Viagens pelo Ceará III
IDEIAS AVENTUREIRAS, MUSICAIS, LITERÁRIAS, MÍTICO-CURANDEIRAS, ENXADRÍSTICAS, TEATROLOGAS E INSANAS... DE MORADORES DO VALE JAGUARIBANO, NUM ANO DE ESTIO.
A PESCARIA À NOITE
O sol foi subindo, ele retirou uma lona do barco e no meio de pequena clareira improvisou uma coberta por cima de uns troncos baixos de mangue. A lona formava uma parede para o lado do poente e junto com os galhos das árvores maiores dava perfeita proteção contra o sol da tarde, enquanto a brisa soprava solta do lado leste e só a folhagem dos mangues lhe serviam de filtro. Fotografei o que julguei suficiente no local e guardei o equipamento na bolsa impermeável. Almoçamos o peixe com um pirão de farinha escaldado. Estava bem assado, ele usou uma grelha de malha fina que era parte da equipagem do bote. A aguardente desce bem nesses momentos, apesar do calor que vai se intensificando. E assim se passou a nossa manhã às margens do sereno Jaguaribe. Armei minha tipóia de cordão na sombra da lona e sob a brisa do Aracati, dormi um sono melhor do que o que costumo desfrutar no meu apartamento da capital.
A tarde chegou com seus raios cada vez mais brandos e com outros matizes e encantos sobre as bonitas águas.
O cozinheiro também tirou sua soneca, depois comemos rapadura e bebemos água, nisso, ele ia se animando e voltando aos seus dizeres. Disse que nesse período de meio para o fim de ano, não dá mosquito na margem do rio ao anoitecer, e a gente podia ficar até a noite, estenderíamos a rede grande de pesca e esperaríamos a força da vazante. Ele explicava que conhecia as marés pela lua, mas como estava vindo quase todo dia pescar, ia acompanhando a rotina dos atrasos de quase uma hora de um dia para outro nas mudanças de preamar para baixa-mar. Foi então que eu disse que já entendia mais ou menos esse mecanismo por ter consultado uma tábua mensal de maré pela internet.
Decidimos ficar até a noite, assim eu faria umas fotos do entardecer de outros ângulos, e iria ajudá-lo a estender a rede perpendicular ao rio. Entrei no mato e fui até umas dunas brancas de onde podia ver mais e melhor o mar, o rio, os artefatos de energia eólica e a cidade na outra margem. Nisso gastei mais de uma hora, quando voltei das fotos, senti o cheiro de café no ar e já devia ser umas quatro e meia da tarde. Depois de um cafezinho sem coador, onde se sente o pó na boca e nas condições dessas tardes de aventura, não recuso uns dois tragos de cachimbo ou cigarro brejeiro.
Nos preparamos para voltar ao barco. Agora, sem o uso da vela, usando apenas os remos e a força da maré que ainda enchia espalhamos a rede e isso foi um pouco cansativo. Daí, era voltar pra margem e esperar a maré baixar pra recolher a rede mais tarde com os peixes que estivessem malhados.
