. - Talvez seja até melhor se você voltar para a Laura. O importante pra mim é que você esteja sempre comigo. - Ele apenas me olhou por um momento. Tenho certeza de que ele entendeu exatamente o que eu quis dizer.

Sem dizer mais palavra, ele desceu da passarela e seguiu seu rumo. Para onde ele ia? Não sei. De fato, do outro lado daquela avenida tinha uma loja de conveniência. Ele entrou naquela loja sabe-se lá com que objetivo. Talvez apenas quisesse comprar alguma coisa pra beber. Deve ter ficado com sede depois de correr dois quarteirões atrás de mim. Mas o Destino é muitas vezes irônico. Renato me disse certa vez que o namoro dele com Laura foi apenas um recurso usado pelo Destino para que ele me conhecesse. Podemos dizer, da mesma forma, que foi obra do Destino ele estar no lugar errado na hora errada. Qualquer pessoa que passasse por ali notaria que aquela loja estava sendo assaltada. Mas Renato, talvez por estar ainda um pouco abatido com o que aconteceu, não se deu conta disso. Ele abriu a porta no mesmo momento em que o assaltante estava para sair, de modo que os dois quase se chocaram ali na porta da loja.

- Game over. - falou o homem, uma fração de segundo antes de Renato encontrar seu fim num projétil muito bem direcionado à sua testa, ainda mais a uma curta distância.

Foi necessário? Não, não foi necessário. Foi apenas um impulso. O assaltante viu, naquela hora, Renato como alguém que estivesse atrapalhando o seu roubo. Poderia apenas tê-lo empurrado. Ou mandado que saísse do caminho e sem dúvida nenhuma ele obedeceria. Mas ele certamente estava nervoso por cometer aquele crime, e o nervosismo o fez acatar seu primeiro impulso.

E eu vi. À distância, de fato, mas vi o homem ser baleado. Fiquei chocada. Fiquei tão chocada que a única coisa que me lembro depois disso foi de alguém colocando um guarda-chuva sobre a minha cabeça. Estava chovendo, e eu estava ajoelhada na calçada. Quando começou a chover? Quando eu me ajoelhei? Quanto tempo eu fiquei ali de joelhos tomando chuva? Eu realmente não sei. Tão estarrecida fiquei eu que não era capaz de discernir nada do que estava acontecendo. Apenas voltei ao mundo real quando aquela pessoa pôs o guarda-chuva sobre a minha cabeça. Era Laura.

Olhei-a, ainda incapaz de pronunciar uma palavra. Ela estava sorrindo. Como ela era capaz de sorrir numa ocasião daquelas? Não sei. Na hora não pude perguntar, e mesmo depois disso, tenho certeza que nenhuma de nós quer relembrar aquele momento. Depois disso ela soltou o guarda-chuva e me abraçou. Chorei mansamente. Ela continuou a me abraçar enquanto eu chorava. Também não sei dizer quanto tempo isso demorou. Depois disso, estendendo a mão, ela disse:

- Vamos pra casa. - Ajudou-me a levantar e depois me conduziu até a minha casa. Tomei um banho quente e depois dormi profundamente durante onze horas.

O enterro de Renato foi ontem. Todas nós estávamos lá. Eu, Laura, Adriana, Rita, Kelly e até os pais de Laura. Ele foi apenas mais uma vítima da crueldade humana. Essas coisas acontecem o tempo inteiro, mas nós nunca pensamos na possibilidade de acontecer conosco ou com algum conhecido. Ele apenas deu azar de estar no lugar errado e na hora errada. Nada se pôde fazer. O homem que o matou já está cumprindo pena. Quatorze anos de prisão. Certamente, um castigo demasiadamente brando pelo que ele fez. Mas não importa quão severo seja o seu castigo, nada pode trazê-lo de volta, e eu ainda estou tentando me conformar com isso.

É sempre ruim quando a Morte tira alguém de nós. Mas nesse caso, o buraco deixado foi ainda maior. Por quê? Naturalmente, eu tinha esperanças. Esperanças e expectativas. Eu queria muito saber o que iria acontecer depois. Será que ele iria mudar? Será que voltaria para Laura? Agora eu nunca vou saber.

Ainda mais, o fato de ele ter partido de uma forma tão repentina faz com que ele tenha um lugar especial no meu coração. Renato mudou a minha vida. Não posso negar isso. Eu queria muito que ele estivesse comigo. Mas eu prometi a mim mesma que traria de volta aquele Renato que eu conheci e que tanto me cativava.

