Econômia da Fé.
Quase 40 graus. As árvores há muito tempo não exibem uma única folha verde. A moringa não consegue mais purificar a água turva retirada do açude do povoado vizinho.
As três crianças menores de sete anos já partiram na companhia dos anjos e os dois mais velhos, aguardam a chegada de Nossa Senhora. Elas foram criadas pela mãe nos rígidos princípios cristãos. O pai fora morto pelos saqueadores no inicio da guerra civil.
O padre era a única visita que aparecia naquele pequeno casebre, no meio do nada, a uma distância de uns oito quilômetros do pequeno povoado.
O lugarejo tinha como construção principal a igreja, erguida no final da rua poeirenta. Era cercada por uma dúzia de pequenas casas e por um armazém de secos e molhados. Na pequena colina, à direta, havia um campo santo, que crescia rapidamente a cada longa estiagem. Nos últimos anos a estação das chuvas se esquecera daquelas humildes e necessitadas pessoas, assim como, as autoridades.
Clemência, a filha mais velha, era magricela que parecia quebrar como um cristal se por ventura caísse. Mas era forte e firme na sua fé. Levava a vida com muita esperança e determinação. A mãe sempre lhe dizia desde criança:
- Filha, seja como aquele pequeno vime, ele é fraco, porém muito forte. Referia-se a resistência e flexibilidade da haste do vimeiro.
A menina nunca compreendeu o verdadeiro significado destas palavras, mas internamente sabia que precisava lutar para sobreviver, assim como o vimeiro fazia, tentando estender suas raízes para alcançar a escassa água que continha no açude.
A menina cresceu, e com apenas doze anos tomou a frente nos afazeres da casa, tornando-se a responsável pela família.
Havia semanas em que o único alimento disponível era uma rala sopa de farinha com uns pedaços de palma doce – uma espécie de cacto mexicano. No Brasil pode ser encontrada no sertão nordestino.
Clemência, nestes períodos de maior escassez, alimentava-se somente a cada dois dias, pois, deixava o alimento para a mãe e o irmão. Sendo que as poucas forças que lhe restavam, eram dedicadas a Nossa Senhora. Ajoelhava-se todos os dias diante da Santa e rezava horas a fio. Sua fé era inabalável, retirava a energia para viver desta devoção. Era incansável na sua fé. Mantinha toda a família unida na esperança que a santa um dia viria salva-los. Costumava repetir este ritual inúmeras vezes ao dia, na certeza que uma mãe que ama seus filhos jamais os abandona.
O irmão e a mãe acreditavam em Clemência, talvez até por falta de uma opção melhor, porém não tinham a mesma fé, como também não ousavam fazer qualquer questionamento, embora não entendessem porque a Mãe Generosa tardava tanto em socorrê-los.
As condições de sobrevivência pioravam a cada dia. O sol não dava trégua, o carro pipa que semanalmente abastecia o povoado de água, não aparecia há duas semanas. No entanto, isso já não fazia diferença, pois ninguém da família tinha forças para deslocar-se até lá em busca da água. Deitados nas redes, só lhes restavam à lembrança dos velhos sonhos de uma vida melhor, e a esperança de vivê-la no céu, como o padre ensinara.
Esperavam os anjos para levá-los para a felicidade da vida eterna, pois os pecados já haviam sido pagos ali mesmo, naquele inferno. Enquanto isso, Clemência tratava de umedecer os lábios da mãe, espremendo com suas últimas forças o caule de palma.
Uma semana depois, com o fim da guerra, representantes de uma ONG de ajuda humanitária, chegaram ao pequeno casebre e presenciaram aquela cena inacreditável.
Em poucas semanas os turistas começaram a chegar e a igreja incrédula, também enviou uma equipe de missionários para averiguar o que realmente estava acontecendo ali.
A cidade tornou-se um verdadeiro centro de vendas. Vendia-se tudo que pudesse servir de lembrança. Aos poucos, até outras crianças passaram a jurar que viram a imagem de Nossa Senhora sorrindo e abençoando-os.
A cidade em poucos anos tornou-se um dos maiores centros de peregrinação do novo país, transformando por completo a vida daqueles moradores. A realidade agora era outra. Podiam contar com água encanada e energia elétrica. As doze pequenas casas foram reformadas e transformadas em lojas para comercializar as “lembrançinhas” para os fiéis. Novas ruas se formaram e a da Igreja, recebeu calçamento de pedra, por doação dos fiéis. Até hoje não há nenhum reconhecimento oficial deste verdadeiro milagre, mas as pessoas devotas sabem que Clemência salvou sua família pela fé. Na realidade, a ciência comprovou que a “visão” de Clemência foi provocada pelo estado de desnutrição e desidratação, ou seja, estaria delirando. Esse fato apesar de contestado por muitos, é admitido pelo próprio padre que sempre cuidou da família. O inegável é que sem aquela “visão”, de Nossa Senhora lhe apontando a parede onde estava o quadro da Santíssima Trindade, Clemência jamais o teria removido de lá
Para sua surpresa, o pequeno quadro escondia um enorme ninho cheio de ovos de pomba-do-sertão, que serviram de alimento, salvando inacreditavelmente aquelas três sofridas almas. Quando ninguém mais acreditava que pudesse haver vida naquele casebre, o milagre os salvou. Foram encontrados, depois de semanas sem água e alimento, rezando abraçados e ajoelhados diante do altar improvisado com um “santinho” de Nossa Senhora e o quadro.
Clemência não só conseguiu salvar a família, como transformou á vida de todo aquele árido sertão.