Era fim de tarde, hora para mais uma cachacinha e muita conversa que eu mesmo achei por bem encabeçar, perguntando de onde ele era e como entrou na Marinha. Respondeu que era natural de Grossos no Rio Grande do Norte, e que havia ingressado como marinheiro conscrito por informações que recebeu da capitania dos portos de Areia Branca. Que Grossos é assim meio parecida com o Fortim mas mais pela pela localização, que era cidade situada à margem esquerda do rio Mossoró e o mar um pouco mais à frente, só que Fortim era bem mais alta e não tinha a aparência de tristeza da sua cidade natal. Seu recrutamento havia sido feito na base naval de Natal. Explicou que naquela época e naquele concurso que ele havia passado na década de 1970, não podia escolher outras especialidades que não fosse, barbeiro, cozinheiro, e arrumador. Essas profissões faziam parte do quadro de taifa. Continuou dizendo que tinha direito a ser promovido até o último posto de praça como os outros marinheiros de escola, coisa que não acontecia em outras Forças Armadas na época. Por essas e outras tirava o chapéu pra Marinha do Brasil. Mas que eu não me enganasse, instituição é uma coisa e o pessoal que a compõe é outra bem diferente! que dentro de uma corporação bonita como aquela havia um bocado de cabra safado. Puxa saco, dedo-duro, gateiro... e explicou que gateiro é o cara que comete peculato, furtando comidas ou mercadorias das dispensas e paiós de mantimento. Nesse momento notei seu constrangimento por ter falado sem querer aquela palavra. Num tom mais forte disse que nunca tinha sido influenciado pelas gírias que falavam por lá. Achava feio os termos que pareciam coisas de malandros:” tá safo? - não pega nada, tô de pau, fulano é escamado, vou pegar o picado, não deixe nada de agarra se não quiser ir pro bailéu”. Sabia sim que aquilo era tradição e não estava ali para questionar isso, mas como não era obrigado a usar aquele jeito de falar, mantinha o seu jeitão de nordestino.
Resolvi tomar mais uma caninha, enquanto ele ia acendendo as brasas pra assar mais peixe. Nesse ritmo, a noite ia chegando e eu não quis fazer fotos noturnas. A maré começou a baixar e ia demorar umas duas horas naquele movimento em direção ao mar. Os sons da própria água em movimento junto com os das folhas arrastadas na correnteza, além dos saltos de peixes em perseguições de outros menores e até de camarões, começam a dar vida bem animada ao rio. E, pra quem tem bom ouvido pra os rumores naturais, certamente que poderá se deliciar com estalos e novidades que nos brindam esse movimento de maré vazante num lugar silencioso como aquele.
A conversa se estendeu por mais tempo e ele falou da diferença dos nomes de peixes. O camurim daqui, tem nome de robalo lá no sudeste e que aquele barulho estralado eram eles, os camurins abocanhando suas presas menores e outras imaginárias no movimento das águas, não era à toa que eles engoliam camarões e pegavam iscas artificias de vez em quando.
Escureceu e a brisa se extinguia junto com as água que corriam pro mar. Ele aproveitou para me contar que muitas vezes naquelas noites ali na margem, ficava deitado na sua rede e vendo as estrelas e planetas no céu. Havia aviões que passavam bem alto com suas luzes brilhando como estrelas e ele ia seguido a trajetória deles. Gostava de pensar sobre isso, ali naquele transporte aéreo, estavam muitas pessoas indo de um lugar para outro, cada um com os seus dilemas de vida e ele ali embaixo, naquelas horas muitas vezes se concentrava em preces por aqueles viajantes.
Além do fogo que iluminava a praia, usamos uma lanterna na hora de recolher a rede do rio. Todo o nosso material estava a bordo e, íamos recolhendo a rede desde a margem até o meio onde ela terminava, de lá iríamos voltar ao porto do Fortim e encerrar o evento do dia tomando uma cervejinha gelada para hidratar um pouco, porque ninguém é de ferro.
Recolhemos com certa facilidade a rede. Ao chegarmos na margem esquerda, as luzes da cidade brilhavam e o barulho de motores das lanchas até me causaram irritação. No ponto onde havia a rampa encontramos um grupo abastecendo barcos para a saída no dia seguinte. Ele chamou uns rapazotes que estavam à toa, e pediu para que retirassem os peixes da rede, depois daria uns trocados a eles. Nas malhas havia uma misturada de peixes com folhas de mangues, siris e até um camurim de quase um quilo.
Obs: O LIVRO
Tenho publicado somente no recanto das letras uma auto-biografia, meu primeiro livro, cujo nome é “Fascinado por chuvas”. Já este texto é parte do meu segundo volume, cujo título e subtítulo pode se lê acima.
Caso essa seja sua primeira leitura desses contos, sugiro que leia desde o primeiro capítulo para uma melhor compreensão e quem sabe proveito. Atenciosamente
Agamenon violeiro