Não tenho poder sobre a morte. Apenas Deus pode criar uma pessoa. E eu não sou Deus. Mas eu sou uma mulher, e isso muda um pouco as coisas de figura, o mínimo que seja. As mulheres têm o maravilhoso privilégio de sustentar a vida humana dentro de si. Sei muito bem que é impossível trazer de volta aquele Renato que eu conheci, mas eu vou usar o meu dom, custe o que custar. Um dia eu terei um filho. Tenho apenas dezessete anos, dizer uma coisa dessas pode parecer algo distante, mas ainda que demore, eu prometo, faço um juramento solene de que um dia terei um filho.

Meu filho não será o Renato, sei que não pode ser. Mas eu farei tudo que estiver ao meu alcance para trazer de volta aquela pessoa que iluminou a minha vida. Não apenas posso dar a vida para alguém, como também tenho a liberdade de dar-lhe um nome. E a partir de hoje, eu sei qual será o nome do meu filho: Renato.

Esse será um segredo só meu. Que ninguém nunca venha a ler as páginas desse diário.

E essas foram as últimas palavras que ela leu. Não conseguiu ler mais nada depois disso. Ficou chocada demais. Talvez chocada não seja a palavra. Talvez não haja uma palavra certa para definir o que ela sentia naquela hora. Apenas uma frase ecoava em sua mente:

“Eu sou uma mentira.”

Sim, ela era uma mentira. Por toda a sua vida foi uma mentira. Ela nasceu com o propósito de ser outra pessoa. Daquele momento em diante, ela não mais se sentia capaz de amar a si mesma. Acima de tudo, começou a criar um ódio especial pelo seu próprio nome: Renata.

Renata. Era esse o seu nome. Um nome facilmente adaptável do masculino para o feminino. E agora ela sabia, não era à toa que tinha esse nome. O nome era o segundo passo para que ela se tornasse aquela pessoa. O primeiro foi simplesmente ter nascido.

A essa altura já tinha amanhecido. Mas por ser domingo, Paula continuaria na cama ainda por mais algum tempo. Renata, de sua parte, sentou-se em sua cama e começou a pensar várias coisas. Muitas coisas lhe vieram à cabeça. Imaginou o tamanho da frustração de Paula quando teve uma filha, em vez de um filho que desejava, a quem pudesse chamar “Renato”. A frustração provavelmente foi grande o bastante para que ela colocasse o nome mesmo assim, mudando apenas uma letra.

Deixou as lágrimas rolarem. Chorou. Era a melhor forma de externar os seus sentimentos. No fundo, sabia que a mãe a amava. Sempre a amou. Mas mesmo assim, não conseguia deixar de ver aquilo como uma grande crueldade. A maior crueldade foi tê-la criado para que fosse outra pessoa. Mas também era uma crueldade ter-lhe ocultado isso durante dezesseis anos.

Em meio ao turbilhão de pensamentos que vieram à mente de Renata, um lhe chamou a atenção: era uma lembrança da primeira série do primário. A professora tinha colocado todas as crianças numa roda e pedido a cada uma para dizer por que seus pais haviam lhe dado o nome que tinham. A grande maioria respondeu que era homenagem que os pais fizeram a algum ator, músico ou personagem de novela. Quando chegou a vez de Renata, ela se limitou a dizer que não sabia. Mas agora ela sabia. E por que nunca tinha perguntado isso aos seus pais? Bem, era fútil pensar nessas coisas.

Mais uma hora se passou em que ela ficou apenas deitada na cama pensando várias coisas. Já eram sete horas da manhã, e a mãe continuava dormindo. Depois de se recompor, pegou o diário e continuou olhando. Não foi lendo página por página, dia por dia, como fazia antes, mas apenas o folheou.

As anotações acabavam no ano de 1989, que era bem antes da data de seu nascimento, mas já falava algo sobre o seu pai. Renata descobriu que seus pais se conheceram em 1988. Ela nunca teve uma data tão precisa na mente. Mas aquilo não era importante. A última anotação que constava no diário era de uma terça-feira, 14 de março de 1989. Nesse dia, estavam escritas apenas duas coisas pequenas. Uma era sobre o aniversário de Albert Einstein. A outra era algo sobre o pai de Renata. Dizia:

“Talvez esse homem seja a pessoa que eu procuro para ajudar a cumprir meu propósito.”

Depois de ter lido isso, fechou o diário, lacrou-o novamente com a chave que tinha encontrado no quarto de sua mãe e o jogou para longe. Nunca mais queria ver aquele maldito livro de novo.

