Os segredos do rio

Este texto faz parte do meu romance " Um gosto amargo de fé" que tento publicar faz dez anos. Um dia consigo. . .

Falaria. . . se soubesse falar.

Pois tudo sabe. Dos segredos mais simples, que a ninguém interessa pela sua banalidade aos misteriosos, com suas nuances tais quais os arabescos chineses. Segredos que desafiam mentes argutas levando-as procurar pontas soltas no emaranhado de pistas falsas que levam a lugares certos. . . ou a lugar nenhum.

Nada lhe escapa. Presenciou os segredos antes mesmo de se tornarem segredos. Presenciou-os naquela parcela minúscula do tempo, perdida entre tantas outras parcelas temporais, quando eram apenas acontecimentos estranhos e desfocados. Prenúncios de mistérios. Nuances de segredos, nada mais.

Tudo sabe porque fez parte de tudo. Desde os acontecimentos mais tediosos aos mais excitantes, que mais tarde, no alvorecer das mentes, se tornariam certezas absolutas.

Está aqui há muito tempo. Muito, mas muito tempo mesmo. Desde antes até que os dois aventureiros, o mais velho com sua jovem esposa a tiracolo e o mais moço sem ninguém que pudesse chamar de seu, exceto a paixão avassaladora corroendo seu peito, fazendo arder seus olhos na escuridão das noites solitárias e tremer seus músculos ao tocar, mesmo que de leve a pele da mulher, construírem a primeira cabana nesta terra sedenta de civilização e dessem início à saga terrabiancense.

Bem antes que pés descalços pisassem a terra boa e farta à cata de alimentos, ainda inocentes e não contaminados pelo pecado europeu, ele já percorria os mesmos caminhos. Antes mesmo dEle criar os primeiros seres pensantes a andarem sobre dois pés no amanhecer da vida, talvez contornasse os mesmos obstáculos, descansasse nas mesmas planícies, seguisse a mesma trilha cavada no chão fértil.

Vem de longe. De perto do mar. A imensa muralha de pedras impeliu-o em direção oposta ao seu desejo, tapando sua rota curta para as águas salgadas, obrigando-o percorrer um longo e inexplorado percurso. A inexorável lei da gravidade fez o resto, impulsionando-o continente adentro, levando-o cada vez mais longe do seu descanso final.

Não tinha nome nesse tempo que se perdeu na memória . Talvez os primeiros a beber de sua água, comer de seus peixes e refrescarem-se no seu leito o chamassem por um nome singelo que se perdeu nas entranhas do esquecimento. Talvez fosse Fonte da vida ou algo assim. E seria um bom nome para essa massa incessante de fonte vital. Talvez fosse chamado por um nome simples e sem sentido algum. Quem pode saber?

Veio de longe para chegar aqui. Veio de perto do mar, engordando a cada fonte, a cada nascente minúscula, a cada afluente. Combinando-se. Mesclando-se. Fundindo-se. Gota a gota. Molécula a molécula. Estranha fusão de águas tão diferentes e tão iguais, todas procurando o mar, tão logo ali, tão longe.

Hoje tem um nome: Tietê. Roubado dos antigos donos pelos conquistadores do além-mar, assim como foi roubado suas terras, suas vidas, suas dignidades.

As águas que hoje passam não voltam jamais. Seguem adiante sempre,sempre e levam junto os segredos escondidos entre as pedras lodosas; entre as ramas entupindo as margens; nos poços profundos aguardando incautos aventureiros e seus passos em falso; nos troncos apodrecidos semelhantes a imensas boiúnas, terror dos barcos, naus e pirogas que singram sua massa escura, nas fontes medrosas que brotam serenas, aplacando a sede e o calor dos pescadores.

Se pudesse falar. . . falaria.

Falaria da morte dos nove posseiros, completamente apagados da memória dos atuais moradores de Terrabianca, assassinados pelos donos das terras devolutas e enterrados em covas rasas. Sem cruzes. Sem flores. Sem nomes. Vidas compradas na Capital ,na mesa repleta de papéis do tabelião por uma boa quantidade de notas verdes e alguns jantares de confraternização. Nove vidas têm um peso imensamente menor na balança da Justiça frente um bom maço de dólares, umas míseras gramas de ouro e o aço frio de armas de capangas contratados a preço de banana. Balas pesam mais que sonhos. Gatilhos muito mais que simples enxadas e foices. Fumaça de tiros pesam muito mais que suores do dia a dia na labuta do viver.

