A Última Nota

Ele estava muito satisfeito com aquele momento. Sua figura era imponente envolta por um smoking caro. Caminhou até o meio da sala para que pudesse ver bem a todos. Seus companheiros olhavam-lhe fixamente. O entreolhar do homem com a multidão permaneceu por alguns instantes até que ele, sem ter proferido uma única palavra, saiu. A multidão começou a murmurar entre si, sem intrigada com o proceder do homem.

- Acho que isso quer dizer que é hora de nos prepararmos. - concluiu uma flautista.

Com alguma relutância, o resto do grupo pareceu concordar. Todos saíram daquela grande sala e se dirigiram a uma sala contígua que era ainda muito maior. O burburinho do cochicho do público cessou quase imediatamente quando todas aquelas pessoas bem vestidas começaram a entrar no palco e ocupar suas respectivas posições. Violinistas e clarinetistas posicionaram seus instrumentos, enquanto a plateia os olhava atentamente. O espetáculo estava quase pronto para ter início. Só faltava a peça principal.

O maestro, um homem de alto de cabelos escuros e queixo quadrado, na casa dos cinquenta anos, olhava profundamente para sua face no espelho de seu camarim. A batuta estava sobre a penteadeira. Olhou-a, mas relutou em pegá-la. Fechou os olhos e sorriu.

“Será que esse é mesmo o fim?”

Pensou consigo mesmo. Sentou-se numa poltrona. Parecia não fazer caso de faltar pouquíssimos minutos para o horário agendado para o espetáculo. Olhou para o teto do camarim, mas depois fechou os olhos, sereno.

Em sua mente, começou a visualizar uma paisagem rural, como apreciava. Era um extensa campina com muitos pássaros, borboletas e algumas árvores. Mas além da campina havia um grande espaço cercado. Dentro do cercado havia currais, um horta e uma pequena casa azul. Dentro da casa, uma mulher já agoniada andava de um lado para o outro segurando o bebê que não parava de chorar.

- Eu já não sei mais o que fazer! - disse ela. - Você acabou de comer e trocar a frauda, o que mais você quer? Nenhum dos brinquedos que eu te dei te agrada!

Já quase entrando em desespero, ela correu os olhos pelo quarto, procurando por algo que acalmasse a criança.

- Talvez isso sirva. - concluiu ela. - Veja - disse, pondo o menino no chão perto de um piano de brinquedo que não tinha mais que vinte centímetros de altura. - Quer ouvir uma musiquinha?

Dizendo isso, pôs o dedo sobre uma tecla aleatória e a tocou três vezes, plim, plim, plim. Não deu cabo do pranto da criança, mas notavelmente chamou-lhe a atenção. Percebendo isso, a mulher continuou pressionando, aleatoriamente, com seu dedo, as teclas do piano de brinquedo.

- Viu? O som não é bonito?

Finalmente, o menino teve a curiosidade de tocar com seus próprios dedos. Aquilo, sim, pareceu acalmá-lo. Cessou o choro barulhento. Seus posteriores soluços eram abafados pelas notas repetidas.

- Graças a Deus! - suspirou a mulher. - Até que enfim encontrei algo que acalme esse moleque!

Àquela ocasião, porém, não suspeitava a mulher que tinha apresentado ao garoto muito mais que “algo que o acalmasse”, mas, de fato, a vocação de sua vida. Talvez tivesse desconfiado disso mais tarde naquele mesmo dia, considerando o trabalho que teve para tirar o garoto do piano na hora do jantar.

E assim os dias foram passando. Ele gostava muito de seus bichos de pelúcia, brinquedos de plástico e bonequinhos. Mas, de longe, o seu favorito era o piano, pelo qual o menino apresentava uma inefável paixão. Começou tocando notas repetidas de forma não muito diferente que fizera sua mãe para lhe acalmar naquele dia, mas foi gradativamente passando ao mais complexo. Não muito, evidentemente, tendo ele apenas dois anos de idade.

Cresceu como qualquer criança cresce. Com o tempo passou a gostar dos esportes, de subir em árvores e das brincadeiras que atraem qualquer criança. Mas ao final da tarde, depois de tomar seu banho e até a hora de dormir, ele não saía da frente do piano. Sua dedicação era admirável. Talvez fosse necessário algo mais para despertar sua paixão.

Certa vez, numa tarde de domingo, quando sua mãe passava aflitivamente as estações do rádio, procurando algo que lhe agradasse ouvir, acabou sintonizando numa estação que apresentava uma peça dramática: o Tannhauser, de Wagner. Isso chamou a atenção do garoto na mesma hora. Fechou os olhos e se sentiu tomado pela música. Por poucos segundos, até que sua mãe mudasse novamente a estação, como a música não lhe agradava.

- Por que você tirou? - protestou o menino. A mãe ficou a olhar-lhe, espantada. - por que você tirou? - tornou ele a perguntar.

Ainda um tanto intrigada com a reação do menino, ela voltou à estação anterior e deixou a música tocar até o fim. O garoto estava maravilhado, mesmo não sabendo que música era. O locutor esclareceu logo em seguida tratar-se da ópera de Wagner.

- Isso foi incrível! - dizia ele, empolgado. - Eu quero ouvir mais músicas como essa, mamãe!

- Você gosta? - mesmo considerando sua dedicação ao piano de brinquedo, a mulher encarou o interesse do filho pela música com grande estranheza.

Ruborizado, o menino limitou-se a consentir com a cabeça.

- Então acho que vamos comprar alguns discos pra você. - Afinal, uma mãe deve satisfazer os desejos de seus filhos, certo?

Tocou no assunto com seu marido naquela mesma noite, quando os dois lavavam os pratos depois do jantar.

- Nosso pequeno Klaus parece gostar muito de música. - comentou a esposa.

- Que bom! - exclamou o homem. - Dá pra ver como ele gosta de brincar com o pianinho.

- É mesmo. Já pensou em comprar alguns discos pra ele?

- Ora! Seria ótimo. Mas em vez de gastar dinheiro com isso, que tal mostrar a ele alguns dos nossos?

Com um riso gracioso, a mulher acrescentou:

- Acho que ele não vai gostar de nenhum dos nossos. Você deveria comprar algo que ele goste. - O homem mostrou-se um tanto aborrecido pela pressuposição da esposa, mas ainda assim teve vontade de perguntar:

- Por que acha que ele não vai gostar dos nossos?

- Você verá que esse não é o estilo dele. Ele deve gostar de coisas muito mais grandiosas, elevadas.

Seguindo o conselho da esposa, o homem foi à loja de música naquela mesma semana e comprou dois discos clássicos. Quando caiu a noite, Klaus, como de costume, tocava com avidez seu piano de brinquedo. Mas o pai interrompeu sua brincadeira por carinhosamente pegá-lo pela mão e conduzi-lo à sala de estar.

- Venha, Klaus - dizia ele. - Vamos ouvir um pouco de música.

Ao colocar alguns de seus discos preferidos na vitrola, o pai observou com satisfação seu filho gostar da música. Foi sua oportunidade de sorrir maliciosamente para a esposa e dizer:

- Você se enganou, querida. Ele parece gostar sim dos meus discos.

- É, parece que me enganei. - disse ela, num suspiro. - Mas mesmo assim, ponha os discos que você comprou.

Klaus gostou dos discos do pai, mas sua reação foi evidentemente diferente ao ouvir Beethoven. Mostrou-se extraordinariamente entretido, exatamente como daquela vez que ouvira Wagner.

- Essa é a melhor! Essa é a melhor! - bradava o menino, encantado pelo pesado, mas ao mesmo tempo harmônico arranjo orquestrado.

- Afinal, talvez você estivesse certa. - disse o homem.