Abriu a janela de seu quarto. Era um belo domingo de sol, afinal. Olhando para o céu azul, ela gritou, com todas as forças. Aquilo que estava impregnado no seu coração:

- Eu sou uma mentira! - Ela gritou bem alto. Será que alguém ouviu? A sua mãe não, porque ainda estava dormindo.

Sem saber mais o que fazer, Renata pegou uma revista de histórias em quadrinhos para passar o tempo. Ela tentou ler, mas via apenas figuras e palavras, não conseguia se concentrar na história. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, finalmente a mãe se levantou e foi para a cozinha. Ela esperou mais um tempo e decidiu ir também. Quando chegou à cozinha, viu a sua mãe ali, recostada à mesa, passando requeijão numa fatia de pão de forma.

- Bom dia, mamãe. - ela disse, forçando um sorriso.

- Bom dia, Renata. - respondeu a outra. Renata sentou-se à mesa na frente de sua mãe e disse:

- Posso te perguntar uma coisa?

- Claro, filha. - falou ela.

- Se o Renato não tivesse morrido, você teria se casado com ele e estariam juntos até hoje? - só de ouvir essas palavras, ela deixou que a faca que estava em sua mão escorregasse e caísse na mesa. Olhou a filha profundamente abismada e perguntou-lhe:

- Quanto você sabe?

- Mais do que você imagina! - gritou a garota, jogando com violência o diário em cima da mesa.

- Meu Deus! - exclamou Paula. - O meu diário! Eu nem sabia que ele ainda existia. Onde você o encontrou?

- Isso não importa. - retrucou a filha. - Você me criou pra ser outra pessoa. Você me fez pra ser uma mentira. - Paula se levantou da cadeira, numa tentativa desesperada de consolar a filha.

- Espere! Não é bem assim como você está pensando! Eu te amo. Sério mesmo.

- Não consigo acreditar no que você diz.

- Por que não?

- Há quanto tempo você me ama?

- Desde que você estava dentro de mim. É verdade. - Naquele momento, Renata deixou as lágrimas rolarem. De novo.

- Se é realmente esse caso, então por que me deu esse nome, Paula?

Paula. Ser chamada de Paula pela própria filha era uma espadada no coração. Antes que a mulher pudesse responder alguma coisa, Renata já estava saindo da cozinha, deixando as lágrimas rolar. Paula foi atrás dela e a segurou pelo braço.

- Escute. Você tem que me ouvir. Só um momento. - Renata a olhou por um momento e, percebendo o sincero pesar no semblante da mãe, decidiu dar-lhe uma chance de se explicar.

- Tudo bem. Pode falar. Eu vou ouvir.

- Eu não te criei para ser outra pessoa. Eu te fiz para que você fosse você mesma.

- Não entendo.

- É natural que você esteja confusa. Te dei o nome que você tem por causa dele, é verdade, mas você é insubstituível.

- E o que tem isso a ver? - finalmente, a mãe conseguiu abrir um sorriso.

- Você não percebe? O que eu queria mesmo era alguém que ocupasse o lugar do Renato na minha vida. Mas quando finalmente tive você, percebi que isso era bobagem. Você é o meu tesouro, filha. Ninguém na minha vida vale mais que você. Nenhum “Renato” pode ocupar o lugar que você ocupa no meu coração. Se há alguém que ilumina minha vida é, sem dúvida nenhuma, você.

E ela estava sendo sincera. Não havia dúvida. Renata tinha plena convicção de que o que a mãe falava era verdade. Tão emocionada que ficou, foi incapaz de pronunciar uma palavra. Mas quando recobrou o fôlego, a única pergunta que pôde fazer foi:

- Por que não me contou isso? Por que escondeu de mim durante toda a minha vida?

- Justamente porque eu não queria te magoar. Eu deveria imaginar que um dia, de uma forma ou de outra, você iria descobrir. Agora eu vejo que foi tudo uma grande bobagem. - A garota permaneceu sem nada responder.

- Você acredita em mim? - perguntou Paula.

- Ora. - disse Renata, sem demonstrar qualquer emoção. - Se eu não acreditar na minha mãe, em quem mais eu vou poder acreditar?

Dizendo isso, lançou-se nos braços da mãe, sendo envolvida pelo seu afetuoso abraço. A confiança entre mãe e filha existia, ainda.

De fato, nunca deixou de existir.

Blau Tiger
Enviado por Blau Tiger em 27/03/2013
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