Se soubesse contar. . . contaria.

Contaria das juras de amor de Ana Cecília. Dos beijos ao luar. Dos abraços medrosos. Dos corpos suados rolando no chão. Dos colos desnudos e dos seios nus. Contaria da vida vibrando no ventre menina e do brilho fugaz nos olhos de Ana Cecília. E do medo. . . nos olhos do homem. Medo de abandonar os seus. Medo de ter de deixar de comprar cavalos velhos e os transformar em potros novinhos em folha. Medo de ser abandonado pela mulher, tiradeira de sorte nas cartas do Tarô e nas linhas das mãos. Ah! Se o rio pudesse contar! Contaria das noites de esperas pela fuga que não aconteceu. Das lágrimas nascendo nos olhos, mesclando-se com as águas da chuva. Da vontade férrea de morrer e matar a pequenina vida latejante no ventre. Das horas, dos minutos, dos segundo eternos, da vida passando célere e do rosto estranhamente sereno ao constatar o abandono do amado. Da vontade de sobreviver a qualquer custo e da negação ao próprio pai do nome do fujão para não vê-lo morto numa encruzilhada qualquer. Suportar na carne as chibatadas endereçadas a ele. E ser mãe. E ser pai. Ao mesmo tempo.

Se soubesse falar. . . falaria.

Falaria da fortuna enterrada entre as duas paineiras. Moedas de ouro do tempo do Império, amealhadas durante a vida inteira do Coronel Fulgêncio. Falaria da arca de madeira, agora corroída pelo tempo e das moedas sujas de terra, poucos palmos abaixo do chão. Economias de uma vida sofrida pela esposa e filhos do muquirana, comida às vezes faltando na mesa, assassino da mulher, morta de tanto sofrimento antes mesmo do mais moço completar doze anos de idade. Dos filhos cansados da vida dura que tomaram um rumo na vida, um após outro, o mais moço ainda relutante na esperança que o pai mudasse sem nada conseguir e da decisão do velho Fulgêncio, que, com medo que eles voltassem e reclamassem a herança, decidira enterrar o tesouro na calada da noite, num lugar onde ninguém encontrasse. A chuva forte e intermitente, os ventos balançando as copas das árvores querendo derrubá-las e os raios caindo do céu como flechas de fogo foram as únicas testemunhas a ver o velho carregar com muito custo a arca lotada de moedas imperiais até a parelha de burros e levar para a beira do rio. Se o rio pudesse falar, falaria que após cavar o chão, sentara-se para descansar um pouco e a água da chuva ajudara tirar o suor do rosto. Depois, com um brilho estranho nos olhos, enterrara a arca e tentara apagar os rastros com um galho caído durante a tempestade. Como se fosse possível haver rastros numa noite daquelas, em que o céu parecia querer derramar toda a água existente nas alturas, e só depois voltaria ao sítio para enlouquecer de solidão e medo. Se pudesse, falaria que tempos depois quem passasse nas cercanias ouviria os gritos de pavor e dor do Coronel Fulgêncio, gritando com seus filhos que estavam bem longe dali, não se sabe onde neste mundão de Deus e com a mulher, morta há anos de tanto sofrimento e judiação, para não pegarem o tesouro, que era só dele e mais de mais ninguém.E completamente louco pela ausência deles e o silêncio eterno do sítio, vagara sem rumo pelas terras perto do rio onde enterrara o tesouro e depois sumira. E nunca mais ninguém viu o velho. Ninguém mais viu os filhos que nunca voltaram. Ninguém mais viu o tesouro, que ninguém sabia existir a não ser a mulher que estava morta, o velho que enlouquecera e o rio, que assistira tudo. . . mas não podia falar.

Porque se pudesse contar. . .

