Olhar Corretor

Eu sempre vivi à sombra daquele olhar, daquelas mãos consertadoras de gravatas desalinhadas, salvadora de quadros tortos e pescadora de fiapos em lapelas.

Nenhuma naturalidade inadequada conseguia escapar. Ela sempre foi implacável.

Ao passear pela casa, passos firmes e elegantes em saltos Anabela minha mãe ia braços polvo a organizar tudo, limpando pós invisíveis, lustrando móveis e panelas reluzentes, aplicando doses diárias, contínuas, ininterruptas, insuportáveis de perfeição ao nosso caos, ao que víamos meu irmão e eu, na rua, enfiados em alvas camisas de uniforme colegial.

Nossas golas engomadas e nossas calças bem frisadas testemunharam o verde-oliva e os tanques esmagando a terra e as consciências. Existiam palavras proibidas, comportamentos que mesmo não havendo exígua lei que os impedisse eram severamente condenados.

As punições não ensaiavam proporções e a morte ou o desaparecimento de alguém era o tipo de notícia que não vendia jornal.

Mas tudo muda o tempo todo como diz a música.

Meu irmão mora no estrangeiro e eu já tenho netos, que como eu só veem tanques nas ruas apenas uma vez por ano.

É proibido proibir.

As leis pegam ou não.

E os jornais estão cheios de mortos e desaparecidos.

Não uso colarinho, gravata ou lapela, a casa em que cresci foi vendida e minha mãe que agora gosta apenas de pantufas, veio morar comigo.

Em meu apartamento de viúvo nós sentamos lado a lado no sofá e damos as mãos para olhar a novela das seis, e enquanto ela vibra com a mocinha ou xinga o vilão eu tento não me incomodar com o pó sobre minhas desordenadas pilhas de livros, finjo não ver o amarelo das cortinas e disfarçar a imensa saudade do paraíso que ela criava com seu olhar corretor.

 

Bárbara A Sanco
Enviado por Bárbara A Sanco em 24/03/2013
Código do texto: T4206037
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