Luz e sombra

Rita abriu a mala e de uma vez só despejou todas as roupas sobre a cama.Tinha a vontade de se jogar por cima delas e não sair nunca mais dali.O que havia acontecido,a que ponto havia chegado?

Fora advertida de que não tentasse-de maneira alguma-abrir a única janela do quarto úmido e com paredes verdes desbotadas e mofadas,mas não suportou o abafamento e acabou abrindo-a.Não devia! No mesmo instante o abafamento se foi...mas da mesma forma,um insuportável cheiro de lixo e animal podre invadiu o cubículo e era tão forte,que ela sentia seus olhos marejarem com a ardência.Fechou-a!

Voltou para as roupas.Abriu as trêss gavetas do pequeno criado mudo de madeira corroida,sobre o qual repousava um velho abajour de capa retalhada que ela nem mesmo fazia ideia se ainda acendia.Ali colocou mais roupas do que cabiam.fora aquele ainda havia mais um armário.Este,um guarda-rupas em estado tão ruim ou ainda pior.Haviam duas portas,mas mal se fechavam,a menos que se colocasse uma bucha de papel entre elas.Na porta da esquerda,do lado de dentro,havia um espelho que ia desde cima até em baixo,e estava alvejado de manchas indetectáveis,e de rastros de adesivos mal removidos ou gastos pelo tempo.Seu olhar era triste.Seus olhos verdes se perdiam em si próprios no reflexo daquele espelho sujo e rachado.Sentira-se assim também.Primeiro suja,suja quando descoberta,quando ofendida e quando humilhada.Agora,já livre de culpa mas não de arrependimento,se sentia rachada.Ferida por dentro,já não era mais a mesma.Já não fazia ideia de quem poderia ser,mas tinha a certeza de que não seria feliz.

Após terminar de guardar as roupas nos armários,deitou-se sobre a cama de molas frouxas e colchão fino e embolorado,e em pouco tempo já dormia.Em seus sonhos via-se novamente sorrindo,via-se descendo atônita, a escada de marfim branco para beijar o pai que chegava na porta.Não detectava ao certo quantos anos tinha naquele devaneio,mas era uma época mais calma.Sentia-se livre e plena...Ria por qualquer coisa,chorava por qualquer filme,mas chorava por emoção.Chorava pelos outros,para se sentir mais humana,por si própria não chorava quase nunca.Talvez quando lembrava da mãe...

Quantos anos tinha?Dezessete? Essa foi a impressão que teve,mas podia ser tanto pelo sonho,ou pelo fato de ter sido a face juvenil de Marcela a primeira que viu quando abriu os olhos.Ela sim devia estar na faixa dos dezessete anos.

-O que foi?-Perguntou Rita assustada,ao despertar e deparar-se com a jovem a fitá-la com um olhar vago da porta do quarto.

-Minha mãe,a dona da pensão,mandou que eu viesse te chamar pra comer,mas não quis te acordar...Você é tão bonita...

-Sou nada!-resmungou Rita levantando-se e tentando tocar o chão sem ser derrubada pela sonolência.-Me diz uma coisa,você sabe que horas são agora?

-A última vez que eu vi er quase nove.

-Nove?-Surpreendeu-se ainda tomada de sono.Será que havia houvido bem-Mas eu cheguei aqui era onze horas da manhã...

-E daí?-Sorriu Marcela.São nove da noite...

A expressão no rosto de Rita era de medo,confusão e carência.Havia perdido a noção da hora.Odiava acordar assim depois de tanto tempo sem saber de nada,como se tivesse sido descongelada após anos e anos de espera.

-Eu não podia ter dormido tanto...Eu tinha que procurar o Henrique...

-Quem?

-Nada!você disse que veio me chamar para o jantar,eu já estou indo.

Na grande e escura sala de jantar,Rita foi apresentada pela simpática r caricata Isaura,mãe de Marela,á grande maioria dos moradores do local.Havia o casal Lílian e Sérgio com suas filhas Lygia e Raquel.Ela era branca e ele negro,assim também eram as meninas.Raquel era negra e parecia ser alguns anos mais velha.Comia com avidez,mal levantava os olhos do prato...Já Lygia era loura como a mãe,e talvez fosse pela idade,ou por ser simplesmente tola,brincava despreocupadamente com a sopa,afundando os dedos no mar de cor de abóbora.

Havia também uma outra família,composta por uma velha senhora de rosto rude e áspero,um jovem com traços bastante parecidos e de altura extraordinária,e uma moça que não passava dos trinta anos e dos três era a que tinha a cara mais simpática.Pelo que parecia era descendentes de alemães,a senhora talvez,ou certamente,fosse alemã legítima.Rita sempre achou os alemães muito frios...Não que preferisse os italianos ou tivesse algum problema com qualquer um dos dois,mas nos italianos tinha qualquer coisa quente,terna.