Contaria que o corpo descarnado depois da curva, lá naqueles ermos onde se ouve à noitinha o burburinho dos macacos com medo das onças e o uivo delas vara a noite como faca quente na manteiga fria fazendo os animais de menor porte gelarem e se aninharem nos galhos mais finos e altos, é o corpo do Coronel Fulgêncio Cruz, comido pelos bichos do mato, morto que morreu numa noite de lua cheia quando viu os filhos, que viviam longe e nunca mais voltaram e a mulher, morta de tanta dureza e judiação, na escuridão entre as estrelas. Contaria também, se soubesse falar, como ele subiu tal qual um menino na árvore mais alta que encontrou, para ficar com eles e pedir perdão por tudo o que fizera passarem na vida e, descobrindo que mesmo na maior árvore, no galho mais alto que pode encontrar não podia alcançá-los, abriu os braços como se eles fossem imensas asas e arremessou-se no ar, tentando voar.

O rio tem segredos que não reparte com ninguém. Os segredos que as águas não levam ficam para sempre escondidos no fundo lodoso e nas pedras e nos troncos e nas moitas de taboca em suas margens. Eterno confidente, não conta para ninguém que o Nego Tonho veio mais cedo para casa naquele dia que a barriga não suportou a comida forte e cheia de sustância e pediu ao dono da carvoaria que o dispenssasse mais cedo e ainda na curva, mal conseguindo ver o barraco construído perto da fonte fresca e cristalina ouviu os gritos de Maria Florência para o mascate vendedor de chita barata e quinquilharias de ouro vagabundo:-Pelo amor de Deus, meu senhor, não fais isso cumigo! Sô muié direita. Fais isso cumigo não! O sangue quente subiu dentro dele e foi por isso que apanhou o machado de cortar lenha encostado na soleira do paiol no fundo da casa e cortou fora a cabeça do sujeito sem dó nem piedade. Como fazia com as galinhas para sofrerem menos quando sentia dó de torcer o pescoço delas e depois com medo que a polícia viesse e o prendesse numa cela fria e a mulher ficasse sozinha no mundo de novo, carregou o corpo nos ombros e a cabeça decepada num saco de estopa e se escondendo no negrume da noite, evitando as estradas para não encontrar ninguém, jogou o corpo dos ombros e a cabeça do saco no rio. E não contou pra vivalma o acontecido, nem mesmo quando se lembrava de tudo e o remorso aparecia sem avisar, obrigando-o encher a cara de cachaça vagabunda na venda da vila pra esquecer. Só que ninguém deu falta pelo sujeito, que mascates assim, um dia estão aqui, noutro ali, sem fazer porto ou falta e a única pessoa que podia falar alguma coisa era Maria Florência, mas ela também não podia contar nada, porque de repente as idéias falharam e ela entrou num mundo só dela. Onde era jovem e bonita como as mulheres da folhinha encardida da borracharia do Mane, ganhada anos atrás para marcar os dias da vida, onde nunca faltava comida fosse o dia que fosse, anjos belos como ela desciam do céu para conversar sobre coisas bonitas e gostosas e o Nego Tonho, mais negro que o carvão roubado das árvores e que dava o sustento, agora era um príncipe, como aquele que matou o dragão que vivia na lua, fazia amor com ela todas as noites, fosse inverno ou verão.Contaria também que as noites de amor de Nego Tonho haviam se transformado. . . para melhor. Bem melhor do que quando ela vivia na Terra e foi por isso que ele fingiu que nada tinha acontecido e seguiu a mesma vidinha de antes, fazendo carvão durante o dia, agüentando o mau humor do patrão quando os negócios iam mal, engolindo o pó negro que o fazia tossir e comia sua saúde por dentro, porque à noite. . . Bem,toda noite uma princesa o esperava em casa para fazerem amor até o sol aparecer no céu avisando que mais um dia começava e tudo voltava ao normal, com o calor sufocando, o patrão resmungando e o suor fazendo seus olhos doerem.

Segredos de rio não podem ser contados. Sequer imaginados.

Se pudesse falar. . . falaria.

Se pudesse contar. . . contaria.

No entanto ele pode. E conta tudo em cada marulhar, em cada borbulhar das águas mansas mas só é entendido pelos peixes que nadam tranquilos, pelos seixos que cantam na correnteza, pelos animais que matam a sede com a água pura e pelas árvores que sugam umidade nas margens barrentas.

O homem ainda não aprendeu a entender os segredos do rio.

Por isso eles são levados pelas águas que passam e não voltam jamais.

Nickinho
Enviado por Nickinho em 20/03/2007
Reeditado em 23/03/2007
Código do texto: T419716