Viagens pelo Ceará IV

IDEIAS AVENTUREIRAS, MUSICAIS, LITERÁRIAS, MÍTICO-CURANDEIRAS, ENXADRÍSTICAS, TEATROLOGAS E INSANAS... DE MORADORES DO VALE JAGUARIBANO, NUM ANO DE ESTIO.

A IDA AO PONTAL DE MACEIÓ E AS FOTOS NO FAROL

Eu estava muito satisfeito por ter feito belas fotos, ter participado de uma divertida pescaria e por ter desfrutado de conversa bem agradável com aquele homem sobre suas experiências de vida. Dialogamos bem muito ainda, mas era preciso descansar, a cerveja me deixou meio sonolento. Falei que no dia seguinte iria fazer umas fotos do farol e da barra. Eu tinha informação de que as águas do mar do pontal de Maceió estavam causando erosão nas falésias, e fazia também questão de registrar isso enquanto podia. Quanto às obras da região, eu sabia que o Aracati havia ganhado uma nova ponte sobre o Jaguaribe, além de um aeroporto e tudo isso estava no meu roteiro. Nos despedimos e ele se comprometeu a ir comigo de carro até o farol e o pontal.

No dia seguinte, saímos depois das sete e durante o trajeto fui ouvindo seus dizeres sobre a vida que levou e o que viu no tempo em que esteve embarcado. Falou de viagens que fez pela costa brasileira, por rios da Amazônia e Mato grosso e que esteve em muitos países.

Atualmente criava dois cachorros poodles, jogava um pouco de dama, mas que conhecia razoavelmente o jogo de xadrez. Se dizia ser um bom leitor de biografias. Disse-me que gostava de ouvir os hinos que os tradicionais crentes cantam, que não suportava conversa mole de alguns padres pregadores. Que estes vinham com um lenga-lenga sem fim, sem ir nem vir, fugindo do principal, enchendo linguiça com coisas que ficavam no ar. Não ia com a cara da maioria dos sermões deles, definitivamente aquelas palavras não lhe convenciam muito. Para ele, as pregações moles dos padrecos bem como a maneira de se comportar dos seguidores eram carolices e tolices sem muito proveito. Eram um bando de ovelhas conduzidas por um pajé que nunca viveu numa tribo. Adotavam aqueles padrões ritualistas e de uma religiosidade meio festeira, e esqueciam completamente o que era ser um cristão, se bem que ele não tivesse muita coisa com isso. Podia se dar ao luxo de estar indiferente às questões da política e religiosidade locais. Não tinha interesse em se engajar nesses segmentos. Gastava seu tempo em seu prazer de pescar e a convivência com a mulher. Tinha a sua história, trabalhou e cuidou da família, estava na reserva. Seus dois filhos haviam ficado Rio de Janeiro com sua ex-mulher, eram adultos, estavam bem empregados e que ele, A. Carlos, se identificava com a canção de gordurinha:

“Caranguejo sá, caranguejo sá...

Os fiinho tão criado

Satisfiz o meu desejo

Eu podia descansar

Mas continuo vendendo

Caranguejo”.

Mas nem isso fazia, não vendia nada de suas pescarias, consumia o que queria e o resto doava. Uma vez ele e outro pescador, fisgaram um tremendo camurupim. Depois cortaram o peixe que foi dividido pros dois. Ele só levou pra casa o que cabia no freezer da geladeira, uns cinco quilos e doou o resto para outros pescadores. Dizia que não trocava aquele seu viver por nenhum outro da capital. Via pelo noticiário a umidade do ar muito baixa lá em São Paulo, menor do que a dos desertos. Via a correria, sabia da barulheira, ora já vivera aquilo de perto. Sem dúvida que quando chegou pelo sudeste na década de setenta, se espantou com a beleza do lugar e os atrativos da mulherada. Umas deusas de corpo! Mas não podia dizer o mesmo da alma delas, mas que eram uns diabos de tentadoras isso era inegável. Na hora da conversa porém, via a coisa diferente, eram muito livres, muito senhoras de si já naquele tempo, e não davam a ele a devida atenção que achava merecer, eram diferentes das moças daqui e sem dúvida que estavam bem mais diferentes hoje. Na época não gostou daquilo nem um pouco, por que mulher não é só corpo bonito.