Seu pai era filho de um judeu com uma espanhola e tinha várias outras coisas em seu sangue.Porém sempre teve fascínio pelo oriente.Aprendeu árabe,um pouco de hindi e estava prestes a começar com o mandarim...Nunca viajaria para a Ìndia como tanto desejava.Varanasi...o Gandes...adoraria conhecer o Nepal,a terra de Buda...Quem sabe nos sonhos,se ainda houvesse disposição para sonhar.

De resto não havia mais que cinco ou seis inquilinos presentes,e quando se sentava para comer a sopa fria,havia chegado um da rua,mas esse subiu depois de rápidos cumprimentos.Alguns mintuos depois ouviu um som vago,parecia qualquer coisa entre trompete,gaita e flauta...

-É saxofone!-Avisou dona Isaura com admiração.-O Beto,esse moço que chegou ainda pouco é que toca.Eu acho tão lindo...ele atarsa tanto o aluguel que eu disse que tinha que compor uma música pra mim pra compensar.Até agora...Mas é um querido,estuda pra ser médico.Eu vivo dizendo: "Quando for médico quero ver acertar todos os meus alugueis atrasados menino",mas ele faz que não ouve se sempre sai dizendo que não quer ficar rico.Diz que quer sumir no mundo,num desses cantos fora do mapa aí,e ajuda gente infeliz .Até agora disse que não conheceu gente mais infeliz que a daqui da minha pensão.Só que disse que esses,nem médico pode ajudar...

Rita tentou comer o máximo que pode,e logo em seguida subiu para seu quarto,para voltar a dormir.No corredor,porém,foi detida por uma sinfonia melancólica que vinha do saxofone de Beto.A porta estava fechada,mas não estava trancada.Ela certamente não sabia disso,mas sentiu um impulso que a obrigou a esticar o braço e empurrá-la para frente...Não,não estava trancada.O volume aumentava,ele a notou ali,mas não parou de tocar.Era como se a esperasse,se tocasse para ela,a música de sua vida...

"Estava esperando você chegar" Parecia que ele diria isso a qualquer momento.E então ela de pronto responderia: "Segui minha canção.Segui o seu chamado""Não sei que música é essa e talvez nunca a tenha houvido antes,mas sei que é para mim...sei que me chamava ao tocar essa música"

-Theme from Dying Young!-Disse meto após o fim da canção.

-O que?-Perguntou novamente perdida,como quando foi acordada por Marcela uma hora antes.

- O nome da música...eu acho que você gostou, se chama Theme from Dying Young.

-É linda,é sua?

Não-respondeu entre sinceros risos-É uma música famosa,você nunca ouviu?

-Talvez,eu não si...Eu achei tão...tão triste,tão bonita...vai ver que eu já ouvi e nem me lembrava.

-É por isso que eu adoro música.A gente pode ouvir uma música como essa,uma única vez,quem sabe quando tinha cinco seis anos de idade e então só ouvir de novo agora...mas se a música for assim,for como essa música,a gente vai acabar lembrando,eu não sei bem o que é.

-Eu acho que chamam isso de paixão!-Agora era ela quem ria,e logo os dois riam juntos.

-Pode ser,eu não sabia que a gente podia se apaixonar por uma música,mas se você diz...

-Eu não sei de nada.Invadi o seu quarto,você nem sabe quem eu sou.Eu sou nova aqui.

-Não parece o tipo de gente que vive aqui.

-Você também não.

-É como diz o ditado,a ocasião faz o ladrão.Não que eu seja um ladrão,é claro.

Voltaram a rir.Rita ria nervosa,quase histérica.Sentiu-se por um instante, como no sonho que tivera,livre,plena,pronta para rir ou chorar por qualquer ou nenhum motivo.Sentia-se bem!

-Eu sou Beto,Roberto...-Estendia a mão para ela.

Rita ficou um tempo olhando para ele,calada.Beto seguia com a mão estendida,sem saber o que fazer,onde colocá-la.Mas logo Rita "voltou a si" e ao invés de aceitar o cumprimento do rapaz se aproximou instantaneamente dele e lhe abraçou forte como se não o visse á anos...Ele a principio permaneceu alheio,mas não resistiu ao calor do corpo de Rita,e retribuiu o abraço pleno de emoções abstratas.

Era como se cada um abraçasse a um ente querido,um familiar ausente ou a algo que perdeu pelo caminho.Completavam-se os dois um no outro.Tinham ali consigo mil fantasmas,mil caras,mil corpos,mil almas sozinhas...Era como matar a pior das sedes de uma só vez.

