Olhar Corretor
Eu sempre vivi à sombra daquele olhar, daquelas mãos consertadoras de gravatas desalinhadas, salvadora de quadros tortos e pescadora de fiapos em lapelas.
Nenhuma naturalidade inadequada conseguia escapar. Ela sempre foi implacável.
Ao passear pela casa, passos firmes e elegantes em saltos Anabela minha mãe ia braços polvo a organizar tudo, limpando pós invisíveis, lustrando móveis e panelas reluzentes, aplicando doses diárias, contínuas, ininterruptas, insuportáveis de perfeição ao nosso caos, ao que víamos meu irmão e eu, na rua, enfiados em alvas camisas de uniforme colegial.
Nossas golas engomadas e nossas calças bem frisadas testemunharam o verde-oliva e os tanques esmagando a terra e as consciências. Existiam palavras proibidas, comportamentos que mesmo não havendo exígua lei que os impedisse eram severamente condenados.
As punições não ensaiavam proporções e a morte ou o desaparecimento de alguém era o tipo de notícia que não vendia jornal.
Mas tudo muda o tempo todo como diz a música.
Meu irmão mora no estrangeiro e eu já tenho netos, que como eu só veem tanques nas ruas apenas uma vez por ano.
É proibido proibir.
As leis pegam ou não.
E os jornais estão cheios de mortos e desaparecidos.
Não uso colarinho, gravata ou lapela, a casa em que cresci foi vendida e minha mãe que agora gosta apenas de pantufas, veio morar comigo.
Em meu apartamento de viúvo nós sentamos lado a lado no sofá e damos as mãos para olhar a novela das seis, e enquanto ela vibra com a mocinha ou xinga o vilão eu tento não me incomodar com o pó sobre minhas desordenadas pilhas de livros, finjo não ver o amarelo das cortinas e disfarçar a imensa saudade do paraíso que ela criava com seu olhar corretor.