Viagens pelo Ceará VIII

IDEIAS AVENTUREIRAS, MUSICAIS, LITERÁRIAS, MÍTICO-CURANDEIRAS, ENXADRÍSTICAS, TEATROLOGAS E INSANAS... DE MORADORES DO VALE JAGUARIBANO, NUM ANO DE ESTIO.

A PEÇA TEATRAL parte III

- Ahahahahah, e em que ano você foi pro seminário?

- Foi em 1950.

- Em 1951 eu estava com treze anos e acompanhava papai que ainda possuía a tropa de burros fazendo linha pro Cascavel...

- Pois é, quando fui pro seminário, eu era um inocente, bobo, mas depois chegou a tentação. Comecei a ver as meninas e não teve jeito, mas inda creio que estou amparado. Está escrito em algum lugar das sagradas escrituras que, Deus fez a mulher pro homem e não pro lobisomem, e inda mais que hoje até pra lobiswoman tem mulher!

- É...!, a mulher sempre foi uma tentação pro homem e, segundo o silogismo do filósofo, o poeta é um homem, logo, pode ser tentado por uma mulher, assim foi com Ali Babá e os seguidores de Maomé, é ou não é?

- É...!, caí na teia da aranha e todo mundo pensava que a aranha ia me devorar, mas foi o contrário e não me arrependo, estou ainda aqui sob a égide do velho imperativo: crescei e multiplicai! e aí! é preciso ou não obedecer?

- É claro que sim, mas existe a opção de optar!...´

Nisso o poeta fala num tom suave de confidência.

- Meu caro filósofo, é bem verdade que estudei as letras sagradas mas, andei misturando as coisas com história, política, filosofia de variados credos e misticismo de todas as linhas. Depois, tudo isso virou uma salada só na minha cabeça. De forma que abandonei o seminário e saí em busca do mundo. Misturei minhas muitas leituras com rituais indígenas quando estive na Amazônia, por lá resolvi variar as coisas e tomei o chá do Santo Daime. Por conta disso tive e tenho alucinações, ainda por cima penso que tenho a missão de divulgar o que quase todo mundo aceita com passividade, que é o progresso.

- E o que há de errado nisso?

- As pessoas imaginam que sou um profeta e que quem é assim, deve ser contrário aos absurdos da modernidade...

- Não ligue pra o que dizem.

- Não ligo.

Pararam um pouco a conversa, mas o filósofo retoma.

- Eu nasci aqui na Ilha dos Veados, só fiz o ginásio no Marista, aquilo era suficiente pra mim que fui trabalhar no comércio e depois ser caminhoneiro.

- Você viajou muito pro sul e eu me dirigi ao norte. Depois da morte dos meus pais, voltei e fiquei nos Quitérias na casa de um tio meu. Foi um período de reflexão para curar o que eu achava serem minhas culpas. Acho que sofri ligeira depressão, mas isso demorou pouco. Por lá fiz amizade com pescadores e um boêmio seresteiro, voltei a beber cachaça pura, peixe não faltava nem mulher, mas confesso homem, que nunca esqueci as orações e a meditação.

- Vivemos fases, passamos por muitos momentos na vida e tudo serve pra filosofar, e aquilo que a gente aprende vai somando...

- Passei uns dois anos assim, depois resolvi sair das dunas de Icapuí. Deixei por lá um seguidor, o beato Edgar, cristão piedoso e devoto que tem provas mais do que suficientes de visagens. Tudo do sobrenatural que ele via, me contava, e eu já estava cansado de saber. Ele, por ser sensitivo foi acossado por aparições as mais diversas, e não pretendo relatar aqui para não tornar a coisa aterradora, mas posso adiantar que são sinais nos matos, fogaréus em baixo de juazeiros e oiticica pegando fogo à noite, quebradeira e conversas com vozes estranhas no meio do mato isso a qualquer hora.

- Um senhor da Jaguaruana me contou que viu uma árvore pegando fogo numa noite escura quando voltava de uma festa. No dia seguinte, a árvore estava lá sem vestígio nenhum de fogo, aí ele contou o caso ao dono do terreno e o dono mandou cortá-la e incendiá-la de verdade.

- Não duvido de nada, nem de mentiras, o ouvido de um pode ouvir o que o ouvido de outro jamais poderá escutar, o que o olho de um enxerga, o olho de outro pode nunca vir a vislumbrar, e em matéria de mitos populares digo que leiam o grande dicionário do Cascudo e verão se não é fato o que o povo diz.

- A voz do povo é a voz de Deus.

Depois de breve pausa o poeta fala:

- Somos contemporâneos e vimos muitas transformações palpáveis acontecerem por aqui, podemos falar pelo povo.

- Sim, porque nem tudo vai pros livros de história, da forma como a gente vive os acontecimentos.

- É...!, nem tudo está nos livros, os segredos das percepções e emoções estão dentro das cabeças pensantes dos que vivem os momentos da sua própria história, dos que estão em sintonia com as coisas que lhe são afins mesmo que sejam remotas. Tiro por mim que, comecei a ler livros tidos por proibidos e tropecei, escorreguei no saber e nunca mais me levantei, mas, até que gostei daquilo. Se uma informação me firmava, vinha outra pra me dar uma rasteira, aos poucos aprendi a conviver com essas diferenças e variedades. Por isso tudo e pela estrada que trilhei, passei a ter minhas visões e sempre que encontro um ouvido disposto a me escutar, gosto de partilhá-las. Você se lembra do velho Antonio Monteiro?

- Lembro demais, ele fazia um programa na rio Jaguaribe, o momento da cultura nos anos setenta e tinha na casa dele um quarto cheio de jornais que ele guardava.

- Pois é, Imagine que certa vez em meus devaneios fui levado por ele para um o pretérito onde pude ouvir as piadas do Paula Ney. Este, estava num sarau com Adolfo caminha e quem tocava o piano era ninguém menos do que Jackes klein. Vi moças bem vestidas para a festa. O evento era pra se esquecer a tristeza que deixou sobre a cidade a seca no ano dos três setes, quando o português Pinto Martins se mandou pro sul; além da perda do seu porto internacional e a queda desastrosa do hidroavião dos alemães que ainda ia se suceder.

No delírio eu, naquela noite de gala, rodeado de mulheres bonitas, onde o vinho borbulhava, os charutos inebriavam e o som puro do piano completava a atmosfera paradisíaca de sonho, fui levado a observar a rua da sacada do sobrado aracatiense. Vi um outro eu, bem mais velho, caminhando pela rua grande falando de futuras enchentes que iriam transformar a nave principal da igreja matriz em um mar, com tudo quanto era peixe nadando por ali. E disse ainda que quando o dilúvio chegasse ao fim, o progresso traria paulatinamente o velho prestígio à bela terra dos bons ventos. A antiga vila do porto dos barcos que recebia navios estrangeiros em seus tempos áureos, agora iria receber aviões de todas as partes do planeta! e ele olhava pra mim e dizia que eu não estava delirando.

Obs: Tenho publicado somente no recanto das letras uma auto-biografia, meu primeiro livro, cujo nome é “Fascinado por chuvas”. Já este texto é parte do meu segundo volume, cujo título e subtítulo pode se lê acima.

Caso essa seja sua primeira leitura desses contos, sugiro que leia desde o primeiro capítulo para uma melhor compreensão e quem sabe proveito. Atenciosamente

Agamenon violeiro

Agamenon violeiro
Enviado por Agamenon violeiro em 21/03/2013
Reeditado em 08/04/2013
Código do texto: T4200102
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