O DIA DE MORRER
Estava muito quente aquele 21 de dezembro na minha aldeia. Eu ardia em febre pela catapora e o pijama de pelúcia em nada contribuia para aliviar o calor. Da cama, olhava as folhas levadas pelo vento e imaginava que fossem como a neve que via nos cartões de Natal importados, expedidos pelo correio dias antes. Fazia pouco que minha irmã medira a temperatura e me dera uma colher de sopa de um remédio amargo. Com a mão em minha testa, garantira que a febre baixaria em breve. O toque que recebera era a única coisa boa daquilo tudo. Sentia dores pelo corpo, calafrios, indisposição e o pior: a prisão.
A cidade havia se iluminado, as espectativas de festa se espalhavam por todos os cômodos da casa e eu estava proibido de sair do quarto. Catapora era uma doença grave, que podia ser passada para outras pessoas. Daí a prisão. Daquele quarto não conseguia enxergar as pereiras carregadas de frutos amadurecendo, muito menos a amexeira carregada de incipentes frutos verdes que logo enfeitariam a árvore de amarelo, tal qual fosse um pinheiro de Natal decorado com bolas de uma única cor.
Não fossem a coceira na pele, as noites assombradas de pesadelos pela febre e a prisão, a doença pouco me diria. Gostava do cuidado especial que recebia e havia a promessa de que, em poucos dias, deixaria a prisão e poderia participar dos festejos do fim de ano.
As lesões da pele começaram a secar na manhã da véspera do Natal. Era um sinal de que poderia ser novamente incorporado à comunidade familiar. Sentado no degrau que solucionava o problema de desnível entre a cozinha e a parte íntima da casa, pude presenciar o almoço da família, enquanto tomava minha canja de doente. O assunto era o jantar natalino, a ser realizado depois da Missa do Galo, à meia-noite daquele dia, véspera de Natal. Seria uma longa espera, até a hora da chegada do Papai Noel. A animação da mesa era contagiante. Fiquei animado, reexaminei minha performance do ano. Nenhum grave incidente a restringir meus direitos junto a Papai Noel. Verdade que os exames de admissão do quinto ano não tinham sido brilhantes, mas foram vencedores: estava habilitado a frequentar o ginásio. A quebra da vidraça do vizinho com o caniço de pesca tinha sido diplomaticamente resolvida pelo meu padrinho, por feliz coincidência em visita na ocasião. Saldo positivo. Créditos, pois, à vista. Talvez o revólver do Roy Rogers, ou o Sinca Chambord movido a corda... Talvez fosse um Natal de presentes...
A tarde apresentou-se em ventos. As peras espalharam-se pelo chão do pátio. Duque, o cão de caça de meu pai, pos-se a uivar no anoitecer. Ouvi comentários de que as visitas não viriam, em razão da tempestade que se prenunciava.
Calafrios, minha irmã comentando que a febre se mantinha. Mais amargo em minha garganta.
De mãos dadas com o demônio, descobri que meus pecados eram imperdoáveis. Ainda que tivesse comparecido a todas as novenas e cumprido todos os rituais preconizados, meu destino era o inferno. Satanás me queria e, com as garras cravadas em minhas costas, arrastava-me ao capítulo final de um drama escrito antes de eu nascer. Conheci os aposentos onde ficaria acomodado pelo resto de minha existência. A cama era de cimento, sem cobertas, mas na parede oposta havia um moderno aparelho de televisão passando imagens da minha vida. Reconheci passagens dos meus três anos, e mais. Muito mais. Vi coisas dos trinta, dos quarenta e de minha morte. Fiquei horas ali, olhando minha vida passar e acabar na tela do aparelho de tv.
Quando voltei do inferno, ou, segundo minhas irmãs, acordei dos delírios da febre, ouvi o médico dizendo que o pior passara. Havia sido apenas uma recidiva da doença e que, nos próximos dias, a febre cederia e eu estaria curado da doença.
Ontem, um pouco antes de morrer, lembrei-me deste episódio, que fizera questão de esquecer, para não morrer antes do que estava estabelecido.