Era evidente para os pais e para todos os amigos de suas brincadeiras de infância, que nada atraía mais ao pequeno Klaus que a música. Eventualmente seu pai trazia mais discos para casa. E Klaus ficava cada vez mais maravilhado com a música. A paixão que apresentou ao tocar seu piano de brinquedo pela primeira vez intensificava-se com cada música que conhecia.

Com o tempo, porém, nada mais natural que surgir uma contestação que, na cabeça de um menino de cinco anos, fazia o maior sentido:

- Por que eu não consigo tocar como eles? Por que meu piano não faz sons como os da vitrola? - Os pais ouviram isso com uma risada.

- Um piano de brinquedo não faz esses sons, meu filho. - disse a mãe. - Você teria que ter um piano de verdade. . . e vários outros instrumentos.

- Então meu piano não é de verdade? - Talvez essa tenha sido a maior decepção de sua tenra vida.

- Não. - os dois disseram firmemente.

- Um piano de verdade é bem maior. - disse o pai.

- Você me dá um, papai? - a determinação do menino quase transbordava pelos olhos. - Eu também quero tocar como o Beethoven!

- Infelizmente, meu tesouro, o papai não tem dinheiro para te dar um piano agora. Um piano é muito caro. Talvez daqui alguns anos. . .

E a discussão estendeu-se por vários minutos. O filho insistia, insistia, mas o pai persistia em dizer que um piano estava fora do orçamento, e a decepção aumentava e aumentava. A decepção deixou o menino arrasado, e logo depois transformou-se em choro. Nada como o choro de uma criança para convencer seus pais.

- Tudo bem, querido, não precisa chorar. - disse a mãe, pegando-lhe nos braços. - Eu tenho uma ideia.

Não muito depois, ela organizou uma reunião com os membros de sua família acerca do piano que estava na casa de sua tia, e que nenhum membro vivo da família sabia tocar. Falar da inclinação musical de seu filho foi o bastante para que todos os membros da família concordassem em transferir o velho piano para sua humilde casa.

Klaus de início sentiu-se intimidado pelo tamanho do piano, mas foi estimulado logo que ouviu seu sublime som. E não tardou para que seus pais, finalmente tendo-se convencido de que o garoto poderia ser um grande músico, resolveram contratar um professor particular.

As aulas eram caras, e deixavam os pais em grande aperto financeiro, mesmo não tendo pagado nada pelo piano, exceto pelo transporte do instrumento. Mas se era pela educação do filho e ao mesmo tempo para sua diversão, eles estavam dispostos a pagar.

O professor ia à casa deles duas vezes por semana. Devido à anterior dedicação ao piano de brinquedo, o garoto apresentava incomum facilidade em tocar músicas que usavam apenas uma oitava, e isso deixou o professor muito impressionado. É verdade que Klaus se intimidava pelo tamanho do piano, e ficava frustrado pela dificuldade em alcançar teclas que ficavam distantes uma da outra, mas ainda assim, sua dedicação era incrível. O professor logo percebeu que aquele menino tinha futuro para a música e o levou à sua casa para mostrar-lhe alguns de seus discos, e Klaus ficava cada vez mais e mais encantado.

Ouvindo as sinfonias e oratórios apresentados por seu professor, Klaus se deu conta que o piano não era o único instrumento. Não que ele não soubesse disso antes, mas começou pela primeira vez a se sentir grandemente encantado pelo som de outros instrumentos como o violino e o clarinete. E foi daquele ponto em diante que Klaus decidiu aprender também outros instrumentos. Sua decisão ser músico, porém, já vinha de muito mais cedo, desde a tenra idade.

Quando entrou na escola, Klaus já tinha ganhado a alcunha de músico entre seus colegas. Ele tocava piano cinco horas por dia, e mostrava incomum talento para sua idade. Foi aos nove anos que seu pai lhe deu um violino, e isso deixou o garoto radiante.

Quando Klaus chegou ao colegial, ele não passou pela indecisão da maioria dos seus colegas ao escolher um caminho a seguir na vida, porque para ele a escolha era evidente. Certa vez, numa rodinha com seus colegas de escola mais chegados, conversando sobre o futuro, alguém perguntou a Klaus:

- E você, Klaus? Vai ser músico? Vai fazer o teste para a Academia Nacional de Música? - com semblante calmo e olhar distante, ele respondeu brandamente:

- Não. - Sua curta resposta espantou a todos.

- Por quê não? - inconformou-se um de seus amigos. - Você passa fácil, fácil!

- Eu quero levar minha vida como músico, é claro. Mas meu objetivo não é ser aluno da Academia Nacional de Música.

- Então o quê? - nessa hora sim, os olhos do garoto brilharam.

- Eu quero ser maestro!

- Nossa! É um excelente sonho.

- Pois então faça o curso de regência na Academia Nacional de Música e você será um super maestro. - com um sorriso ingênuo e ao mesmo tempo alegre, Klaus meneou a cabeça.

- Eu não quero. Só tem um homem que eu quero como meu mestre. Quando terminar a escola, eu quero ir e aprender regência com ele.

- Isso é que é determinação. - falou alguém da roda. E, daquele ponto em diante, o futuro de Klaus não teve mais espaço na conversa.

Mas Klaus era realmente determinado, e não havia outro que pudesse ser seu mestre senão Rafael di Fiori.

Aos dezessete anos, logo depois da cerimônia de formatura, o rapaz viajou durante nove horas com a permissão de seus pais até a cidade em que aquele homem morava. Mesmo depois de chegar lá, ele perambulou durante horas, como um turista perdido, sendo torturado pela fome e pelo frio da noite, que já estava bem avançada. Mas, depois de horas de procura e angústia, finalmente ele conseguiu chegar à sala onde seu ídolo, Fiori, estava treinando com a orquestra para a próxima apresentação.

Ao ver o Hall de longe, começou a correr determinado. Afinal, sua busca tinha dado resultado. Chegou perto e viu o portão fechado com um segurança uniformizado postado à porta. Klaus se aproximou sorridente e disse:

- Vim ver o maestro.

- E quem te deu permissão pra vê-lo?

- Ninguém, mas. . . eu vim de muito longe só para vê-lo. Tenho certeza que se eu puder vê-lo ele não terá problema em falar comigo.

- Sinto muito, garoto. - O homem mantinha sua postura imutável, e Klaus logo percebeu que reclamar ou implorar não mudaria absolutamente nada de sua atitude. Afinal, ele estava apenas fazendo seu trabalho.

Mas nem por isso ele voltaria para sua cidade sem ter cumprido seu objetivo. Deu a volta no quarteirão e percebeu que ao longo de quase toda a rua paralela à da entrada do teatro havia uma grande muralha de concreto sem pintura. Calculou seus passos de modo a ficar bem atrás do hall e, com alguma dificuldade, escalou o muro. Não tinha ninguém olhando, pois já era tarde da noite, e mesmo que houvesse, ninguém iria repreendê-lo por fazer aquilo, pois parecia não haver nada atrás do muro, mesmo.

Klaus levou um susto ao ver que o chão era bem mais baixo do outro lado, então foi descendo vagarosamente pela parede, encaixando com dificuldade os seus pés nos intervalos do concreto, mas não conseguiu manter a façanha por muito tempo e caiu desastrosamente no chão. Por sorte já tinha atingido uma altura razoável para não ter nenhuma lesão grave, mas ainda assim sentiu muita dor com a queda.

Ao se levantar, percebeu que estava num beco estreito, porém longo, que não parecia levar a lugar algum, mas resolveu continuar seguindo-o, até chegar a uma pequena parede de tijolos. Destemido, escalou a parede e viu o hall. Estava ali, bem à sua frente. Com esforço, ele havia atingido seu objetivo. Mas, ao pular o muro, o segurança logo notou que ele estava ali.

