Viagens pelo Ceará XVI
IDEIAS AVENTUREIRAS, MUSICAIS, LITERÁRIAS, MÍTICO-CURANDEIRAS, ENXADRÍSTICAS, TEATROLOGAS E INSANAS... DE MORADORES DO VALE JAGUARIBANO, NUM ANO DE ESTIO.
RUSSAS
Era hora de fechar a barbearia e o Aldenor me perguntou em qual pousada eu estava, lhe disse que eu estava na Imperial e fomos andando em direção à praça que fica em frente à igreja matriz. Procurei saber dele sobre as atividades culturais da cidade e ele me disse que havia pouca coisa, mas uns cantadores faziam naquele horário um programa na Rádio Progresso. Havia um centro cultural com um museu e um anfiteatro que era o local onde às vezes se faziam saraus. Fomos andando até lá e nesse caminhar fui perguntando sobre os dois cidadãos que eram o motivo da conversa na barbearia. Expliquei que não queria me intrometer na vida particular de ninguém, só desejava saber porque os dois personagens despertavam tantos risos e interesse naquela conversa. Disse-me que eram dois conversadores que passavam sempre pela barbearia, mas o local onde mais ficavam era o bar do Antonio. Se chamavam Adejante e Manezim e viviam discutindo variados assuntos. Podia me apresentar a eles no dia seguinte. Seu interesse pelos assuntos dos dois começou quando certa vez os viu conversando sobre os peixes de nuvens, mas discutiam tantas coisas que ele ia me contar aos poucos.
Entramos no centro cultural, o museu ficava aberto para visitação noturna, enquanto eu ia vendo os objetos ia ouvindo a fala do barbeiro que parecia igual ao seu irmão o cozinheiro-pescador do Fortim. Foi me falando sobre os dois polêmicos conversadores:
Que eles eram dois tipos esquisitos, um atendia pelo nome de Adjante e estava aposentado, dizia que muito havia viajado e nunca tinha visto uma Juliana feia. O outro se dizia poeta-cronista, já havia exercido mas detestava a profissão de cantador-repentista, tinha nome de Manuel, mas todos o chamavam de Manezim poeta, ambos eram filhos de Russas. O Adejante residia na cidade e o poeta numa várzea. Este nunca havia sido roceiro, pois sempre tivera horror ao trabalho, fôra cantador de viola, era dono de uma língua ferina e nunca dispensava uma conversa fiada, que era como gastava quase todo seu tempo de desocupado.
O outro havia sido batizado com o nome de Salomão, mas gostava de ser chamado de Adejante. Havia prestado o serviço militar, havia viajado por vários estados, morado e trabalhado muito tempo noutras regiões, era homem de muitas profissões e práticas, tinha estrada e bagagem, e era barbudo. Eles estavam sempre em conversa quando se encontravam e os assuntos dos dois quase sempre chamavam a atenção dos que estavam por perto. Não eram adversários nos argumentos, eram parceiros, que podiam discordar e concordar em muitas coisas. Visualmente não se pareciam em nada, contudo eram muito semelhantes na loucura e calor da eloquência. Havia dias em que ficavam de mal um com o outro devido a desentendimento em suas conversas lá, mas isso durava pouco e logo voltavam às pazes. Nesses períodos de intriga, um e outro podiam confidenciar a um terceiro as coisas que não queriam e omitiam dizer dizer um ao outro. O Adejante ao falar do Manezim, quando queria debochar de algum dos seus ditos arcaicos, o chamava de mamute, é que as ideias do poeta eram tão fora de moda e época que era como se ele estivesse extinto sem saber. Foi por essas e outras ironias que o Aldenor muito ria e ia se afeiçoando ao Adejante. Já o poeta o chamava às escondidas de pau-d´agua, que era como ironizava o viajante por este gostar de um aperitivo e dizer que foi e ainda era um pé-de-boi.
O barbeiro Aldenor estava na conta de amigo dos dois e não tomava partido, mas não abria mão de comentar com os colegas da barbearia o que presenciava nas conversas dos dois. O que sabia sobre o viajante de barba e o poeta, ouvia deles mesmo em mesas de bar, em conversa de praça, na barbearia.
O Adejante era naturalmente apreciado pela maioria, já o Manezim não estava muito preocupado em fazer amigos. Havia também uma terceira figura que era um professor de português aposentado, que tanto matava quanto curava os escritos do poeta magro. Se chamava Justo Picanço, e era sim bem imparcial em seus julgamentos, costumava ler os escritos do Manezim e chamava discretamente a atenção do poeta para as suas redundâncias. Dizia pro poeta que as falácias que ele escrevia eram às vezes tão gritantes que chegavam a anular o que de proveitoso ele dizia noutras partes de suas prosas. Justo Picanço não era de estar no bar, passava pela barbearia e se demorava pouco, mas nas vezes que passava se encontrasse alguém comentando os escritos do Manezim no “Correio de Russas”, ele entrava de sola tanto pra defender o que de coerente havia no texto, quanto pra mostrar o que considerava falacioso, tentava com boa vontade entender e justificar a inexperiência e a ingenuidade do pobre poeta.
Adejante estava aposentado, havia trabalhado o que a lei exigia, agora dispunha de bastante tempo para gastar como queria. Era um tipo curioso e agradável, suas opiniões, experiências e leituras o levavam a conclusões que de vez em quando podiam se transformar em pequenos discursos. Podia de repente levantar a voz assustando seu interlocutor e berrar sem o menor constrangimento seus argumentos e lógica de bom locutor que foi e meio sofista que era. Bebericando sua aguardente com limão dizia que, havia andado e aprendido, e não estava ali pra fazer preleção pra ninguém, mas se alguém quisesse ouvir suas passagens, ele não se negava a contá-las.
Nos dias em que estava meio ressacado era de um mutismo de taciturno crônico. Se o assunto que o Manezim vinha puxar era coisa corriqueira, ele dizia logo: isso é lugar comum, fala uma novidade aí! Bicho-refrão! Ramerrão. Se a canção que estava tocando era velha e enjoada ele dizia: cantai ao Senhor um cântico novo!
Tinha umas manias e confessava o que gostava e o que não. Não gostava de pano em frente de espelho, de cadeira ou qualquer objeto em frente a portas, não gostava de encontrar coisa por cima de coisa sobre as mesas da sua casa. Gostava de ordem e detestava contratempo em tudo. Dizia que gostava muito de viver e aprender.
Se chamava Adejante porque quando esteve no serviço militar, o sargento observou que ele gostava de adejar, ou seja tinha um comportamento de pássaro que pairava no ar. Os companheiros de turma que sempre procuravam um motivo pra rir, resolveram o chamar de Adejante, aquele que era econômico e não batia asa à toa.
Dizia que quem era da idade dele, devia ter sido insensato alguma vez, e que quem tinha paixão tinha pesar. Não gostava de pandorga, fazia imitações caricatas de vozes de cantores fanhosos e nisso o Aldenor via o seu grande dom de palhaço, as pantomimas às vezes eram tão grandes que faziam rir a todos que estavam por perto.
Obs:Tenho publicado somente no recanto das letras uma auto-biografia, meu primeiro livro, cujo nome é “Fascinado por chuvas”. Já este texto que vc acaba de ler é parte do meu segundo volume, cujo título e subtítulo pode se lê acima.
Caso essa seja sua primeira leitura desses contos, sugiro que leia desde o primeiro capítulo para uma melhor compreensão e proveito. Atenciosamente
Agamenon violeiro