Seu viver na cidade maravilhosa exigia compromissos sérios. Entrou no ritmo da rotina e conseguiu se adaptar, usando despertador, se preparando desde a noite anterior, se barbeando cedo, se ligando nos horários dos ônibus, usando roupas próprias para a época das chuvas e os tempos de frios. Planejava voltar ao nordeste quando se aposentasse, mas a coisa parecia tão longe. Pensava em comprar um barco, uma antena parabólica, um rádio amador, e ter uma casa confortável onde morar. Graças a Deus e aos seus esforços estava melhor do que imaginava. Rádio amador era coisa praticamente em desuso agora. Ali, onde morava estava conectado com toda a tecnologia que existia nos grandes centros ia se preocupar com que? É certo que não havia casas de shows nem teatros mas, nem sempre ia a esses lugares quando morava no grande centro. Não estava preocupado com o que lhe faltava, estava era satisfeito com as preciosidades que dispunha. Disse-me que era tão realizado e feliz com sua vida que muitas vezes nem acreditava, pensava até que era um sonho morar ali na beira do rio e poder ir pescar do outro lado quando quisesse. Era um premio valioso, era como estar de férias sempre e ser turista no melhor lugar do mundo. Sofrera muito quando tinha que acordar cedo, para preparar a comida nos navios e quartéis, mas se orgulhava de ter sido cozinheiro. Ele, pelo menos sabia que todo dia o pessoal precisava comer, seu trabalho era aquele, é, ele o fazia e via o resultado, não estava dizendo que os outros não trabalhavam não, mas não trocava a profissão dele pela de ninguém. Comparava seu status com o de um almirante, mas é claro que se achava mais privilegiado ainda do que um daqueles oficiais generais. Conhecia casos de grandes problemas na vida de comandantes que não gostava nem de falar. Eram grandes traumas, filhos doidos, drogados, mulheres que se tornavam sem-vergonha depois de velhas, os maridos almirantes na mão de agiotas, viciados em uísque, cigarro e aposta em corrida de cavalo, querendo a fina força morar na zona sul e devendo os cabelos da cabeça. Conheceu um almirante corno, cuja mulher era toda pra frente e numa das festas que houve viu a despudorada dançando com um boy aquela música vale tudo do Tim maia. Ele era da taifa e conhecia coisas, via como eram os bastidores, o outro lado da cortina, as armações para privilegiar dedos duros em viagens e comissões, sabia das preferencias. Sabia do poder dos veados lá dentro, sim porque por lá também havia esses tipos que hoje estão aí lutando para serem admitidos sem reserva e escancaradamente na sociedade.

“Rapaz esse negócio de veadagem vem de longe”! ele havia lido os escritos escabrosos que Adolfo Caminha dizia haver dentro da Instituição Naval. Mas não queria falar disso, o importante era que ele estava por ali naquele belo lugar. Não trocava sua vida nem pela do príncipe de Gales.

Fora casado vinte anos com uma mulher pernambucana mas, separaram-se. Os filhos eram equilibrados, ele estava satisfeito e a vida continuava. Ele procurava o equilíbrio. Morava atualmente com uma nativa dali, uma pessoa nascida no mato. Os pais dela viveram da agricultura familiar e agora esrtavam aposentados. Possuíam uns quatro hectares de terra e plantavam de forma tradicional nos invernos, milho, feijão, mandioca e batata. Na época dos cajus manufaturavam o que o fruto dava e até cajuína sabiam fazer. Mas o que mais e melhor faziam era o cultivo da mandioca. O velho tinha uma casa de farinha. Vendiam parte do que produziam, mas não vendiam a fécula que é a goma. Dela faziam tapioca o ano todo para vender nas padarias. Da mesma forma faziam também pamonhas, canjicas e bolos de milho. Essa sua companheira sabia ler e gostava de trabalhos manuais, os dois cozinhavam bem e por enquanto estavam satisfeitos um com o outro.

Ri dos seu “por enquanto” e ele também. Fiz fotos do Jaguaribe e seu bonito encontro com o mar, dos areais ao lado do farol e de casas próximas às barrancas do pontal, onde a erosão marítima estava avançando e roendo aos poucos.

Numa das barracas de praia , o dono falou que havia lagosta pra tira-gosto e ele mandou preparar dois e aí para não perder o costume, era hora de mais uma caninha com o nobre fruto do mar.

O cozinheiro-pescador fez questão de que eu fosse almoçar em sua casa. Tentei recusar mas ele não aceitou, disse que gostaria de me mostrar seus cachorros poodles, suas plantas medicinais e um tabuleiro de xadrez em madrepérola que havia comprado na França.

Morava numa casa grande de primeiro andar. No térreo havia um gramado e algumas plantas cheirosas, manjerona, capim santo, bogari, bocas-de-leão. Um casal de poodles, sendo o macho um preto e a fêmea branca. Sua esposa era morena e nos recebeu com solicitude, ela estava lendo livros da a literatura dos testemunhas de Jeová, uma de suas irmãs frequentava as reuniões daquela confraria.