- Ei, você! Que está fazendo? - O homem uniformizado começou a correr em sua direção, mas Klaus, ainda determinado em alcançar seu objetivo, correu para dentro da sala, sem olhar para trás. Se o segurança o alcançasse, tudo estaria perdido.

Enfim, ele conseguiu chegar ao auditório, e lá de longe ele viu o seu tão admirado maestro di Fiori ensaiando com a sua orquestra. Mesmo sendo apenas um ensaio, a cena deixou o garoto encantado, de modo que parou ali em pé no corredor e ficou admirando. O segurança se aproximou e agarrou com violência o seu braço.

- Vamos embora.

Sem tirar os olhos do palco, o rapaz replicou:

- Agora que eu cheguei até aqui, você não vai me deixar falar com ele? - O guarda ficou olhando-o admirado. - Por favor, não me tire essa chance.

Afinal, resolveu fazer vista grossa. Sabia que estava dissimulando seu dever como segurança, mas a paixão do garoto lhe convenceu de que seria um desperdício tirar-lhe aquela chance de conhecer o seu tão amado maestro. Com um suspiro, consentiu:

- Tudo bem, vá!

Klaus correu empolgado em direção ao palco.

- Maestro! Maestro di Fiori!

Lá estava a figura dum homem de baixa estatura, de cabeça oval, com o cabelo arrastado para trás e óculos de lentes grossas, conduzindo elegantemente os músicos com a sua batuta. El ficou intrigado ao ver Klaus se aproximar e subir no palco.

- Quem é você? - indagou, ríspido.

- Maestro, é um prazer conhecê-lo, meu nome é Klaus Höek. - disse, estendendo-lhe a mão. O maestro, embora ainda um pouco desconfiado, apertou-lhe a mão.

- Está tão ansioso que veio assistir ao nosso ensaio, pequeno Klaus? Não pôde esperar até a apresentação da orquestra?

- Não é isso. - disse o rapaz, ainda radiante. - Eu vim para te pedir a honra de ser o seu aluno. - Todos os músicos começaram a olhar o jovem com um sorriso malicioso.

- Quer ser meu aluno?

- Eu quero ser maestro. E quando vi o senhor regendo a sétima sinfonia de Beethoven o ano passado, eu tive certeza, aquela era a visão do maestro que eu sempre quis ser! Então, maestro, por favor, me ensine! Eu quero ser seu aluno! Só o senhor pode me ensinar. - Pensativo, o maestro coçou o queixo e disse, com certo cinismo:

- Você tem que se mostrar digno de ser meu aluno, garoto. Mostre que você merece tocar na minha orquestra. - e sinalizou um violinista, que, ainda com aquele sorriso malicioso, levou o violino para Klaus tocar.

Dez minutos depois, Klaus foi severamente expulso da sala.

- Você chama isso de música? Isso foi a pior e mais amadorística apresentação que eu já vi! Volte quando tiver algum real talento! Segurança, tire esse incompetente daqui! - gritou o maestro di Fiori, eufórico.

Ao voltar para a sala porém, todos os músicos o estavam fitando com o mesmíssimo sorriso malicioso que deram para Klaus.

- O que vocês estão olhando?

- Você pode tê-lo rejeitado, maestro, pode tê-lo expulso do teatro e até gritado com ele. Mas você sabe que aquele garoto um dia será um grande músico. - a isso ele respondeu com um sorriso.

- Sem dúvida. - falou ele. - Sem dúvida nenhuma. Ele demonstrou tanta paixão, e tanta habilidade que não há dúvidas que ele tem futuro com a música. Mas. . . - ele fez uma breve pausa - ele ainda tem que melhorar muito pra poder ser meu aluno. - e todos riram. - Muito bem, seus molengas, esqueçam isso, agora vamos continuar com o ensaio.

Como Klaus teria sido consolado por ver o diálogo que se deu ali, logo depois que ele saiu! Mas não era esse o caso. Ele estava arrasado. Qualquer um ficaria, ao ser rejeitado de tal forma por seu ídolo. Klaus voltou para sua cidade muito desanimado e ficou vários dias longe do piano e do violino, o que deixou seus pais realmente preocupados. Nunca antes em sua vida ele esteve num ânimo tão baixo. Mas tudo que ele precisava para recuperar seu ânimo era se apaixonar pela música novamente, e isso aconteceria da forma mais inesperada.

Klaus não havia entrado para a Academia Nacional de Música. Não era esse o seu plano. Ele queria apenas ser discípulo de di Fiori, e isso lhe fez perder essa chance. E a maioria de seus colegas de escola tinha entrado para a faculdade. Klaus passava aqueles dias tocando seu violino para os passarinhos que o visitavam na janela de seu quarto, sem nenhuma preocupação com o futuro, já que parecia não haver futuro para ele. Mas frequentemente seus ex-colegas de escola o chamavam para passear pela cidade, que era uma distração para relaxar do árduo nível de estudo imposto pela faculdade.

Numa noite dessas, andando pela cidade, o grupo de Klaus e mais quatro colegas entrou num bar, desses que se faz happy hour. Por acaso, naquele dia, Klaus descobriria algo que mudaria sua vida.

- Esse bar tem música de piano, você gosta, não é Klaus? - perguntou-lhe um de seus colegas. Klaus não respondeu, pois isso era muito pouco para lhe empolgar.

Porém, ao se recostar e tomar o primeiro gole de brandy, ele começou a prestar atenção na música pela primeira vez. Era uma boa performance. Na verdade, muito boa. Não pôde mais resistir. Sentiu-se totalmente seduzido pela bela melodia. Fechou os olhos e deixou sua alma se perder pelos Portões de Kiev de Mussorgsky. Quando a música acabou, ele se virou para ver quem era o intérprete. Uma belíssima mulher na casa dos vinte anos, alta, com logos cachos dourados e olhos azuis-claros parecendo lagoas profundas e um nariz pequeno.

Ela saiu do bar às vaias da multidão, que não entendeu nada da música que ela tinha acabado de tocar. Mas Klaus tinha entendido. Inconformado, o rapaz se levantou e ficou com olhar distante à saída do bar.

- Parece que ninguém gostou do que aquela pianista tocou. O que você achou, Klaus? - perguntou o amigo que estava ao seu lado. Sem responder, ele saiu correndo do bar atrás da garota. - Klaus!

Ao sair, olhou quase que desesperado para os lados alvejando a pianista. Ao vê-la descendo a rua, correu esbaforido em sua direção.

- Ei, ei, garota! - ela se virou vagarosamente para olhá-lo. - Eu estava lá no bar, eu vi você tocando. - Continuava a olhá-lo com a face inexpressiva. - Você toca muito bem! - finalmente, a garota abriu um sorrisinho.

- Eu sabia. - disse ela, alegre. - Eu sabia que minha música iria cativar pelo menos uma pessoa, mesmo que a maioria não tenha gostado e não tenha feito segredo disso, eu sabia que minha música atingiria pelo menos um coração.

Klaus suspirou e olhou para o estrelado céu noturno, cheio de satisfação.

- Essa é a mágica da música.

- E é por isso que eu amo música. - disse a pianista.

- Qual é o seu nome? - pergunta Klaus.

- Antonia. - diz ela. O homem soltou uma breve risada e disse:

- Mas, Antonia, por que você é uma pianista de bar? Não percebe que aqueles caras são idiotas demais pra gostar da sua música? Você deveria ser uma pianista de concerto, e aí sim você ia ter o apreço que merece. - Ela ficou longo tempo olhando-o com uma expressão curiosa.

- Você aprecia muito a música, não é? Deve amar orquestras e apresentações pomposas.

