AULA PRÁTICA
Não sabíamos nadar, nem o Lúpi, nem eu. Ainda assim a nossa maior diversão era ir todos os dias tomar banho na pequena barragem do bairro, badalado ponto de recreação frequentado pela maioria das pessoas dali, aonde uns iam para tomar banho, quer fosse de sol ou de água; outros iam dar banho e bebida a seus animais, quer fossem de sol ou de água.O certo é que todos os dias, depois da aula,corríamos para lá, o Lúpi e eu. Algumas vezes, chegávamos até a gazear a aula para ficarmos ali, olhando as mocinhas em seus shorts curtos, suas blusas transparentes, e os garotos maiores exibindo-se para elas com seus saltos mortais, seu fôlego de pular de agulha e atravessar a barragem, submersos na água barrenta. Meu amigo e eu ficávamos horas nos banhando à beira da barragem, – na verdade, o meu amigo ficava um pouco mais distante, pois se pelava de medo de água. – Sendo assim, ficava eu na beira, sendo observado por meuinseparável protetor, dividindo o espaço com burros, bois, cabras, além de outras crianças que, tal qual ao Lúpi e a mim, nadavam feito uma pedra.
Mesmo sem didática, tentei ensinar o Lúpi a nadar, porém foi em vão. Bastava o pobre chegar perto d’água para ficar todo arrepiado, olhos marejando e emitindo um agudo gemido de aflição. Eu sempre acatava seus sinais de recusa às aulas práticas de natação, mas um dia desses, quando não havia ninguém olhando, faltou-me a paciência e eu joguei o coitado do Lúpi na parte mais funda da barragem. Até hoje me causa angústia a memória do meu pequeno companheiro debatendo-se em meio à água turva, pedindo socorro e eu, àquela altura, já arrependido da brincadeira de mau gosto, nada podia fazer para impedir a morte iminente. Acocorei-me efiquei observando o indefeso ser de olhos esbugalhados, subindo e descendo, tentando agarrar-se na fluidez da água para capturar qualquer coisa de ar que por ali passasse... Teria morrido o infeliz, não fosse a agilidade do Damião que chegou ao local bem a tempo de saltar em auxílio do meu amigo... Graças a Deus!
Daquele dia em diante Lúpi não me dirigiu mais a palavra. Continuava a acompanhar-me a cima e a baixo, estava sempre comigo na barragem, porém sempre em silêncio, exceto pelo gemido agudo que sempre emitia todas as vezes que por descuido eu me distanciava da beira em direção as partes mais profundas da barragem.
Certa tarde, observávamos – como de costume ¬¬– as mocinhas em seu banho.Senti de súbito um tranco no braço. Era o Damião. O rapaz tinha o dobro da minha altura. Sempre andava sozinho, mas naquela tarde estava acompanhado de dois de seus amigos, cada um mais entroncado que o outro. “Foi esse aqui, pessoal, o pivete que quase matou o próprio amigo afogado”, disse. “Isso lá é coisa que se faça com um amigo?” falou um dos outros dois.
Damião apertou ainda mais o meu braço, puxando-me em direção ao sangradouro da barragem. “Sabe nadar, menino?”, perguntou. Respondi abanando a cabeça negativamente. “Que pena! Como é que tu vai sair da água?”, falou em tom ameaçador.
Tentei explicar o episódio da aula de natação que quase matou o Lúpi, mas os três justiceiros não me deram ouvidos. Seguiram comigo em direção ao sangradouro. Mirei os olhos do meu pequeno amigo na esperança de que ele pudesse dizer algo a meu favor, porém ele calado estava, calado permaneceu, sentado à sua habitual distância da água, olhando-me com aquela máscara neutra.
Vista do sangradouro a barragem parecia maior do que realmente era e ainda mais profunda e – naquele instante –, sem ninguém além de mim, dos três justiceiros e de Lúpi que àquela altura, dando-se conta do que estava para acontecer comigo, caminha aflito de um lado para o outro, na beira da barragem. Onde estariam as mocinhas em seus shorts curtos e suas blusas transparentes? Podia ouvi-las, porém não conseguia enxergá-las... O medo é um mágico poderosíssimo.
Pegaram-me pelas pernas e pelos braços. “E um, e dois, e três!”, lançaram-me bem no meio da barragem. Só Deus sabe o pânico, a agonia que senti vendo o mundo aparecer e desaparecer enquanto eu debatia os braços e as pernas na tentativa de salvar-me a vida à nado. Faltou-me, enfim, as forças... Afundei! Teria morrido, não fosse a agilidade do Damião que talvez tomado pelo arrependimento, saltou em meu auxílio... Graças a Deus!
Eu tossia, chorava, tentava recobrar o ar, quando novamente fui tomado pelos braços e pernas:“E um, e dois, e três!”, contaram em uníssono e me arremessaram mais alto e com mais força que na vez anterior. Por alguns segundos eu voei, até cair de barriga sobre o espelho d’água. Não sei o que doía mais: a pele da barriga ardendo pela pancada de encontro à água, a certeza de que aquele seria o meu fim ou a visão de um Lúpi aflito, porém incapaz de fazer qualquer coisa para me ajudar. Dessa vez tentei ficar imóvel na tentativa de salvar-me flutuando. Enfim, faltou-me a esperança... Afundei!
Quando recobrei a consciência, estava eu ainda no sangradouro, rodeado pelos três algozes em suas gargalhadas incontroláveis. Já não me importava se o Lúpi ainda estava na beira da barragem, se haviam mocinhas de shorts curtos e blusas transparentes. Restava-me apenas a certeza das terríveis intensões do Damião e seu bando. Arrependi-me das aulas gazeadas e da tentativa de ensinar ao Lúpi as técnicas que nem eu conhecia – embora tenha cometido tal pecado com a melhor das intensões.
“De agora ele não passa!”, gritou um deles, antes de me balançarem e me atirarem pela terceira vez na realidade.Porém desta vez eu não debati os braços e pernas, não tentei boiar... Apenas afundei!
As noções de tempo e distância não fazem sentido algum sob a água. Parecia ter passado um longo intervalo de tempo, mas foram apenas alguns segundo, sentia-me como se houvesse percorrido uma longa distância, porém não fora sequer dois metros. O certo é que não consegui prender a respiração por mais que trinta segundos, creio eu. Emergi orgulhoso pela minha façanha!
“Vejam! Vejam! Estou nadando! Veja, Lúpi! Vejam, meninas!”, gritei para ninguém, enquanto engendrava a famosa técnica do nado cachorrinho. Como um herói digno de todas as honras, nadei até o outro lado da barragem, sem olhar para traz. “Terra firme!”, bradei ao atingir o meu objetivo. Virei-me para receber os aplausos pelo feito, mas as atenções estavam voltadas para o meio da barragem, onde Damião e seu bando mergulhavam preocupados a procura de alguém. “Estou aqui, gente!”, exclamei agitando os braços, mas ninguém me deu atenção. Havia algo mais importante acontecendo. Busquei com os olhos o meu inseparável amigo na beira da barragem. Foi quando tomei consciência da gravidade da situação. Nos segundos em que fiquei submerso o meu pequeno protetor, temendo o pior, havia enfrentado o seu maior medo para me salvar.
Damião e os meus outros dois professores insistiram nas buscas (sem resultado) e eu chorava. Chorava pela tristeza de ter perdido o meu único amigo, chorava pelo destino de, em meio a tanta gente no mundo, ter sido eu o único a ter um cachorro que não sabia nadar.