Da Cor do Céu



Naquela manhã ela acordou com mais vontade de viver. Desde que o marido a abandonara, levando os filhos consigo, ela não sentia no coração tanta alegria. O pé de lírio cheirou a noite toda, uma brancura que dava gosto contemplar quando tinha lua. Tudo havia passado. O amante, pelo qual ela abandonara família, posição de mulher casada e respeitada na cidade, já não aparecia mais para lhe pedir dinheiro. Ela já tinha vendido a radiola, a televisão e a geladeira, não tinha mais nada para dar a ele. Mas isso não tinha importância. Agora só havia aquele sol radiante, a casa para arrumar e o almoço para fazer. Era livre. Podia cozinhar o que quisesse, vestir a sua melhor roupa para ir comprar o meio-quilo de carne, fumar um cigarro na calçada, se gostasse de fumar. Do fundo da mala ela tirou o corte de fazenda azul cheirando a naftalina. Ganhara aquele tecido do marido. Um vestido lindo para uma ocasião especial. Não ia dar tempo mandar a comadre fazer, porque o seu dia especial era aquele mesmo. O espelho refletia a imagem de uma mulher tranqüila. Emagrecera de tanto sofrer, porém a magreza dava-lhe um ar lânguido que lhe caía bem. Tentou sorrir mas decidiu cantar. Ia cantar com paixão, alto, tão alto que a vizinhança ia estranhar aquela alegria repentina. Imaginariam que ela tivesse endoidado. Sim, porque o filho mais velho tinha perdido o juízo de uns tempos para cá. Ninguém sabia o porquê. Em noites de lua corria pelas cabeças de alto, chorando e gritando pela mãe. Quando a encontrava, era como se não a reconhecesse, como se ela não estivesse ali a abraçá-lo. Falava entre risos e soluços do azul do céu, que o Menino Jesus tinha os olhos azuis e Deus devia ser todo azul como o céu. Depois o marido levou-o junto com o pequeno, quando descobriu tudo. Foi uma época de muita dor. As vizinhas comentavam em surdina a sua desgraça. Diziam ter sido macumba, encomenda de encruzilhada. Uma mulher séria, que vivia para a família, de repente cair na língua do povo daquele jeito. Aquele homem já tinha desgraçado muita moça direita e mulher casada.
Parecia mesmo coisa do inimigo. Cheirava a fumo e a mato, o chapéu caído sobre os olhos verdes, e aquela fala no pé do ouvido era capaz de fazer até uma santa pecar. Ela não estava arrependida. Amara como nunca tinha amado em toda a sua vida. Naqueles braços ela conheceu o amor ardente, arrebatado, que nunca tinha sentido pelo seu marido. Coitado, tão bom! Trabalhava feito um condenado para não deixar faltar o de-comer. Tinha um jeito humilde de olhar, tratava todo mundo com a maior consideração. Mas não tinha aquele fogo que o outro derramava dentro dela sem pena. As mãos violentas de apertar, de machucar. A barba espessa queimando o seu corpo.
Pela janela aberta entrava o cheiro bom do lírio, corrupiões cantavam na goiabeira. A manhã estava com uma cor diferente. Claro, era um dia especial. Estava leve, era capaz de sair voando pela porta da cozinha e ganhar o caminho azul do céu. Lá de cima veria os meninos brincando na casa da avó, o marido trabalhando no frigorífico e ele, onde quer que estivesse. Jamais a esqueceria. Ela era diferente de todas as outras mulheres. Não tinha medo de se entregar, de experimentar o êxtase de novas sensações. Não tinha medo.
Pegou a bolsinha de dinheiro e abriu a porta de cima. Na rua, só duas meninas brincando de macaca. Na certa iam mangar do seu vestido rosa e dar língua pelas suas costas, já as vira fazer isso outras vezes. Mas tudo bem, ela estava feliz. O muro branco do cemitério não lhe oprimia o peito naquele dia. Estava com o cabelo solto e o vento roçava o seu pescoço. Devia ter passado batom. Agora ela podia, não tinha marido para empatar. O rapaz do frigorífico sentiu um frio percorrer-lhe o corpo quando a viu. Cortou o pedaço de carne de gado com um certo enjôo. Se não estivesse sozinho era capaz de voltar para casa, devia estar começando a gripar.
Ela desceu a calçada com passos ligeiros, passou na bodega e comprou uma corda azul. A rede ficava muito esticada na sala, disse ao bodegueiro com um sorriso metálico.

Quando o sol se escondeu atrás do serrote, o filho mais velho saiu correndo e uivando de dentro da casa. A avó, chorando, corria atrás dele, tentando em vão segurá-lo para que não se machucasse e o caçula, assustado, correu para chamar o pai no serviço. No final da rua ainda conseguiu ouvir o irmão soltar uma estrondosa gargalhada e gritar:

- Eu vi a mãe pendurada num caibro! Uma corda tão azulinha, da cor do céu!


(Este conto foi premiado com menção honrosa no XV Prêmio Estadual Ideal Clube de Literatura.)
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 18/03/2013
Reeditado em 07/06/2015
Código do texto: T4195158
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