Almoçamos galinha caipira cozida. Durante o almoço conversamos sobre culinária, e esse assunto eles dominavam, enquanto eu me limitava a ouví-los e tentar aprender alguma coisa. Ele repetia sua máxima de que importante era viver no meio termo sem muitos excessos, “já que tudo é veneno”.

Na varanda ventilada armaram redes e ficamos nós e os cachorros, enquanto ele, comandou a apologia de quem é grande apaixonado por esses bichinhos de estimação:

“Eles ficam por ali, estirados no chão, serenos, saciados, dormitando, mas estão atentos aos sons e odores do local... parecem indiferentes, mas, que se levantam ao menor sussurro estranho... se veem que sou eu ou alguém conhecido, manifestam receptividade balançado a cauda como quem sorri silenciosamente! São pensadores calados... Penso neles e no santo de Assis que os tinha como irmãos... são ternos, logo esquecem qualquer reprimenda e estão de volta com a mesma afeição e paz de criança brincalhona .Têm um jeito, que só eles sabem expressar pra nós... nós que os amamos, sim, porque tem gente que não gosta deles...”

E eu ia escutando suas palavras e o sono ia me dominando...

Falou dos tipos de latidos e sonoridade dos rosnados, disse que são bichos engraçados, graciosos e instintivos, podem ser tidos por bobos, por vadios mas que para ele, eram irreverentes e inteligentes.

E falou que não sabia se existia alguma raça deles que fossem como alguns de nós, que quando ofendidos esperavam uma vida inteira para se vingar... quem primeiro reconheceu o grego Ulisses ao voltar da guerra de Tróia foi seu cachorro... a prova estava ali, com certeza guardavam as lembranças boas”.

E continuou falando que a literatura é muito vasta sobre esses bichos e que a cada dia aumentam as lojas de materiais destinados a esses bichinhos... que são queridos no campo, na cidade, em qualquer lugar, são companheiros de cegos, crianças, policiais... estão ao lado de quem os adota, sejam idosos, personagens de quadrinhos, estadistas, filósofos, quem for... são muito humanos... filosofam, se não fazem discurso, dão lição de fidelidade...são bichos com sentimento de quem pensa menos, ama e age mais, a natureza deles está impregnada de amizade, de carícias recíprocas e porque não dizer: perdão!

“Quando chego em casa são calorosos ao me receberem Se os acaricio, deleitam-se como se estivessem desfrutando do paraíso. O simples jeito cachorro, seus gestos e movimentos, a língua de fora, o focinho úmido, olhos, dentes e patas... tudo isso me faz gostar de abraçá-los e estreitá-los contra meu rosto e peito chamando-os pelo nome. Abraço-os como a uma pessoa querida. Sinto seu pelo, cheiro, calor e ouço a sua respiração, as batidas do coração e me irmano a eles e aos verdadeiros devotos de Francisco de Assis, um santo tão humano, tão amigo dos bichos e tão devoto de Jesus Cristo!”

E ao som desse discurso canino, dormi sono bom e acordei depois das três e meia, novamente sentindo o cheiro de café no ar. Tomei um banho e ainda joguei um pouco da xadrez com ele. Era minha intenção viajar naquela tarde ainda para Aracati, mas insistiram que eu ficasse até a noite. Fiquei até umas cinco horas, queria chegar na cidade antes que escurecesse.

Me deu o número do telefone de um irmão seu que morava em Russas, e me disse que quando eu passasse por lá podia procurá-lo. Que, ele era um bom sujeito, era barbeiro, bom leitor e se chamava Petronio. Certamente eu ia gostar de suas histórias e que esse seu irmão conhecia muita gente, cantadores, vendedores e artesãos.

Quando eu voltasse à Fortaleza não esquecesse que o Fortim não era tão longe e que o rio Jaguaribe me esperava a qualquer hora e que agora tinha mais amigo ali.

Muito agradeci a ele e à sua esposa pela atenção e calorosa acolhida e nos despedimos.

Obs:Tenho publicado somente no recanto das letras uma auto-biografia, meu primeiro livro, cujo nome é “Fascinado por chuvas”. Já este texto é parte do meu segundo volume, cujo título e subtítulo pode se lê acima.

Caso essa seja sua primeira leitura desses contos, sugiro que leia desde o primeiro capítulo para uma melhor compreensão e quem sabe proveito. Atenciosamente

Agamenon violeiro

Agamenon violeiro
Enviado por Agamenon violeiro em 16/03/2013
Reeditado em 08/04/2013
Código do texto: T4191748
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