SONHO PARCO
Sonho parco!
O sol ainda não aparecera, mas já era hora de sair de casa e ir à luta.
Rildo acordou os filhos e lhes prometeu que hoje achariam novos brinquedos.
O menor resmungou, queria dormir. O maior, 5 anos, pediu comida.
Não tinham.
- Mas já já acharemos algo, vamos rápido! Quanto antes chegarmos, mais presentes encontraremos...
Do alto dos seus 5 anos, Welington perguntou: e se os outros já tiverem pego tudo?
Lituva estava sentada do lado de fora, entre a casa e o cercadinho de menos de dois metros quadrados onde ficava um pequeno porco comprado pelos cunhados. Olhando além da clareira, sorriu quando os avistou. Zé Pedro e Teotônio voltavam de mais uma noite de trabalho como vigilantes da Fábrica de Vidros. Eles ocupariam a mesma e única cama da casa, onde Rildo, ela e as crianças dormiram a noite. Tinha sido assim nos últimos meses. Acordavam cedo, entre 5 e 6 horas da manhã, para deixar a cama desocupada. Apesar disso, eram agradecidos. Não fosse a ajuda dos irmãos, eles não saberiam para onde ir. Melhor, onde se esconder. Ficar no Morro deixara de ser uma opção. Desde que tinham sido “marcados”, por afrontarem uma “decisão” de um grupo da comunidade, o Morro tornara-se perigoso. Temiam pelas crianças. Fugiram de madrugada e ainda hoje, lembrando, mal conseguem acreditar que conseguiram. Lituva estremeceu com as lembranças. Sofria muito por viver assim, clandestina, comendo restos para poupar os irmãos de maiores despesas. Catando lixo, improvisando a vida. Os irmãos ganhavam pouco mais que o salário mínimo (descontadas tantas coisas, dava menos que o mínimo) e ainda estavam pagando o lote. A casinha era o resultado de muitas idas e vindas pelas ruas e pela feira e, sobretudo, da bondade do dono da fábrica que desmontara um velho galpão de ferramentas e lhes dera o material. Até as telhas, frisava Teotônio comovido.
Lituva sofria, mas tinha também bem claro que Rildo não era apenas o seu homem, era o pai dos seus meninos, era uma pessoa decente e se conseguissem ficar mais algum tempo, um bom tempo, longe dos “carrascos”, quem sabe, ainda teriam uma vida normal: uma casinha, talvez até com dois quartos, escola para as crianças e pão todos os dias. Arroz e feijão também ! Carne bastaria nos finais de semana. Isso já seria um luxo bom demais. Sorriu antevendo a mesa farta... arroz, feijão, umas batatas, carne e até uma gelatina colorida! Sobremesa!
Sabia que Rildo era íntegro, batalhador, que nunca conseguira sequer um emprego decente por não saber ler, nem escrever. Menos ainda que os irmãos, que pelo menos assinavam o nome. Ela cursara até o 4. ano, conhecia um pouco do mundo, da história, da geografia. Lembrava ainda da indignação de sua professora de Artes, falando da pobreza que rondava os lixões. Por um momento pensou em procurá-la, mas além de toda a dificuldade (como ela se chamava mesmo?), lembrou que não podia “aparecer”... por algum tempo ainda, ninguém deveria saber que eles continuavam em São Paulo, que continuavam vivos. Com o tempo, esqueceriam. Tinha que acreditar nisso.
Sentiu um afago no dorso da mão, era o maiorzinho. Pegou-o no colo e foi andando... Rildo a seguiu com o pequeno nos braços, ainda dormindo. Mais um dia... haveriam de chegar lá...