- Sim! - exclamou ele empolgado.

- E aí é que está a diferença entre nós dois.

- Como?

- Não me entenda mal, eu amo orquestras, assim como você, mas não vejo a menor graça em fazer parte de uma. O que eu quero mesmo é espalhar a minha música pelo mundo, contagiando corações como o seu, mesmo que seja um entre cem que não gostam.

- Mas Antonia, você. . .

- Vai dizer que estou desperdiçando meu talento? Já cansei de ouvir isso dos meus pais e professores. Mas eu estou muito satisfeita com o que faço. Meu objetivo é tocar para todas as pessoas, para que todas conheçam a beleza da música. É por isso que eu sou uma pianista de bar. As pessoas que me ouvem no bar dificilmente me ouviriam num concerto.

Klaus não soube o que responder. Várias coisas passavam pela sua cabeça. Aquele amor de Antonia pela música, que ela deixava fluir de forma tão espontânea, realmente lhe fez pensar que, em algum momento, ele teria esquecido do significado da música. Ele queria ser o melhor. Somente o melhor poderia ser aluno de di Fiori. Mas seria essa a atitude correta para com Orfeu? A atitude de Antonia parecia bem mais correta. A música a ele assim como cativava a ela, mas ela queria que mais pessoas se cativassem. Ela queria apenas deixar que todos vissem como a música é sublime. E essa atitude parecia tão bela quanto a música que ela produzia no piano.

Certamente, ela entendia muito bem o propósito da música, que, na verdade, não tem propósito nenhum.

Klaus se adiantou em segurar-lhe a mão.

- Você me cativou. Acho que nós dois podemos cativar ainda mais corações.

- Do que você está falando? - pergunta a garota, assustada.

- Meu nome é Klaus Höek. Antonia, para mim será um prazer fazer música cativante com você.

Conhecer Antonia, pensou Klaus, foi uma das coisas mais maravilhosas que lhe aconteceu. Ela lhe fez redescobrir a música, e isso foi como renascer. Em questão de técnica e habilidade, Klaus e Antonia podiam ser equiparados, mas o ideal musical de Antonia parecia muito mais nobre que o de Klaus.

Klaus queria ser o melhor. Queria mergulhar profundamente nesse maravilhoso mundo da música e se aproximar cada vez mais da perfeição. Queria ser um mestre na arte da composição. Assim como Mozart. Mas Antonia queria algo bem mais simples, porém tão difícil quanto: que todos apreciassem a música. Que todos, como ela e Klaus, amassem a arte da combinação dos sons. E Klaus passou a apoiá-la nisso. Os dois chegavam até mesmo a fazer apresentações gratuitas na rua, em largas avenidas, onde todos pudessem ver. E os dois começavam a ficar cada vez mais apaixonados. Apaixonados um pelo outro, sim, mas também apaixonados pelo amor que o outro tinha pela música.

Num dia desses, quando os dois estavam na casa de Klaus, brincando com o piano, Klaus lhe contou de tudo que havia passado que o levou ao encontro de Antonia.

- Eu fico feliz que reascendi o fogo da sua paixão pela música, Klaus, mas tenho certeza que isso teria acontecido, de um jeito ou de outro, se você não tivesse me conhecido. - Inexpressivo, o garoto apenas olhava distante pela janela.

- Mas ainda assim eu sou grato, Antonia. Graças a você percebi que posso ser feliz vivendo de música, mesmo sem ser aluno do di Fiori, assim como você é.

- Por que você não entra para a Academia Nacional de Música? - ele a olhou, pasmo.

- Mas Antonia, isso não vai contra os seus ideais? Eu pensei que você quisesse apenas. . .

- Sim, sim - interrompeu ela, balançando as mãos - a Academia de Música de nada serviria para mim, mas serve para você. Você não quer ser maestro?

- Eu quero, mas. . .

- Klaus, você não está indo contra nada - ela dizia sorrindo - nós dois amamos a música, e isso é que importa. Só que seu jeito de alimentar o seu amor é diferente do meu.

- Eu seria feliz se, assim como você, pudesse atingir vários corações com a minha música.

- E você poderá, se for maestro. Da mesma forma que você se cativou ouvindo Wagner no rádio, ou vendo o di Fiori regendo Beethoven, se você for maestro poderá gritar com todas as forças para o mundo que você ama a música, Klaus. Isso não é maravilhoso?

- Você parece uma garotinha apaixonada falando. - disse o outro, com um riso ríspido.

- E eu sou. E se essa minha paixão te cativa a ponto de te fazer decidido a viver pela música e para a música e com a música, eu fico feliz. Na verdade, nada poderia me fazer mais feliz. - ele ficou olhando-a um longo tempo, sem dizer uma palavra.

Antonia se sentiu meio constrangida, como se tivesse dito uma coisa meio boba, mas Klaus entendeu exatamente o que ela quis dizer. Ela se virou de volta para o piano e começou a tocar alguma coisa, mas Klaus a abraçou por trás, interrompendo-a com um susto.

- E se a música é capaz de fazer alguém feliz, você também é. - ela permanecia taciturna. - Antonia, também eu serei feliz se viver para sempre ao seu lado. Você quer ser a minha família?

- Klaus! - ela gritou visivelmente espantada. Mas não precisou pensar muito para saber que aquilo era o que ela realmente queria.

Talvez Klaus tenha sido a única pessoa a quem Antonia realmente atingiu como queria, mas ela sabia, ele seria um grande músico, e isso lhe ajudaria a divulgar a música a muitas pessoas, assim como Klaus já lhe vinha ajudando a fazer. Certamente, aqueles dois jovens tinham sonhos diferentes, mas seus sonhos podiam perfeitamente se complementar.

E deveras o fogo da paixão de Klaus pela música ardia mais forte que nunca antes em toda sua vida. Sua dedicação tanto ao piano quanto ao violino era admirável. O dia todo, enquanto estava acordado, ele não parava de tocar. E isso deixava a atmosfera de sua casa mais alegre, mesmo para seus pais, que eram leigos em música, pois a energia que Klaus transmitia com sua música era admirável.

Klaus seguiu o conselho de Antonia e entrou para a Academia Nacional de Música. Foi aprovado com louvor para o curso de violino. Por que violino, se Klaus gostava mais do piano e se considerava melhor pianista que violinista? Havia uma série de fatores que o fez optar pelo violino, em vez de piano ou mesmo regência, mas o principal foi a sua lembrança daquela noite com di Fiori, em que Klaus falhou miseravelmente em agradar ao seu ídolo com o som do violino. Se fosse possível, sim, ele faria de tudo para melhorar no violino e provar para o mundo que ele poderia ser um grande músico.

Mas apesar de ser aluno do curso de violino, ele frequentemente conversava com os alunos e professores do curso de piano, e todos compartilhavam excelentes experiências.

Cinco anos depois, Klaus se formou com distinção. O melhor aluno de sua turma e, mais do que isso, um dos melhores que aquela escola já havia conhecido. E durante todos esses anos, seu namoro com Antonia continuou firme, embora os dois nunca tenham falado em casamento.

Na noite de sua conclusão, Klaus foi a um refinado restaurante para comemorar com seus pais e Antonia.

- O que você vai fazer agora? - ela lhe perguntou, durante o jantar.

- É mesmo, filho, o que você vai fazer agora? - a mãe reforçou a pergunta. - Você foi aprovado com distinção pela Academia Nacional de Música, todas as portas do mundo da música estão abertas pra você. Você pode ser violinista de concerto ou fazer parte de qualquer orquestra que quiser.

Klaus deu um longo e apreciativo gole em sua taça de vinho e, com expressão séria, disse:

- Ser aprovado com distinção pela Academia Nacional de Música. . . me pergunto se isso é bom o bastante para ele.