A semana passou rápida e insuficiente para Rita no que diz respeito a organizar sua vida.Não conseguiu de maneira alguma encontrar Henrique,esteve sempre viajando...Em compensação,ouviu diversas vezes a música de Beto,aquela e diversas outras,entre elas a que ele compôs especialmente para ela.Se chamava yeux verts,que eram olhos verdes em francês.Disse que em francês o nome ficaria mais charmoso e de fato havia ficado.Fazia mais de um ano que dona Isaura pedia uma música a ele e não conseguira compôr,no entanto em menos de uma semana nascia yeux verts para Rita...Justificou que tudo era uma questão de inspiração,a base de qualquer trabalho artístico.

Soube cada vez mais da vida dele.Que sua família, de origem italiana,vivia no interior e que se há mais de vinte anos era uma das mais influentes do sul,hoje não possuía mais do que o pequeno sítio em que viviam.Soube do seu sonho de ir para a África trabalhar com crianças doentes-adorava crianças- que era apaixonado por jazz contemporâneo e literatura russa,entre outras coisas,soube que o adorava.Sentia por ele o que nem Henrique conseguiu despertar nela,admiração!além do mais era bonito o que a fazia atraída por ele,mas tudo era muito natural,não separava o sagrado do profano,não havia profano,não acreditavam em pecado.Não davam nome ao que viviam,era a Vida!No entanto ainda não se sentia suficientemente segura para contar a ele sobre sua vida.Pelo contrário,o quanto mais próxima ficava dele,mais medo tinha de lhe falar a verdade de perdê-lo para sempre e voltar a ser a pobre infeliz perdida que ali havia chegado entre o mofo e o cheiro de lixo de um quartinho apertado de fundo de pensão.

Como dizer que estava grávida? Que esperava o filho de um outro homem,e mais,um homem casado!Não que Henrique amasse a esposa,por que isso não era verdade,mas que diferença fazia se Henrique amava a esposa,se a traia por prazer ou por paixão?Ela,Rita,ainda estava grávida,ainda daria luz a uma criança dele,e o que seria dos três,dos quatro?Dela,e da criança?Dela e de Henrique ?Dela e de Beto...O que seria dela?

Sentia-se em um conflito entre a luz e a sombra.A luz da verdade que poderia deixar-lhe em uma solidão escura,ou então a sombra da mentira que poderia acabar segando-a com uma falsa felicidade na qual certamente acabaria se perdendo,e colocando tudo a perder no futuro.

Mais uma semana havia passado e no entanto em nada havia acrescentado em sua decisão.Mas como seu pai costumava dizer antes de expulsá-la sem piedade de casa por se negar a abortar o filho de um bandido,as vezes quando não sabemos o que fazer,ou por onde andar,a vida por si só decide tomar as rédeas da situação e nos mostrar o caminho.Pode não o ser o mais fácil ou o que mais gostaríamos,mas o problema era seu por não tomar uma iniciativa!

Para ela aconteceu enquanto almoçava com Marcela na cozinha, preferia pela privacidade,e Isaura veio da sala para informá-las,com os olhos prontos a explodir em uma torrente de lágrimas.

-Venham ver a televisão.Aconteceu um acidente no centro,o Beto foi Baleado...

De novo sentiu-se entrando em um transe profundo.As pessoas e objetos ao seu redor foram aos poucos se desfocando e se convertendo em meros borrões de cores mistas.Nada mais fazia sentindo,e sentia-se andando sozinha por um corredor escuro mas conhecido.Não havia luz,e também não havia sombra já que uma depende da outra.A luz da sombra,a mentira da verdade e vice-versa...Seguia por instinto,o mesmo instinto que naquela noite a fez empurrar a porta do quarto de Beto...Ouvia um chamado,não era uma voz,era uma música....

"Theme from Dying Young'-dizia uma vez mais...Andava sem medo,medo de que,se nem sabia por onde andava?"yeux verts",olhos verdes,a música que ele havia composto em uma semana para ela.

Tudo se calou!Já não haviam mais músicas,não havia chamado e tudo estava claro.ela havia subido até o terraço da velha pensão,e mas não queria morrer,não queria se matar nem ao filho que esperava.Queria seguir Beto,contar-lhe a verdade,ser honesta com ele,queria poder amálo,atender seu chamado.Andou,andou,caiu e novamente adormeu em questão de segundos,porém dessa vez não sobre o colchão fino e empelotado do cubículo úmido.Dessa vez não se via descendo escadas de mármore nem beijando o pai.Já não podia chorar,nem rir por qualquer ou nenhum motivo.Já não podia mais pensar,mas se pudesse.Se pudesse se ver ali,na rua,diante das casas e da multidão de curiosos que logo se pôs em volta do corpo diria a sí mesma que havia errado quando teve a certeza de que nunca mais seria feliz.Haviam sido as semanas mais felizes de sua vida,as últimas e haviam sido as últimas semanas de sua vida,as mais felizes!

FIM.

Diogo Machado
Enviado por Diogo Machado em 17/03/2013
Código do texto: T4192770
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