- Di Fiori? - perguntou Antonia, pasma. - Você ainda quer ser aluno dele?

- Se eu quero? Não foi com esse objetivo que dei o meu melhor nesses cinco anos? Meu sonho é ser maestro, e só di Fiori pode me ensinar.

- Então vá atrás dele e mostre que você merece, Klaus. - falou o pai. - Seria um pecado não fazer isso. - os outros três a mesa ficaram olhando-o fixamente.

- Eu mesmo te levei para ver o di Fiori apresentando a sétima sinfonia do Beethoven. Lembro como se fosse ontem. Você tinha dezesseis anos, mas do jeito que seus olhos brilhavam, parecia que tinha três. Você quer ser aluno dele porque a música dele te encanta. Se é isso que você quer da vida, não deve deixar que nada, nada mesmo, fique no seu caminho, Klaus.

Klaus olhava um tanto assustado para seu pai, mas se convenceu de que o que ele falava era verdade. Ele ficara encantado com a performance de di Fiori e queria ser como ele. Não haveria melhor objetivo em sua vida.

- Obrigado pelo seu apoio, papai.

Cerca de um mês depois, di Fiori regeria uma orquestra no teatro municipal, e Klaus não hesitou em gastar boa parte de suas economias para comprar o ingresso. Ele e Antonia assistiram empolgados à belíssima apresentação da orquestra e da elegância do maestro ao reger. Os dois se emocionaram com a música e até choraram, bem como muitos dos presentes ali. Afinal, o teatro estava cheio.

Quando a música terminou e todos aplaudiam vividamente, a namorada deu-lhe o alerta:

- Não perca tempo! Vai logo falar com ele!

O rapaz correu desesperadamente para perto do palco enquanto todos ainda aplaudiam. O maestro havia terminado de fazer sua última reverência quando ele, já a uma distância razoável, gritou com todas as suas forças:

- Maestro di Fiori, olhe para cá! - a expressão do maestro ao ouvir seus gritos era nada a duma pessoa realmente surpresa. Incomensurável, porém, foi a felicidade de Klaus diante de sua reação. Ele balbuciou quase involuntariamente:

- Klaus Höek? - ele realmente se lembrava do seu nome!

Contrariando a diretriz, di Fiori desceu do palco e se aproximou do jovem. Depois dum caloroso aperto de mão, Klaus passou a dizer:

- Eu assisti sua apresentação de hoje, foi realmente incrível. - e com um grande sorriso de satisfação, acrescentou: - E um dia eu vou ser como você!

- Você fala demais pra um garoto que nem sabe segurar um violino direito. - Klaus não se sentiu desanimado e tampouco intimidado.

- Isso foi há muito tempo. Se me der uma chance, quero te mostrar o quanto eu melhorei. - O maestro deu uma gostosa risada, mas depois tirou um pequeno recorte de papel do bolso do smoking e lhe entregou.

- Apenas escolha o dia e lugar e me mostre do que você é capaz, pequeno Klaus. - foram as últimas coisas que ele disse antes de voltar para o seu camarim.

Antonia se aproximou de Klaus logo em seguida.

- Você conseguiu falar com ele? - perguntou ela.

- Consegui, mas foi muito rápido. - respondeu o rapaz, atônito. E, virando-se para a mulher, falou enfaticamente:

- Ele se lembrou de mim, acredita? Ele se lembrou do meu nome! - Sem saber o que responder, Antonia apenas forçou um sorriso. - Veja, Antonia. - prosseguiu Klaus - Ele me deu o telefone dele. Com certeza ele quer se encontrar comigo de novo.

- Você tem que mostrar para ele o que você aprendeu. Assim talvez ele aceite ser o seu mestre. - Klaus fitou o horizonte, determinado.

- Espere pra ver, di Fiori, espere para ver!

Poucos dias depois, Höek e di Fiori marcaram um encontro numa rua que ficava perto daquele mesmo teatro, e o maestro levou o seu propenso aprendiz de carro para um lugar reservado em que eles pudessem conversar: uma velha e pouco visitada loja de instrumentos musicais, cujo dono era bem conhecido pelo maestro.

- Suponho - falou Klaus - que o senhor me trouxe aqui porque quer que eu toque?

- Claro. - consentiu o outro. - Mostre-me o que você sabe, pequeno Klaus. Espero não ter a mesma decepção de cinco anos atrás. - Klaus sentiu-se levemente ofendido.

- Depois que o senhor me rejeitou, eu treinei com muito, muito afinco mesmo para melhorar.

- Treinou para me agradar? - perguntou di Fiori, com um sorriso escarnecedor.

- Não foi isso que eu disse. - replicou Klaus, sério, já com o violino apoiado no queixo.

Antes que o maestro pudesse dizer mais alguma coisa, o rapaz já estava mostrando todo o seu potencial. Tocava com virtuosismo, mas sem perder a elegância. Os sentimentos fluíam claramente com sua música, assim como Antonia tinha lhe ensinado. No violino, Paganini, no piano, Rachmaninoff. Klaus tinha apenas vinte e dois anos, mas não seria exagero dizer, seu nível era o de um músico profissional. Foi uma longa sessão de música. Durante uma hora, não houve diálogo entre os dois, apenas a exibição máxima da capacidade musical do jovem perante o maestro.

Ao terminar a última peça no piano, ele o olhou e disse, confiante:

- Que achou?

- Impressionante.

Höek se levantou e lhe entregou o diploma da Academia Nacional de Música.

- Formado com distinção em violino, hein? - admirou-se o maestro. Mas em seguida devolveu-lhe e replicou: - Acha que isso é bom o bastante para mim? - Höek balançou a cabeça, indiferente.

- O senhor é quem sabe. Já me viu tocando o melhor que consigo. - ele deu uma breve e risada e falou:

- Pequeno Klaus, por que você quer ser maestro?

- Porque eu amo a música, e quero que outras pessoas também sintam essa paixão. - pela primeira vez, di Fiori mostrou-se admirado.

- Pensei que você quisesse ser o melhor.

- E quem será que é o melhor na música, maestro? Aquele que tem maior virtuosismo? O que toca mais rápido? O músico que nunca erra uma nota? Ou será simplesmente aquele que se expressa melhor? Aquele que ama o que faz, e consegue cativar os outros com a sua música? - O maestro permanecia taciturno, tocando delicadamente as cordas duma guitarra ali abandonada com seus dedos.

- Eu sempre soube. Soube desde a primeira vez que te vi. Aquele garoto ingênuo e empolgado com a música. Logo que o vi, tive certeza que você tinha grande paixão pela música, mas eu achei era que te faltava maturidade. Mas agora - ele o olhou com um sorriso radiante. - agora eu tenho certeza que você entende o significado da música. A música é um presente que nos foi dado por Deus, mas não é só Ele que presenteia a humanidade com a música. Pessoas como Wagner, Beethoven e Mussorgsky também nos presentearam com belas obras. E eu, como maestro, procuro passar esse presente adiante. Porque todos devem, todos merecem ouvir a música.

Klaus estava impressionado, na falta de melhor termo. Ele sabia que aquele homem à sua frente teve uma vida inteira dedicada à música, mas falava dela com a mesma empolgação que uma criança que ganha um brinquedo novo. Seus olhos brilhavam. Era exatamente esse tipo de sentimento que Antonia havia lhe ensinado a cultivar, e agora ele sabia, era exatamente o que di Fiori esperava dele.

- Diga-me, Klaus, você que presentear o mundo com a sua música?

- Sim, senhor!- sua resposta em brado não deixava dúvida de sua determinação.

- Então você é digno de ser meu aluno.

Mais tarde naquele mesmo dia, Klaus foi dar a notícia a Antonia radiante como ela nunca o tinha visto antes.

- Ele me aprovou! Agora eu finalmente vou poder realizar o meu sonho! - ele dizia, quase chorando de tanta alegria.

- Meus parabéns, Klaus. Eu sabia que ele não poderia te rejeitar. - e, depois dum breve momento de silêncio, ela continuou: - então você vai mesmo continuar os seus estudos para se tornar maestro? O que vai ser daqui em diante?

- Vou morar na casa do di Fiori. Eu tenho que ser quase como seu escudeiro para ele me passar tudo que ele sabe. Mas sempre que ele permitir, você pode ir almoçar lá, Antonia. - ela permanecia calada, sem fitá-lo.

- Você não parece muito empolgada. - disse ele. - Você também não quer que eu seja maestro?

- Claro que eu quero! - replicou ela. - Mas o que eu estou pensando mesmo é que agora nós vamos ficar longe um do outro. E eu nunca encontrei alguém como você, que realmente percebe o encanto da música.

- E quando eu for maestro, o encanto da nossa música será ainda maior, não é? - Klaus tentava animá-la com suas palavras, mas não parecia ter sucesso. - E você será a pianista de todas as orquestras que eu reger que tiverem piano, eu garanto! - ela continuava com a mesma expressão. Klaus teve que partir quase para o desespero, mas ainda assim estava expressando seus sentimentos puros. - Assim que eu sair da casa de di Fiori, nós vamos nos casar! - finalmente ela o olhou, assustada.

- Kla. . .- ele a abraçou, não deixando que ela terminasse a frase. Sem pronunciar uma palavra, ela apenas retribuiu o abraço.

E depois disso, não demorou muito para que Höek fosse morar na mansão de di Fiori, conhecesse a sua encantadora esposa e todos os criados da mansão. Di Fiori se adiantou em deixar claro que, a partir dali, Höek respiraria música. O dia todo, os dois ficavam juntos. Höek não apenas tinha aulas teóricas com o maestro, como também acompanhava todos os seus ensaios com a orquestra, sempre que havia alguma apresentação marcada. Na mansão do maestro havia uma sala reservada especialmente para a música e lá os dois ficavam treinando durante muitas horas diariamente, amiúde até tarde da noite, mas Höek nunca ia dormir sem escrever uma carta para Antonia.

Assim foi a rotina desse home durante muitos anos felizes. Certa vez, na noite de estréia da apresentação duma orquestra que seria regida pelo maestro di Fiori, todos os músicos estavam muito nervosos esperando para subir no palco. Todos comentavam entre si:

- Eu treinei muito para essa noite, mas ainda estou com medo de fazer feio.

- A possibilidade de falhar me aflige.

- Ora, relaxem. Nós nos preparamos bem para esta noite. Nervosismo agora só vai atrapalhar. Então fique tranquilo e apenas toque o que você gosta.

Em meio a tanto nervosismo, o maestro estava visivelmente relaxado, sentado numa poltrona lendo um livro antes da apresentação. Höek assistia àquilo tudo com muito divertimento. Ele não estava nervoso, porque não tinha parte na apresentação, mas ver o nervosismo e a apreensão dos outros músicos lhe proporcionava um prazer que não era do tipo sádico, mas sim advindo de sua ansiedade de assistir àquela bela peça.

- Klaus. - chamou di Fiori, sem tirar os olhos de seu livro. - Diga, jovem, você se acha capaz de reger essa peça? - Ele meditou por um momento e respondeu relutante:

- Acho que sim.

- Pois bem. - disse ele, fechando o livro e se levantando. - Senhoras e senhores, prestem atenção. Sei que vocês estão nervosos, mas tenho um anúncio a lhes dar: eu não vou reger esta noite. - o burburinho começou antes que ele tivesse terminado de falar. - Aqui está o maestro que os conduzirá esta noite: Klaus Höek. - e lhe entregou a batuta.

- O quê? - gritou o rapaz, com um salto para trás. - Você não pode estar falando sério!

- Você acompanhou todos os ensaios com a orquestra e até regeu alguns. Se você quer ser maestro, você deve ser capaz de fazer isso.

- Isso é absurdo! - o protesto de Klaus tinha respaldo da orquestra.

Logo, porém, o rapaz entendeu a intenção de seu mestre e resolveu contrariar os músicos.

- Tudo bem. Eu estou disposto a fazer isso. Dê-me a batuta.

- Isso vai ser um desastre! - falou um contrabaixista.

- Deem uma chance ao rapaz. Eu confio nele. - falou di Fiori. Ainda com certa resignação, todos foram aos seus lugares no palco.

Quando Höek estava saindo, di Fiori correu em sua direção e o agarrou pelo ombro, sussurrando:

- Se eu perceber que você está com muita dificuldade, pode deixar que eu assumo. - o jovem deu um sorriso sarcástico e disse:

- Trocar o maestro no meio da apresentação seria um pecado. Não consigo pensar em nada mais deselegante que isso. - e saiu, deixando seu mestre ali, sem palavras.

Mas Klaus apareceu, para a surpresa de todos na assistência, ou quase todos, pois alguns não conheciam o maestro di Fiori, já alguns diziam que o maestro era bem diferente do que se lembravam, mas a maioria logo percebeu que o regente não era di Fiori, porém ninguém protestou. E quando o jovem rapaz subiu no palanque, abriu o livro com a partitura e ergueu a batuta, ficou claro que não havia motivo para reclamar. Höek fazia muito bem o seu trabalho. O contrabaixista estava muito enganado. E a orquestra, embora hesitante, logo tomou total confiança em seu maestro.

A primeira peça regida por Klaus Höek. Nasceu, naquele dia, uma nova estrela no universo da música.

Quando a apresentação terminou, os dois maestros, se é que poderiam ser assim chamados, tiveram uma conversa em particular.

- O que achou? - perguntou o homem mais velho.

- Foi incrível! Eu me senti como Beethoven, como Schubert, eu. . . não tenho palavras pra descrever qual é a sensação de reger! Eu senti agora como se meu sonho tivesse sido realizado, maestro!

- Eu entendo que esteja feliz, mas esse seu ponto de vista é muito egoísta. - Sem entender o que ele havia dito, o mais jovem ficou olhando-o. - Lembre-se: a música é um presente. Você é um músico agora. Deve presentear a humanidade com seu dom dado por Deus. Música é coisa séria. E agora bem sei, e estou convencido de que você entende a seriedade dessa missão. Não tenho mais nada para te ensinar. - e apontou a batuta para ele em alusão a um cavaleiro bizantino sendo comissionado para a guerra. - Eu te declaro maestro Klaus Höek.

Os olhos de Höek se encheram de lágrimas.

- Maestro. . .

- Ora, chame-me de Rafael. Pra que a formalidade? Somos amigos. - Höek se lançou aos braços de di Fiori e o abraçou apaixonadamente enquanto as lágrimas rolavam pelas faces.

- Muito obrigado.

- Não precisa agradecer. Agora é hora de fazer eu me orgulhar. Vá, Klaus, você tem o espírito! Vá e cative o mundo com a sua música!

O apelo do maestro di Fiori não poderia ter sido mais enfático. Depois de se casar com Antonia, o primeiro empenho de Höek foi montar a sua própria orquestra. Procurou seus colegas da Academia Nacional de Música, os mais talentosos músicos de que poderia se lembrar. Alguns deles estavam em outros países, mas a maioria concordou em se unir a Höek em sua orquestra. E com a ajuda de Antonia, grandes talentos eram logo descobertos. Em alguns meses, a orquestra estava formada. Qual seu objetivo? Apresentar grandes e pomposas peças para o prefeito e os nobres nos mais famosos teatros da cidade? Não! Viajar pelo mundo e espalhar por ele a beleza da música. E todos que tocavam sob a batuta do maestro Höek tinham essa mentalidade, que lhe havia sido ensinada por Antonia tantos anos antes.

O casamento de Klaus e Antonia, nos seus primeiros anos, não poderia ter sido mais feliz. Eles viajavam por vários países do mundo e apresentavam, mesmo que fosse na rua, música espontânea, do jeito que eles gostavam. Do jeito que eles costumavam fazer quando se conheceram. Como prometido, ela era a pianista da orquestra sempre que possível, porém a maioria das peças orquestradas não tem piano. Mesmo assim, apresentações coletivas do casal eram abundantes, mesmo que fossem só de piano e violino.

Höek passou a se tornar conhecido no mundo musical, e não demorou muito para que as maiores orquestras do mundo o convidassem como regente. Privilégio dele de reger ou da orquestra de tê-lo como regente? Não importava realmente. Essa foi a vida que Klaus sonhou desde pequeno.

A vida do casal se estabilizou, eles estabeleceram moradia fixa na cidade natal de Antonia, onde haviam se conhecido, e tiveram três filhos. Os três filhos do casal, a exemplo do pai, mostraram logo uma inclinação para a música, e não é difícil entender o motivo. Os pais de Klaus eram agricultores, não eram músicos, mas aquela nova geração teve o privilégio de nascer num lar de músicos. Talvez eles pudessem ser a primeira geração duma família de músicos. Mas nem sempre as coisas vão tão bem.

Mesmo depois que a vida do casal se estabilizou, Klaus parecia ficar o tempo todo com a cabeça na música. Quando não estava treinando com a orquestra, se ocupava com as suas próprias composições. Fazia isso quase o dia inteiro, dezesseis horas por dia em casos extremos, e acabava não dispensando a atenção que sua família precisava e merecia. Afinal, ele era um pai de família agora, e não apenas um maestro.

E com o tempo, como era de fato inevitável, Antonia chamou-lhe a atenção sobre isso. Klaus estava recostado ao piano com um pentagrama à sua frente. Com uma mão tocava e com a outra anotava. Estava, evidentemente, trabalhando numa nova composição.

- Você não se cansa disso? - perguntou a esposa.

- De quê? - retrucou ele, sem desviar a atenção de sua produção.

- De ficar compondo e ensaiando. . . é só a música, o tempo inteiro! - Klaus girou a banqueta, de modo a ficar de frente para ela.

- Claro que não me canso. Eu amo a música. Assim como você.

- O que quer dizer com “assim como você”?

- Amo a música assim como você a ama.

- Ah - fez Antonia, com olhar disperso. - Pensei que você tivesse dito que amava a música tanto quanto me ama. - Klaus se levantou e pôs as mãos em seus ombros.

- Querida, eu amo você, mas do que qualquer outra pessoa no mundo. Não pense que a música vai nos distanciar, porque na verdade ela nos une!

- Qualquer “pessoa”? - retrucou ela. - Não mais do que qualquer “coisa”? Seja franco, Klaus!

- Antonia, só quero dizer que não faz sentido você achar que perde espaço para a música no meu coração. . .

- Diga duma vez! - ela já estava começando a lacrimejar. - Você ama a música mais do que a mim? - Klaus se afastou e deu uma risada espontânea.

- É óbvio. Não quero te diminuir, mas a resposta é evidente. Amo a música mais do que a você. Amo a música mais do que a mim mesmo. Amo a música mais do que à própria vida. E não foi o amor à música que nos uniu, Antonia? - ela fitava o chão e balançava a cabeça negativamente.

- Eu não pensei que as coisas fossem assim. Eu amo a música de todo o meu coração, sério, mas eu pensei que a música tivesse feito de você uma pessoa melhor, Klaus. Acho que eu estava enganada.

- Espere, não é bem assim, veja bem. . . - ela apenas se retirou do cômodo, como que evitando deliberadamente uma discussão acalorada.

Höek percebeu que magoara a esposa, e se sentiu mal por isso, mas não via nada de errado no que fizera. Falara a verdade, afinal. Nem mesmo Antonia podia se pôr entre ele e a música.

Aquela, porém, foi a primeira de várias discussões que se tornariam frequentes para o casal. Antonia argumentava que Klaus era um viciado, que ficava sempre distante da família e que isso era prejudicial para a educação dos filhos. Mas ele se defendia dizendo que seu amor pela sua família não ficava em segundo plano, que se esforçava para pôr comida na mesa e que se preocupava profundamente com a criação de seus filhos. As discussões frequentes não poderiam ter levado a outro fim. Depois de treze anos de casamento, Klaus e Antonia se divorciaram. Foi Antonia, evidentemente, que ficou com a guarda dos filhos.

O divórcio foi chocante para Höek, mas ele e Antonia continuaram sendo bons amigos, pois o amor pela música unia os dois. Mesmo não sendo mais esposa, Antonia era a única que podia tocar piano em orquestras dirigidas por Höek.

Outra triste notícia veio na mesma época do divórcio. O maestro di Fiori estava partindo. Em seu último dia, Höek o visitou no hospital.

- Maestro di Fiori? Visita para o senhor. - anunciou a enfermeira, já se retirando. Höek entrou logo em seguida.

- Maestro Höek, como vai? - perguntou ele, deixando seu ânimo subir o pouco permitido naquele leito de hospital.

- Ora, me chame de Klaus. - retrucou o outro. - Como você está, Rafael?

- Como estou? Esses têm sido os piores dias da minha vida! É proibido tocar aqui dentro, para não incomodar os outros pacientes. E música eu só posso ouvir com fones de ouvido! - Klaus deu uma risada alegre e se sentou numa cadeira.

- Soube que me divorciei?

- Se não soubesse, só se morasse em Marte! Está em quase todos os jornais! - Höek nada respondeu. - Oh, perdão, acho que virei um velho rabugento, não é?

- Acho que sim.

- Mas não se preocupe com isso, Klaus. Eu assisti todos os seus concertos. Não pude ver sua última apresentação pessoalmente, mas vi pela televisão. Você estava maravilhoso. Sei que isso é errado, mas tenho orgulho de você.

- Não é errado. Foi você quem me ensinou.

- Pode ter sido, mas hoje você é um músico experiente, assim como eu.

- E era exatamente isso que eu queria. Isso que eu quis desde aquele dia há mais de vinte anos quando te vi regendo. Foi daquele momento em diante que me encantei e decidi que queria ser maestro.

- Aposto que, sem saber, você já cativou muitos como eu te cativei.

- É divertido pensar nisso.

- Mas Klaus, você se lembra de qual foi a coisa mais importante que te ensinei?

- Claro que sim: presentear o mundo com a minha música.

- E isso você faz muito bem. Eu estou indo embora, mas tenho certeza que você levará diante essa missão, maestro. - O sorriso foi a melhor resposta que Höek pôde dar.

Quando a visita encerrou, o estado de di Fiori começou a piorar terrivelmente e ele faleceu cerca de uma hora depois que Höek deixou o hospital. Ele ficou sabendo disso naquela noite, e não pôde ter outra reação senão chorar até dormir.

O consolo do homem, no entanto, continuava sendo aquela mulher que ele amava desde seus primeiros dias. Desde que podia se lembrar, ela sempre esteve ali, em sua companhia.

Nos dez anos seguintes, Höek levou uma vida agitada. Apresentações e ensaios quase todos os dias. Não tinha férias, mas viajava para outros países para apresentações internacionais, pois já era um maestro de fama mundial. Muitas vezes jovens lhe pediam autógrafo, e ele via a si mesmo nesses jovens. Soube que Antonia se casou de novo, mas ele não queria se casar, pois tinha certeza que se o fizesse, aconteceria o mesmo que aconteceu com Antonia. E ele se considerava uma pessoa feliz por viver de música. Sua vida era satisfatória. E assim continuaram as coisas, até receber uma trágica notícia.

- Definitivamente, maestro, é um aneurisma cerebral. - falou o médico, segurando sua prancheta. - Sinto dizer isso, mas um AVC pode lhe sobrevir a qualquer momento.

- Ah, mas que beleza, hein? - disse Höek, com ironia. - O que eu devo fazer?

- Infelizmente não tem muito que eu possa fazer. Se quer uma sugestão, maestro, acho que o senhor deveria largar a música. - Höek deu uma enfática gargalhada.

- É bom que o senhor saiba, doutor, que o dia em que eu largar a música será o dia em que deixarei de viver.

- Imaginei que o senhor diria algo parecido. Eu não devo interferir na sua vida pessoal. Só devo lhe aconselhar a evitar dirigir e. . . despeça dos seus amigos, maestro. Está dispensado.

Höek saiu do hospital pensando milhões de coisas que, pela primeira vez, não tinham nada a ver com música.

- Me despedir dos meus amigos, foi o que ele disse? Pois é exatamente o que vou fazer. - tirou seu celular do bolso na mesma hora e ligou para sua agente.

- Margareth? É Höek. Temos um comunicado à imprensa.

Ele apenas se deitou no sofá de sua casa ao som dum quarteto de cordas e deixou a mídia fazer o seu trabalho. Eram os jornais, revistas, noticiários na televisão e sites na internet, divulgando exacerbadamente o fim da carreira musical de Klaus Höek.

- Esse maestro Höek é um idiota! - dizia enfaticamente um crítico de arte num programa de televisão voltado para discussões acerca da arte - Ele apenas quis mostrar que é o bonzão e, agora que é famoso no mundo inteiro, diz que vai parar! Ele não tem amor nenhum pela música, se querem saber, nenhum!

- Críticos de arte idiotas - disse Höek, desligando a televisão com o controle remoto - se eu não amasse a música, jamais teria alcançado meu nível de habilidade, jamais.

Divertiu-se ao imaginar o que Antonia diria ao ver aquela crítica, mas imediatamente seus pensamentos foram desviados pelo toque de seu celular.

- Alô?

- Papai? - interrogou a pessoa do outro lado.

- Samuel? Olá, meu filho! - ele sempre mostrava enorme empolgação falando com seus filhos.

- Eu soube que você vai se aposentar é verdade? Todos estavam comentando isso lá na escola.

- É isso mesmo, vou me aposentar, mas não vou abandonar a música. Aliás, como você está indo no clarinete?

- Estou indo bem, mas. . . acho que não faço jus à minha alcunha de “filho do grande maestro Klaus Höek”.

- Não diga uma coisa dessas, filho. A única coisa que importa é que você presenteie o mundo com a sua música.

- Como? - replicou o garoto, confuso.

- Um dia você vai entender. Não se preocupe comigo, eu ficarei bem. Te amo, filho.

E, logo que desligou o telefone, dirigiu-se à sala de música de sua casa. Sua coleção de discos, CDs e fitas de vídeo era tão grande que ocupava um cômodo inteiro da casa. Achou rapidamente o que procurava no meio de mais de mil CDs.

- Sinfonia do Novo Mundo de Dvořák? Por que essa música pra terminar? - pensava, consigo mesmo, segurando o CD - mas por alguma razão, algo muito forte dentro de mim diz que tem que ser essa música, não pode ser nenhuma outra.

O último empenho de Höek em sua carreira musical foi reunir a orquestra dos sonhos. Lembrou-se muito bem de todas as orquestras que regera durante sua longa carreira musical, e daqueles músicos que mostraram incomum desempenho. O melhor violinista, o melhor clarinetista, o melhor timbalista. . . O melhor dos melhores, tinha que ser, para realmente conquistar o coração do público. E ele de fato convocou os melhores instrumentistas de que se lembrava, e nenhum deles recusou o privilégio de fazer parte da apresentação final de Klaus Höek. Quem recusaria? Desse modo, a orquestra dos sonhos de Höek ficou exatamente como ele queria que ficasse.

A Sinfonia do Novo Mundo não tem piano, mas mesmo que tivesse, ele não chamaria Antonia. Ela era uma pessoa mais que especial em sua vida, então ele queria apenas que ela assistisse à sua última apresentação, que tinha que ser a melhor das melhores.

Foram vários meses de ensaio árduo até chegar a noite da última apresentação. Höek mandou ingressos no camarote para Antonia e seus filhos e também para o marido, para não faltar com a cortesia. Enviou ingressos também para os seus pais, que já eram dois agricultores velhinhos, não interados no mundo da música, mas que também souberam que seria a última apresentação de seu filho, e por nada a perderiam.

E lá estava ele, pronto para presentear o mundo pela última vez com a arte da música.

- Maestro? Maestro Höek? - o assistente de produção chamava-o insistentemente, fazendo-o acordar de suas recordações. - Está na hora.

- Tudo bem - disse ele, se levantando. - Vamos fazer música!

A platéia era enorme, mais de cem mil pessoas, e a cobertura da mídia não ficava para trás; o mundo inteiro estava assistindo aquela apresentação e Höek desejava ardentemente que di Fiori também estivesse.

Ah. . . a agradável sensação de reger. Seria a última vez que ele a teria? Não importava. A música sempre esteve ali, presente o tempo inteiro. Desde que ele ouviu Wagner no rádio. . . não, desde que tocou o piano de brinquedo naquele dia remoto, aquela sim, foi a primeira vez que ele se encantou com a música. E então, regendo sua última sinfonia, quase cinquenta anos depois, o encanto era exatamente o mesmo. Esse fascínio pela música era tão forte e tão profundo que marcou a vida daquele homem muitas vezes, como quando viu um maestro muito experiente regendo ou simplesmente quando ouviu uma pianista de bar tocando várias décadas antes.

A música, sim, a música lhe permitiu experimentar várias sensações diferentes, que lhe tornavam cada vez mais humano. Que privilégio, pensou o maestro, que privilégio tinha ele mesmo de simplesmente poder apreciar sublime arte. Com a batuta na mão, concluiu que estava pronto para morrer. Jamais alguém levou vida tão satisfatória.

Desde a primeira vez que tocou o piano de brinquedo até ali, regendo aquela peça para o mundo inteiro ver, ele também fez parte disso. Ele também presenteou o mundo com a sua música. Até o último segundo, até a última nota. . . é a música!

Durante o dramático terceiro movimento, o Molto Vivace, Höek começou a sentir tonturas, mas isso não transpareceu. Sua vista começou a mudar de cor, mas ele não poderia parar. A paixão não é o suficiente para sustentar a força dum corpo humano moribundo. Ergueu ao alto a batuta com a sua mão e depois caiu do palanque, com a face contra o chão. A música tão agradável foi repentinamente interrompida. Todos os músicos pararam, e o spalla se adiantou em correr e segurar o maestro em seus braços.

Ele abriu os olhos vagarosamente e seus lábios tremiam, mas era evidente que estava tentando falar alguma coisa.

- Por que pararam? A música ainda não acabou. - disse ele. E em seguida abriu um sorriso. Um sorriso que nunca mais seria apagado.

Daquele dia em diante, todos os presentes, mais do que isso, o mundo inteiro se lembraria que Klaus Höek cativou o mundo com a sua música.

“O objetivo e finalidade de toda música deve ser nenhum outro senão a glória de Deus e o deleite da alma humana.”

- Johann Sebastian Bach

Blau Tiger
Enviado por Blau Tiger em 25/03/2013
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